terça-feira, setembro 27, 2005

Crianças à espera

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 27 de Setembro de 2005
Crónica 27/2005

Na adopção em Portugal está tudo na mesma. As crianças continuam à espera.


Os números foram publicados na semana passada, em comemoração do segundo aniversário da nova Lei da Adopção, mas vale a pena repeti-los.

Em Portugal há 15.455 menores a viver em instituições. Não se trata de uma criança sem família, mas de muitos milhares de pequenas vidas que se interrogam por que razão não têm pais que lhes peguem ao colo, em cujos braços possam adormecer, pais que lhes possam oferecer segurança e a certeza da ternura, como elas sabem que acontece com outros meninos.

Dos 15.455, nem todos são crianças, mas todos esperam (ou desistiram de esperar) um dia ter uma família sua, conhecer o seu cuidado e o seu carinho. A sociedade tem para com estes menores a maior das dívidas. Deve-lhes a vida cheia e feliz que se comprometeu a tentar proporcionar-lhes quando as colocou numa instituição.

Mais impressionante do que o número em si é o facto de, depois de casos dramáticos que chamaram a atenção para o descuido a que está entregue a infância em Portugal, depois de se ter accionado todos os alarmes e de se ter colocado a adopção na lista das prioridades nacionais, a situação não ter melhorado.

A nova Lei da Adopção alterou questões administrativas mas, como quase sempre acontece em Portugal, não mudou nada de substantivo. Em 2003, foram colocadas em famílias adoptantes 372 crianças; em 2004, foram 382 crianças; no primeiro semestre de 2005 foram 165.

Os processos de adopção não estão a andar mais depressa, a nova lei não tornou as adopções mais céleres. Está tudo na mesma e as crianças continuam à espera.

A selecção de candidatos, que a nova lei deveria ter agilizado, continua a arrastar os pés: a lei diz que esta fase só pode levar seis meses. Mas há casais que fizeram o seu pedido em 2002 e que continuam sem saber se os aceitaram como candidatos a adoptantes. O facto é tanto mais inaceitável quanto se sabe que o processo de selecção envolve algumas entrevistas e recolha de dados que não levam mais do que alguns dias.

Uma dos trunfos da nova lei era o facto de a adopção deixar de ter uma base regional para ser nacional. Até então, na prática, cada região funcionava em circuito fechado – o que significava que uma criança da Guarda podia não ser adoptada por falta de candidatos, apesar de eles existirem nos Açores. Para tornar nacional o âmbito da adopção é necessário criar uma base de dados nacional. Hoje, dois anos depois da lei, a base de dados continua sem existir e as desculpas para a sua não existência são tão esfarrapadas que fazem dó.

Uma delas é o facto de a Comissão Nacional de Protecção de Dados não permitir a inclusão de dados sobre a etnia da criança, que os técnicos (e muitos candidatos a pais) consideram essencial. É evidente que a base de dados pode avançar e que essa questão (e outras) pode ser dirimida “a posteriori”.

Finalmente, continua sem se abordar um dos problemas centrais da adopção – que está na raiz do número reduzido de crianças adoptáveis entre as 15.455 que vivem nas instituições – e que a nova Lei não resolve: o facto de muitos juízes continuarem a despachar a tutela de crianças com base nas suas convicções religiosas ou ideológicas e a ordenar a sua reinserção na família biológica (ou definindo prazos de espera até que essa reinserção seja possível) mesmo quando todos os técnicos envolvidos na questão, que conhecem a criança e a família, aconselham o contrário. Também esta situação é intolerável.

Resolver os atrasos na adopção é possível. Há certamente sobre esta questão algum consenso social. Resolver o problema da actuação de certos juízes também o é – se não através do próprio poder judicial, avesso a controlos de qualidade, pelo menos através do legislativo. É possível definir critérios legais que tornam definitiva a perda de direitos dos pais biológicos em certas circunstâncias (a tentativa de infanticídio não será uma boa razão?).

Será que, por uma vez, podemos tentar resolver de facto um problema? Se isto não é importante e urgente, o que será?

terça-feira, setembro 20, 2005

Ódios e lealdades

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 20 de Setembro de 2005
Crónica 26/2005

O que esperamos de um “watchdog” é que não perca tempo em rodriguinhos diplomáticos, que possa seguir a direito.

Segundo a Constituição, cabe ao Tribunal de Contas a fiscalização das despesas públicas. Este órgão deve verificar se os dinheiros do erário público foram gastos onde deveriam ter sido gastos e se isso aconteceu acautelando o interesse público, de acordo com princípios de legalidade, prudência, eficiência, equidade e transparência.

O Tribunal de Contas pertence pois àquilo que os anglo-saxónicos chamam o sistema de “checks and balances” – uma expressão que inicialmente se referia apenas à clássica divisão dos três poderes de Montesquieu, mas que nas sociedades democráticas de hoje encontra tradução numa constelação de novos poderes e instituições.

