terça-feira, junho 29, 2004

O golpe

Por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 29 de Junho de 2004
Crónica 25/2004

Um mínimo de coerência pessoal não deveria permitir a Durão Barroso abandonar o Governo a meio da legislatura.

Durão Barroso tem todo o direito de aceitar a sua nomeação para Presidente da Comissão Europeia e é normal que se sinta honrado pela escolha. Há argumentos que se podem avançar para defender essa opção em nome não só da carreira pessoal do primeiro-ministro mas também do interesse nacional.

É evidente, porém, que um mínimo de coerência pessoal não deveria permitir a DB abandonar o Governo a meio da legislatura, depois das críticas dirigidas a Guterres pelo mesmo gesto.

DB dirá que a situação é diferente – mas di-lo-á apenas porque o seu coração já está em Bruxelas. Há vários dias que as reacções internas deixaram de lhe interessar e arranjará todos os argumentos para se convencer a si próprio da correcção ética e da conveniência nacional da sua decisão.

DB dirá que não foge, que sai em nome de Portugal. É um argumento. Mas Guterres também tinha argumentos: tinha havido um resultado eleitoral que o punha em causa e saiu acatando esse resultado e desencadeando eleições que esclarecessem o desejo do povo (que aliás o PS perdeu). É certamente criticável, mas haverá algo mais democrático? Enquanto que DB sai a meio da legislatura, depois de ter jurado que nunca sairia, na sequência da mais pesada derrota eleitoral do PSD, sem aceitar eleições antecipadas e, pelo contrário, tentando assegurar uma sucessão de carácter dinástico, contestável no país e mesmo no seio do PSD.

Se DB nunca tivesse dito de Guterres o que disse e se tivesse aceitado o lugar de Presidente da Comissão entregando ao Presidente da República a solução da questão interna - dispondo-se o PSD a assegurar o Governo ou a apresentar-se a eleições depois de substituir o seu presidente – não haveria nada a dizer.

O que é inaceitável é esta situação de sequestro da República – em que, depois de se ter ganho eleições com promessas eleitorais que se quebram no dia seguinte, se fazem promessas de fidelidade ao Governo que se quebram passados uns meses e se tem o desplante de, escassos dias após uma derrota eleitoral, pretender impor ao país e ao Presidente da República um primeiro-ministro que nunca foi a votos para tal e cuja prática nem sequer dá garantias de idoneidade ou continuidade da acção governativa. Que essa possibilidade existe do ponto de vista legal é evidente, mas ela é carente de qualquer legitimidade eleitoral.

Que o PR pode convidar o PSD a indicar novo primeiro-ministro já se sabe – e existem boas razões, em tese, para o fazer, em nome da estabilidade. Que o PSD pode escolher Santana Lopes ou Quim Barreiros também se sabe.

Mas o que se espera em seguida do PR é que avalie essa escolha. Não apenas de um ponto de vista juridico-legal (se apenas existisse para isso podíamos substituir o PR pelo Tribunal Constitucional) mas de um ponto de vista político. É para isso que ele é eleito por sufrágio universal. E essa avaliação política deve debruçar-se sobre questões de legitimidade política, de garantia de estabilidade, de competência e até de carácter.

Façamos uma redução ao absurdo para se perceber melhor do que falamos: imagine-se que o PSD decidia indicar para primeiro-ministro da República um outro dos seus dirigentes mediáticos: Alberto João Jardim, experiente governante, vencedor de esmagadoras vitórias eleitorais. Será que Sampaio o deveria indigitar? Os sensatos concordarão que seria uma escolha demente. O que se espera do PR não é que aja como um algoritmo jurídico, nem como o mestre de cerimónias a cujo papel o PSD o pretende remeter mas que aja como o líder político que foi eleito para ser.

Há casos em que o povo fala de uma forma inequívoca. Nesses casos não há nada a fazer senão o que ele determina.

Há casos em que a legitimação democrática de uma opção é menos clara (como acontece agora). Quando a esta dúvida democrática se somam dúvidas sobre a estabilidade dessa opção e mesmo sobre a sua credibilidade pública, não há dúvida de que se deve voltar a pedir ao povo que se manifeste – sejam quais forem os custos dessa opção. De outra forma, não estaremos senão a afirmar que a democracia e os mecanismos formais que a consubstanciam (como as eleições) não são a melhor forma de governo.

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