sexta-feira, junho 25, 1999

A vida é sonho?

por José Vítor Malheiros

O tema da irrealidade do mundo material que nos rodeia não é novo. Ele está presente há milénios em religiões que tentam libertar-nos das misérias da realidade e compensar-nos no futuro pelas insuficiências do presente.
A grande diferença entre estas teorias e o mundo que nos oferece "The Matrix" é que, para as primeiras, aquilo a que chamamos "mundo" é uma ilusão provisória, oferecida aos sentidos enquanto esperamos a verdadeira e eterna existência, num mundo talvez sem substância mas que é o único dotado de realidade e que nos pode oferecer a completa felicidade - um Paraíso. No filme, a única coisa que se esconde por trás da ilusão da nossa realidade é o Inferno sem apelo.
Como "eXistenZ", de David Cronenberg, também actualmente em exibição (com quem as comparações são inevitáveis), "The Matrix" aborda um tema que já foi pura filosofia mas a que as descobertas das neurociências vieram trazer uma dimensão física (uma expressão só aparentemente mais segura do que "realidade"): a realidade é um mundo construído pelo nosso cérebro, a partir dos elementos que lhe são fornecidos pelos sentidos e com base em regras de coerência interna.
Dito de outra forma: ninguém sabe como as coisas são; sabemos apenas como elas nos parecem. E sabemos hoje que, quando essa percepção é alterada, o nosso cérebro cria com facilidade visões alternativas do mundo, de forma a integrar nelas de forma coerente as novas mensagens que lhe chegam.Um exemplo simples disso é o que acontece quando uma pessoa coloca uns óculos prismáticos que invertem as imagens que vê. Depois de algumas horas a ver as coisas de pernas para o ar (o que contraria tudo aquilo que ela sabe sobre o funcionamento do mundo), o cérebro da pessoa que é objecto da experiência inverte a imagem recebida e coloca o mundo no seu sítio, de pés no chão, sem que tenha sido preciso tirar os óculos. A imagem que se forma na retina é a mesma, o seu processamento pelo córtex visual mudou. A visão do mundo volta a ser coerente com a história pessoal do indivíduo, com as restantes experiências e as restantes mensagens dos seus sentidos. Se, passados uns dias, os óculos forem retirados, o mundo volta a estar de pernas para o ar, mas tudo se recomporá de novo (não sem umas náuseas ou enxaquecas) passadas umas horas.
Os míopes tem uma experiência quotidiana destas experiências: apesar de os seus óculos mostrarem uma imagem muito mais pequena do que a vista sem óculos, uns dias depois de colocar pela primeira vez umas lentes à frente dos olhos, os míopes passam a ver as coisas das suas verdadeiras dimensões: as suas mãos parecem-lhes da mesma dimensão vistas através dos óculos ou não, porque o seu cérebro sabe que elas não mudam de dimensão e faz, por isso, o necessário ajustamento.
Ou seja: o mundo é fabricado pelo cérebro e a sensação da sua "realidade" não é mais do que o resultado da coerência das várias mensagens recebidas pelos nossos sentidos ao longo do tempo. Sabemos que o filme que vemos no ecrã não é real porque sentimos a cadeira em que estamos sentados e o nosso cérebro atribui uma maior pontuação na escala da realidade a essa sensação. Mas o que acontecerá quando não a sentirmos?
As tecnologias de informação permitem hoje criar mundos virtuais e injectar no nosso cérebro (via órgãos dos sentidos) um grande número de sensações artificiais (imagens, sons, pressão, vibrações). E a ficção científica imagina há décadas o momento em que essa injecção poderá ser feita directamente no cérebro, sem a perturbação da tradução pelos sentidos, e ser tão rica de pormenores como a realidade. Mas o que nos dizem as experiências de realidade virtual, curiosamente, é que não é o aspecto realista do mundo virtual que nos faz acreditar mais nele, mas sim a sua coerência com a nossa experiência, a capacidade de reagir aos nossos gestos. Um mundo de realidade virtual com uma estética de "desenho animado" mas onde as portas se abrem quando rodamos a maçaneta parecer-nos-á mais real que um cenário hiperrealista onde nada reage como devia.
"The Matrix" é, à boa maneira americana, um filme de citações (ou de "clichés", se se quiser), onde o espectador pode reconhecer em cada passo referências estéticas e narrativas, da ficção científica dos Humanoïdes Associés aos contos infantis e aos jogos de computador (as sequências de luta são puro "Mortal Kombat" e é impossível não pensar no jogo de simulação "SimCity"). No entanto, oferece algo de mais interessante: as histórias de ficção científica só costumam ser verosímeis (quando o são) se aceitarmos as premissas do mundo que nos é proposto - e que podem ser muito difíceis de aceitar -, mas a história de "Matrix", sendo a mais fantástica e fantasmagórica que se possa imaginar, é surpreendentemente verosímil no nosso mundo, para aquilo que sabemos hoje.
Em termos de verosimilhança científica, há porém um problema (que não é menor): a ausência de corpo. Ao contrário do que acontece no filme, não seria possível a um corpo que teve durante anos apenas uma existência puramente cerebral, "acordar" e aprender em dias o que nunca aprendeu, de forma a poder viver num mundo real. É que, se para ver é preciso ter cérebro e olhos, isso não basta: é também preciso uma longa, lenta e sedimentada aprendizagem. Um ratinho nascido e mantido num mundo de riscas verticais não consegue ver linhas horizontais: é cego para o que não aprendeu a ver, ainda que os seus olhos e o seu córtex visual funcionem.
Da mesma maneira, um cérebro que não aprendesse a receber sinais do seu corpo (não se trata apenas dos sinais dos sentidos, mas de toda a "paisagem hormonal" que retrata as emoções, de que fala o neurologista António Damásio) não poderia aprender a funcionar nalguns dias e não poderia ser senão um catálogo de psicoses. Por outras palavras: se é possível imaginar que os humanos vivam na Matriz e estejam mergulhados numa vida imaginária, de forma a poderem continuar a experimentar as emoções sintéticas que lhes permitem manter-se vivos, é mais difícil imaginar que eles possam algum dia sair dessa escravidão.

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