Há quem traduza a expressão “checks and balances” como “pesos e contrapesos”, mas a mais literal “controlos e equilíbrios” parece mais adequada, já que não se trata apenas de encontrar equilíbrios entre os vários poderes para evitar um abuso de qualquer deles (o que “pesos e contrapesos” sugeriria) mas também de instituir sistemas de controlo e fiscalização, que garantam a correcção e adequação dos actos cometidos pelos organismos detentores do poder para a prossecução dos fins anunciados.

Os americanos, com a vivacidade de língua que se lhes reconhece, inventaram a expressão “watchdog” – cão de guarda – para estes organismos.

A atitude que os cidadãos têm o direito de exigir a um destes “watchdogs” é uma de feroz independência perante os poderes que têm de fiscalizar e de feroz defesa do interesse público. Exige-se de um poder fiscalizador que seja inquiridor (não inquisidor), disciplinado, insistente, que não aceite nada “a priori”, que passe a pente fino o que investiga. Exige-se-lhe, enfim, que desconfie. A única lealdade que um “watchdog” deve conhecer deve ser perante o colectivo dos seus concidadãos e não perante qualquer dos seus subconjuntos.

Poder-se-ia pensar que um juiz do Tribunal de Contas e um deputado têm no fundo papéis semelhantes, já que ambos devem fiscalizar as acções do executivo. Pode-se pensar... mas não é assim. E não é assim porque um deputado se sente preso, a par de muitas outras obrigações, por um dever de lealdade para com os seus companheiros de bancada – e, no caso de se tratar de um deputado da maioria que apoia o Governo, também por um dever de lealdade para com o Governo. É discutível, mas é um facto. É evidente que este sentimento não se pode sobrepor às suas obrigações para com os eleitores, os cidadãos em geral e a democracia, mas essa lealdade levá-lo-á a tender a confiar nos seus companheiros (e no Governo) enquanto o que se espera de um “watchdog” é que desconfie. São papéis diferentes e incompatíveis. Pode-se defender que não há nas duas funções conflito de interesses, mas há seguramente conflito de lealdades. É possível que alguém dotado de uma capacidade de navegação excepcional possa levar a cabo as duas tarefas sem se incompatibilizar com demasiadas pessoas, mas o que esperamos de um “watchdog” é que não perca tempo em rodriguinhos diplomáticos, que possa seguir a direito sem ter de se certificar constantemente de que não está a pisar o pé do vizinho.

Nalguns jornais existe uma função de “watchdog”: o provedor do leitor. É quase sempre um antigo jornalista, muitas vezes um antigo jornalista da casa mas é sempre alguém que suspende a função de jornalista (e que, frequentemente, nem sequer a retoma). Não há nada de incompatível em ser jornalista e defender os direitos do leitor (pelo contrário, todos os jornalistas sabem que são os leitores os primeiros credores da sua lealdade), mas há sempre um momento em que, perante um conflito, é necessário escolher um dos lados, e a escolha do campo dos leitores pelo provedor, por justa que seja, pode ser vista como uma quebra de lealdade entre jornalistas. Há ódios persistentes que nascem assim. Pretender manter um jornalista em funções numa redacção ao mesmo tempo que se lhe entregasse o cargo de provedor daria origem a uma gargalhada tão sincera como as que nos suscita Arlequim quando tenta servir dois senhores.

terça-feira, setembro 13, 2005

A tropa na rua

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 13 de Setembro de 2005
Crónica 25/2005

A liberdade de expressão e de manifestação constitui uma garantia da utilização de meios legítimos.

A ideia segundo a qual os militares podem participar em manifestações convocadas por outrem mas não podem eles próprios convocar manifestações é um convite à hipocrisia e um estímulo ao contorno das leis. De acordo com este princípio, se o sobrinho de um sargento decidir convocar uma manifestação em prol da defesa nacional o seu tio poderá participar (e os seus camaradas de armas), mas este não a pode convocar ele próprio sob pena de medidas disciplinares. Este incentivo à criação de testas de ferro não pode ser seriamente considerado uma medida de reforço da estabilidade política, da paz social ou da segurança do Estado.

A restrição do direito de manifestação dos militares tem razões históricas compreensíveis. “A tropa nas ruas” evoca golpes de Estado e ditaduras. No entanto, a democracia é o regime do confronto pacífico, aberto e regulado pela lei das ideias e interesses dos vários actores sociais, e não é possível, numa sociedade aberta e democrática, reprimir a expressão de interesses legítimos sem pôr em causa os princípios em que assenta essa democracia. Proibir manifestações de militares em tempo de guerra é evidentemente necessário, mas não se vê a bondade de o fazer em circunstâncias de paz.

A Lei de Defesa Nacional e das Forças Armadas consigna o direito de manifestação dos militares, “desde que estejam desarmados e trajem civilmente sem ostentação de qualquer símbolo nacional ou das Forças Armadas”, mas acrescenta que os militares apenas podem participar numa manifestação se esta não tiver “natureza político-partidária ou sindical [e] desde que não sejam postas em risco a coesão e a disciplina das Forças Armadas”.

A última condição é a porta aberta para uma proibição de facto, já que depende da avaliação feita em cada momento pelas chefias militares e pelo poder político. Mas, aparentemente, a lei autorizaria os militares portugueses a participar numa manifestação que exigisse a demissão do Governo desde que não a convocassem nem eles próprios nem um partido político (serviria qualquer outra entidade?) e desde que se abstivessem de exigir aumento de salário.

