terça-feira, junho 14, 2005

Arrastão

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 14 de Junho de 2005
Crónica 20/2005

Um arrastão não é uma vaga de assaltos, mas um assalto em massa. É a coisa mais parecida com uma pilhagem em massa.

A maior surpresa não foi saber que vários grupos de jovens dos 12 aos 20 anos lançaram uma onda de assaltos e agressões na praia de Carcavelos.

A maior surpresa não foi sequer o número de assaltantes envolvido nesta operação quase militar, num total que pode ter excedido os 500. A maior surpresa não foi termos ficado a saber que esta razia dá pelo nome de “arrastão” e que já tem lugar nos manuais de delinquência urbana. A maior surpresa não foi sequer descobrir num grupo de delinquentes juvenis este nível de organização, aparentemente espontânea.

A maior surpresa foi saber que o fenómeno não é novo, que dura há anos e que, no ano passado, já tinha acontecido algo desta dimensão - envolvendo 500 a mil jovens.

Já se sabia das vagas de assaltos nos comboios, da violência nocturna na vizinhança do que chamamos “os bairros degradados”, dos roubos e do “racket” nas escolas suburbanas, dos episódios de vandalismo. O que não se sabia era esta dimensão, que faz deste assalto algo mais do que um acto de marginalidade e nos revela um “universo de marginalidade”, um enorme sector excluído das benesses e das regras da vida social e que não está disposto a manter-se dentro das fronteiras do ghetto.

Também foi evidente a preocupante incapacidade dos media para nos retratar o que ocorre às portas das nossas cidades, este meio que produziu estas vagas de jovens desempregados, desescolarizados e desesperançados, delinquentes e organizados, violentos e enfurecidos, que podem submergir uma praia (e que não desaparecem quando se dispersam), sinal de um problema social profundo e violento e que é necessário conhecer, compreender e resolver.

Já se sabe que os media podem ver a árvore mas ignorar a floresta, que noticiam eventos localizados mas podem não ser capazes de detectar uma tendência social profunda, por transformadora que ela seja. O arrastão do ano passado deu provavelmente origem a notícias isoladas, mas não deu uma medida da dimensão do fenómeno.

Poder-se-ia esperar que a nossa universidade e os nossos cientistas sociais tivessem conseguido detectar este fenómeno e alertar devidamente a sociedade para ele, para além dos estreitos círculos vidrados onde a sua actividade se manifesta. Mas isso seria esperar de mais de uma e de outros. A universidade em Portugal continua a sonhar que ela é a sua própria razão de existir.

A um nível menos ambicioso, seria de esperar que os cidadãos assaltados apresentassem queixa na polícia e permitissem pelo menos obter a noção da dimensão do fenómeno, mas isso também não aconteceu. A verdade é que a maioria dos crimes não dão origem a queixas - por razões que alguém que tenha investido algumas horas de profundo desconforto a tentar apresentar uma queixa na polícia percebe bem.

O secretário de Estado do Turismo pediu para não se tratar “factos isolados como o arrastão de Carcavelos” com “alarmismo despropositado”, mas a declaração é uma contradição nos termos.

Um arrastão não é um facto isolado mas um movimento colectivo e imaginar que algumas palavras bastam para o exorcizar é o caminho aberto para o abismo. O assalto foi na praia, mas isso não é razão para enfiar a cabeça na areia.

Um arrastão não é sequer uma vaga de assaltos, mas um assalto em massa – é a coisa mais parecida com uma pilhagem em massa.

É evidente que a situação exige uma resposta sem hesitação ao nível policial, mas seria de uma inconsciência criminosa se o Governo considerasse que este assalto apenas exige mais câmaras e mais polícia. O Governo pensará que o problema é que o ghetto transbordou para a praia e que é necessário contê-lo mais eficazmente dentro dos seus muros? A cegueira deste raciocínio (para além da sua abjecção) é que o ghetto nunca é contido pelos muros.

O que é necessário é dar razões reais a estes jovens para não pensarem que o melhor que esta sociedade lhes pode oferecer é o fruto de uma pilhagem na praia.

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