terça-feira, junho 15, 2004

O caso da herança

Por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 15 de Junho de 2004
Crónica 23/2004

A fundação possui como mácula original o facto de Champalimaud ter escolhido para sua presidente Leonor Beleza


O anúncio do testamento de António Champalimaud e da doação de 24,33 por cento da sua fortuna para a constituição de uma fundação dedicada à “pesquisa científica no campo da medicina”, que terá Leonor Beleza como presidente, deu origem à habitual enxurrada de encómios ao empresário, misturados com loas à sua “grande nobreza de sentimentos” e à sua “generosíssima dádiva”.


Nunca conheci António Champalimaud e não posso confirmar nem desmentir os adjectivos que lhe são endereçados. Posso dizer que foi apenas depois da sua morte que ouvi falar de “nobreza de sentimentos” ou de “generosidade” a seu respeito.


A constituição da fundação pode ser uma boa notícia. De facto, são evidentes as insuficiências da investigação portuguesa (devidas, em grande parte, ao pára-arranca do financiamento público) e uma entidade com objectivos ambiciosos e sensatos, com gestão estável e com uma avaliação transparente e rigorosa pode ser um trunfo.


Digo “pode ser” porque, infelizmente, nada garante que as coisas se passem da melhor maneira.

De facto, não é improvável que o Estado, com o álibi da existência desta fundação, passe a negligenciar a área que ela cobre, provando que a emenda pode ser pior que o soneto.


Algo do género seria de esperar do actual Governo, que acha que o Estado já faz mais do que a sua obrigação em matéria de investigação e que não se cansa de repetir que cabe à iniciativa privada realizar o investimento em ciência e em tecnologia que o Estado não realiza e pôr em prática a política de emprego científico que o Estado não pratica.


A fundação possui como mácula original o facto de Champalimaud ter escolhido para sua presidente Leonor Beleza, que foi certamente a ministra da Saúde sobre cuja gestão recaíram as mais violentas críticas devido, entre outros episódios, à forma como geriu a crise da sida e dos hemofílicos. Imagino que Champalimaud sentiu um secreto prazer em impor esta personagem controversa, com quem partilhava talvez a exigência de eficácia, mas também o perfil impiedoso e impopular.


Sobre a herança de Champalimaud não resisto a citar um homem insuspeito nestas matérias, um capitalista que construiu uma das maiores fortunas do mundo, o americano Andrew Carnegie (1835-1919). Carnegie era um daqueles milionários que achava que os ricos tinham obrigação de devolver à comunidade aquilo que ela lhes dera (e não apenas sob a forma de criação de empregos, que não é mais do que a garantia de continuar a ganhar dinheiro e dificilmente um gesto de solidariedade). Carnegie abominava a caridade, como distribuição indiscriminada de benesses, mas dedicou os últimos 18 anos da sua vida à filantropia, depois de ter vendido as suas participações em empresas por 250 milhões de dólares (em 1909). Criou escolas, fundações, bibliotecas, parques, museus – que ele considerava como “escadas” disponíveis para os mais desfavorecidos conseguirem melhorar a sua situação.


Num dos seus livros (“The Gospel of Wealth”) Carnegie escreve sobre o destino a dar a uma fortuna acumulada e explica que existem três possíveis: deixá-la aos descendentes (“a menos judiciosa”), deixá-la em testamento para fins públicos (aceitável ”desde que um homem esteja disposto a esperar pela sua morte antes de fazer algum bem ao mundo”) e, finalmente, “atarefando-se, durante a sua vida, em criar benfeitorias das quais as massas dos seus concidadãos possam retirar vantagens duradouras e dignificar as suas vidas”.


Carnegie defendia impostos pesados para as heranças e um dos seus aforismos favoritos era “o homem que morre rico morre desonrado” ("The man who dies rich dies disgraced"). Sobre os ricos que deixam dinheiro para obras públicas nos seus testamentos dizia que se fica sempre na dúvida se o deixariam na mesma caso lhes fosse possível levá-lo com eles.

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