Por razões evidentes, os militares estão impedidos de enveredar por certas formas de luta contra o patrão Estado mesmo quando envolvidos em disputas laborais (para além de todos os outros laços que existam entre um soldado e o Estado, existem também laços laborais). Mas não parece haver razão para proibir a manifestação dos seus desejos e reivindicações (independentemente da apreciação que se faça das suas razões). Mais: a liberdade de expressão e de manifestação constitui uma garantia da utilização de meios legítimos de contestação (teria havido 25 de Abril se os militares tivessem podido manifestar-se livremente?).

É necessário que o Estado confie suficientemente na maturidade democrática das Forças Armadas para saber que não será um conflito laboral – mesmo com manifestações – que irá desviar as Forças Armadas da sua missão constitucional. Isto da mesma maneira que outros conflitos laborais com o Estado-patrão, não fazem com que os médicos comecem a matar doentes ou os juízes a condenar inocentes. Se o Estado não tiver essa confiança, temos mais razões para ficar preocupados do que pensamos.

Posto isto, é igualmente claro que o extremo dever de obediência dos militares não é compatível com a desobediência a uma ordem directa, quando ela existe.

terça-feira, setembro 06, 2005

Guerra ao furacão

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 6 de Setembro de 2005
Crónica 24/2005

O que aconteceria à América se, por um dia, os seus guardas e militares desaparecessem das ruas?

1. Não é preciso ser um religioso fundamentalista nem sequer ver no furacão Katrina a mão de Deus para constatar que ele constituiu para os Estados Unidos uma lição de humildade.

Uma lição de humildade perante a força dos elementos, que tornam evidente que mesmo para a nação mais poderosa da terra não é sensato prescindir da ajuda internacional, mas também uma lição de humildade perante as violentas lacunas da organização social americana e perante a miséria preexistente que o desastre tornou dolorosamente visível.

Nos últimos dias, o mito nacionalista americano e o seu culto da competição, da força e da violência sofreu um banho de realidade e ouvimos multiplicar-se os apelos à entreajuda, à dádiva e à cooperação. Será sol de pouca dura, mas pode ser que as necessidades pungentes que o Katrina revelou ou originou deixem ficar algo destes apelos nos corações e nas mentes dos americanos.

2. Se as imagens que as televisões nos mostram lembram as de um país do terceiro mundo afectado por uma catástrofe natural é porque nos Estados Unidos existe um enorme país do terceiro mundo acocorado em torno das suas ilhas de sucesso.

Os EUA gostam de medir o vigor da sua sociedade pelos seus sucessos – incontestavelmente imensos. Mas se o critério incorporar alguma noção de justiça, a qualidade de uma sociedade tem de se medir pela extensão da sua pobreza e da sua violência tanto ou mais do que pelos êxitos científicos ou pela sofisticação das suas classes abastadas.

Para quem persiste em ver na América um modelo social justo e eficaz que merece ser exportado para os quatro cantos do globo, é educativo relembrar que em torno dos sonhos americanos encarnados pelos Bill Gates e Oprah Winfreys vivem milhões de pobres, excluídos e esquecidos, mantidos às portas da cidade pelas forças policiais. É verdade que também há excluídos em Portugal, mas pelo menos ninguém defende o “modelo português” para os males do mundo.

As pilhagens a que tantos se lançaram na Louisiana logo após a catástrofe mostram essa insuportável tensão entre ricos e pobres, que faz da América um barril de pólvora que qualquer pretexto pode fazer explodir. Em que país do mundo civilizado uma catástrofe dá origem a pilhagens de supermercados e armeiros?

O que aconteceria à América se, por um dia, os seus guardas e militares desaparecessem das ruas? A cadeia de solidariedade entre homens livres que é o sangue da democracia faria ouvir a sua voz ou a América tornar-se-ia de um momento para o outro uma terra de senhores da guerra, de pilhagens e motins, como vemos nos piores países do terceiro mundo?

3. O atraso na reacção de Bush, a paralisia da Federal Emergency Management Agency (FEMA), a incapacidade da Guarda Nacional, a desagregação das forças policiais, a lentidão dos socorros, a degradação dos centros de acolhimento de emergência (e a sua própria falta de segurança, com registo de homicídios e violações), a segregação racial evidente, a falta de conservação das obras públicas que podiam ter evitado o desastre são temas que irão continuar a fazer correr tinta nos próximos dias.

Mas, para além dos problemas, é importante ver a atitude que foi adoptada para os resolver: a entrega da sua resolução aos militares.

A militarização dos Estados Unidos e da sua política, a nível interno e externo, é um facto, triste e preocupante. É um sinal dessa militarização que não só a reposição da ordem nas ruas de Nova Orleães mas também a organização dos socorros e das obras de emergência tenha sido entregue não a agências civis como a FEMA mas principalmente aos militares. Os americanos têm uma dificuldade crescente em encontrar projectos comuns e heróis que não sejam do foro militar. Um tique pouco auspicioso.