terça-feira, fevereiro 17, 2004

Azul e vermelho

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 17 de Fevereiro de 2004
Crónica 7/2004

Algo comum nas empresas que prezam a organização do trabalho: dois distribuidores de senhas, cada um com a sua cor, para facilitar a distribuição de clientes pelos vários serviços

Tive há dias de me dirigir a uma dependência da Portugal Telecom para realizar as prosaicas tarefas de pedir a desconexão de uma linha telefónica numa dada morada e a instalação de uma outra noutra morada. Estes pedidos não podem ser feitos através da Internet por razões de segurança, como me informou uma solícita funcionária da PT.

Os bancos podem permitir a realização de transferências pela Web, as Bolsas podem permitir a compra de acções pela Web, milhões de empresas podem permitir a realização de milhões de transacções sensíveis pela Web, mas a PT sabe que isso é resultado da enorme inconsciência de todos eles e, porque sabe que a Web não é segura (será que o Sapo transmite esta certeza aos seus clientes?), obriga-nos a visitar as suas lojas.

Deparei à entrada com algo que já é comum nas empresas que prezam a organização do trabalho: dois distribuidores de senhas, cada um com a sua cor, para facilitar a distribuição de clientes pelos vários serviços. O distribuidor azul tinha uma etiqueta que dizia em letras grandes “Atendimento” e, em corpo mais pequeno, “Apoio ao cliente” e “Pós-venda”. O distribuidor vermelho tinha uma etiqueta que dizia “Vendas” e, em corpo mais pequeno, “Linhas telefónicas”, “Equipamentos”, “Planos de preços”, “ADSL” e “Serviços”. (Passo por cima do facto de toda a gente que entra na loja querer certamente ser atendida, o que seria uma boa razão para escolher “Atendimento”.) Compreenderão a minha hesitação. Eu queria certamente algum apoio (“Apoio ao cliente”?), queria certamente serviço pós-venda (a não ser que a minha linha alugada não tivesse sido uma compra e, nesse caso, não se aplicasse o serviço “pós-venda”), queria uma “linha telefónica”, queria um “serviço telefónico”, talvez também um “equipamento”. Fiz o que fazem todos e tirei uma senha de cada. Quando chegou a minha vez, a senhora do “guichet” informou-me que o pedido de linha era uma “venda” (tentei explicar- lhe que para mim era uma compra mas não consegui arrancar-lhe um sorriso) e que o pedido de suspensão da linha era uma “pós-venda” e que, por isso, deveria fazer cada operação num “guichet” diferente, com uma senha diferente, para ser tudo bem organizado. Quando lhe perguntei se podia fazer uma reclamação, a resposta não se fez esperar: claro que podia mas... num outro “guichet”. Não cheguei a perguntar a cor da senha desse outro “guichet” porque uma responsável com ar previdente compreendeu as minhas discretas manifestações de descontentamento e decidiu que, excepcionalmente, poderia fazer as duas operações no mesmo “guichet” — o que aconteceu.

Não conto este episódio com o objectivo de convencer a PT a permitir que se peçam ligações e desligações de telefones através da Internet. A inovação teria talvez consequências traumáticas na estrutura da empresa. Mas não seria possível organizar as senhazinhas? Claro que a PT não está só nesta cruzada pelo obscurantismo. Muitas empresas, apoiadas por batalhões de “call centers” que nos dizem “Sr. José, obrigada por ter aguardado”, já nos habituaram às gravações que nos perguntam sadicamente se queremos “Informações”, “Atendimento”, “Serviços”, “Assistência” ou “Suporte”, o que é suficiente para nos mergulhar em ansiedade. Não seria possível chamar às coisas os nomes que as pessoas lhes chamam, em vez dos nomes que o “marketing” lhes quer chamar? Lembram-se de quando havia “Pedidos de novos telefones” e “Avarias”?

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