terça-feira, março 23, 2004

Negociar

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 23 de Março de 2004
Crónica 11/2004


A Al Qaeda não se define como um adversário mas como um anjo vingador, numa pose absoluta e irracionalista.

Mário Soares provocou um pequeno terramoto político com a sua declaração de que é aceitável e mesmo necessário negociar com os terroristas, fazendo à sua volta um unânime vazio indignado, mas vale a pena debruçarmo-nos sobre o seu conteúdo em termos políticos.

Quando se diz que "não se negoceia com a Al Qaeda" isso significa que não se pode ceder à chantagem do terror — e aqui todos estamos de acordo. Um Estado não pode deixar de tomar uma medida que julga justa e necessária (ou tomar uma outra) por recear represálias da Al Qaeda.

Mas será que este princípio da não cedência em termos de substância deve ser um princípio absoluto e sem matizes?

Antes de mais, existe o pormenor não despiciendo de que a Al Qaeda (ao contrário do IRA ou da ETA) não tem um objectivo político definido. O seu terrorismo não é uma continuação por outros meios de um confronto político, de objectivos passíveis de discussão. O seu terrorismo é a tradução de um desejo de aniquilar uma forma de viver que considera suja e indigna: a sociedade democrática, liberal e igualitária. Não é a política externa dessas sociedades que a Al Qaeda põe em causa, mas a sua própria existência, a sua história e mesmo o seu direito à vida. A Al Qaeda não se define como um adversário mas como um anjo vingador, numa pose absoluta e irracionalista.

É difícil, nestes termos, conceber uma negociação. Não se pode negociar quando uma das partes tem como único objectivo (que julga sagrado) a liquidação da outra. A negociação é impossível devido aos termos em que a Al Qaeda define o seu papel e o seu inimigo.
Pode negociar-se com inimigos ("Com quem é preciso fazer a paz senão com os nossos inimigos?", perguntava Rabin) mas é difícil negociar com quem se coloca do lado de fora da Humanidade.
Se "não se negoceia com a Al Qaeda" em termos globais e em princípio — porque não há nenhum bem negociável em disputa — é bem ter presente que, em qualquer conflito, se negoceia sempre de uma forma limitada. E isso é não só positivo como mesmo inevitável.

Há situações onde se deve tentar negociar (e seria criminoso não o tentar), como são as situações onde haja reféns — ainda que haja fronteiras que um estado livre não possa cruzar.

De uma forma geral, deve-se (e seria criminoso não o tentar) negociar não com "a Al Qaeda" mas com todas as estruturas e grupos no seu interior onde haja a possibilidade de explorar dissensões, rivalidades e dúvidas.

Deve-se da mesma forma negociar (e muitos grupos terroristas foram desmantelados desta forma) com elementos que tenham a potencialidade de se transformar em "arrependidos".

Como se deve negociar e tentar aproximações, a outro nível, com grupos e sectores radicais que, não sendo "a Al Qaeda", fornecem a zona de penumbra onde a Al Qaeda se move, se financia, recruta e reproduz a sua matriz cultural e religiosa.

Em termos práticos — e cínicos — até se negoceia porque isso pode permitir ficar a conhecer a forma como funciona a organização do lado de lá da mesa, quem são e como pensam os seus dirigentes ou simplesmente porque isso permite ganhar tempo — tudo objectivos preciosos num conflito.

Alguém pensará com seriedade que, se por hipótese o futuro Senhor Terrorismo da União Europeia recebesse um telefonema de Bin Laden, lhe deveria desligar o telefone na cara?

A expressão de Mário Soares foi infeliz porque confere credibilidade política à Al Qaeda — ainda que seja compreensível num político que conhece as virtudes da negociação e que sabe que só se cede o que se quer. Foi infeliz porque parece uma cedência — ainda que seja uma posição de princípio. Foi infeliz porque pareceu amoral — ainda que seja uma posição de realismo político. Mas foi principalmente infeliz porque foi dita em público — quando apenas seria adequada para o Conselho de Estado.

Por outro lado, é fundamental que Soares reafirme o combate ao terrorismo como uma acção política — e não apenas policial ou militar — de onde nenhuma vertente deve ser excluída.

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