terça-feira, junho 01, 2004

23.480 euros

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 1 de Junho de 2004
Crónica 21/2004

Talvez Paulo Macedo mereça 23.480 euros por mês, mas será o único director-geral que os merece?


Os políticos em Portugal ganham pouco. Pode contrapor-se que isso é inevitável porque em Portugal toda a gente ganha pouco e o produto nacional é escasso. Mas não é assim. Os políticos em Portugal ganham menos do que poderiam ganhar em muitas outras actividades e isso tem consequências. Uma delas, muito discutida, é que a política não constitui uma actividade financeiramente atraente para os melhores. Algumas pessoas poderão levar a sua abnegação ao ponto de sacrificar o bem-estar material para se dedicar à causa pública, mas é evidente que isso nunca será verdade para a maioria. A política corre assim o risco de alienar os melhores e só atrair os medíocres.

Como penso que os cidadãos devem ser servidos pelos melhores, que deve haver uma política de atracção dos melhores para a causa pública e que o sistema de remuneração deve ser parte dessa política, considero que é necessário melhorar a remuneração dos políticos. A política salarial que nós, o povo, temos seguido em relação aos nossos servidores políticos é, provavelmente, uma das causas das suas insuficiências. Devíamos rever essa política e, coerentemente, reforçar a nossa exigência em relação ao seu desempenho.

É evidente que isto também é verdade para a Administração Pública - sendo que aqui o problema é mais difícil de resolver devido ao número de pessoas envolvidas.

Serve isto para dizer que não tenho em relação ao facto de se pagar 23.480 euros mensais a um director-geral nenhuma objecção de princípio. Talvez um director-geral valha isso. Talvez pagar um salário deste nível seja um bom investimento para nós, o povo. (E não se pense que isso é necessariamente impopular: alguém acha que Figo ganha demais?)

Existem fortes argumentos para justificar a medida da requisição do novo director-geral dos Impostos, Paulo Macedo: a sua competência (que não conheço mas não ponho em causa), o facto de ser nomeado com objectivos precisos que garante cumprir e de ser alguém passível de penalização no caso de o seu desempenho ser insatisfatório. Tudo coisas que parecem boas.

A questão é que a Administração Pública deve ser regida por critérios aplicados de forma equitativa. Ou seja: talvez Paulo Macedo mereça 23.480 euros por mês, mas será o único director-geral que os merece? É que, no actual estado de coisas, é mesmo preciso vir do BCP (ou, pelo menos, não estar na Função Pública) para que o Estado se disponha a pagar este salário. A questão que se coloca é se isso será justo e se será uma boa forma de mobilizar os recursos humanos da Administração Pública.

Não vejo razão nenhuma para que os directores-gerais não sejam escolhidos por concurso, ao qual se poderiam apresentar os quadros do BCP mas também funcionários públicos de carreira. E a ocupação dos cargos poderia ser feita nos termos em que nos garantem que esta vai ser feita: com um contrato claro, objectivos definidos, compromissos, recompensas e sanções. Se o Estado considera que pode subir de forma considerável os salários dos directores-gerais, óptimo. Mas que os escolha de forma transparente, depois de permitir que todos os interessados se candidatem. Num processo de selecção entram sempre elementos subjectivos e isso não é condenável, mas um concurso permite alargar o leque da escolha possível e dar lealdade ao processo. Enquanto a competência dos directores-gerais nomeados nos for garantida pelos ministros, mas o seu método de selecção continuar a ser não o do concurso mas as preferências pessoais (ou dos aparelhos partidários), os cidadãos têm o direito de desconfiar.

Outra questão que a nomeação de Paulo Macedo suscita é a da consabida promiscuidade entre funções no Estado e no sector privado. Se não em defesa do Estado, pelo menos em defesa da honra destas pessoas que saltam de um sector para o outro, não haverá um único deputado que queira levantar a questão e propor regras nestas transferências? Podiam ver como se faz nos EUA, que não são suspeitos de anti-capitalismo.

Sem comentários: