terça-feira, novembro 01, 2005

História de terror

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 1 de Novembro de 2005
Crónica 32/2005

A verdadeira harpia desta história não é Fátima Felgueiras mas a senhora cega da balança.

A história do caso Felgueiras é uma verdadeira história de terror. Uma história de terror onde o que nos horroriza não são os crimes eventualmente cometidos pelos arguidos mas a maneira como o aparelho da Justiça se tem encarregado da sua investigação e se encaminha para o seu julgamento. A verdadeira harpia desta história não é Fátima Felgueiras mas a senhora cega da balança na sua versão portuguesa.

Sempre houve sacos azuis para comprar favores à margem das contabilidades, corrupção de agentes da administração, clientelismo dos poderosos, desvios de fundos, financiamento ilegal de partidos, pagamentos irregulares a clubes de futebol, enriquecimento pessoal ilícito, tráfico de influências, fugas de informação e fugas à justiça. E nada disso é especialmente preocupante numa sociedade (todas as sociedades têm crimes) desde que exista algum sistema de fiscalização desses ilícitos, que apure os factos, julgue e aplique sanções – um sistema de referência que imponha a lei e que aplique a justiça. Tudo muda de figura quando aquilo que a Justiça faz parece irracional ou incompetente e quando os processos se arrastam acumulando suspeitas de procedimentos irregulares, como acontece aqui.

Se os magistrados estão tão preocupados como dizem estar com a dignificação da Justiça, poderiam talvez perder um pouco do tempo que dedicam a reuniões sindicais a demonstrar aos cidadãos que a Justiça está a fazer exactamente aquilo que deve e que aquilo que faz se traduzirá no melhor resultado possível para a sociedade.

A decisão de anular os testemunhos das duas testemunhas principais no caso Felgueiras é provavelmente irrepreensível em termos formais, mas os cidadãos precisam de saber (e têm o direito de saber) se ela é razoável, justa e eficaz em termos sociais. E têm o direito de saber porque, caso se imponha mudar as leis, cabe-lhes a eles (através do seu voto) fazer isso.
E se os portugueses têm o direito de saber, o sistema judicial tem, simetricamente, o dever de explicar.

O que é intolerável é que a justiça continue a funcionar em circuito fechado, protegendo-se do escrutínio exterior em nome da independência do poder judicial ou do segredo de justiça.
A Justiça não está de facto acima dos cidadãos e a sua independência não faz dela um sistema de poder de direito divino. Já se fez aliás uma revolução há duzentos anos que esclareceu estas coisas do direito divino. O escrutínio da Justiça, o conhecimento não apenas das leis mas dos seus métodos, dos seus critérios, da sua cultura e da actuação real dos seus agentes é um direito dos cidadãos.

E, da mesma maneira que a sociedade tem direito a investigar alguém que suspeita que se tenha apropriado de dinheiros públicos, também tem o direito de exigir que a Justiça e os seus agentes sejam investigados quando suspeitos de comportamentos irregulares – quer se trate das declarações gravadas de um juiz-conselheiro, das negociações entre a PJ e uma foragida, da entrega de um inquérito a um dado procurador ou de informações que um magistrado faz chegar a um suspeito sob investigação. O sistema judicial e os magistrados não estão acima da lei.
Que existam suspeitas de comportamentos irregulares, que elas sejam públicas e não sejam investigadas é intolerável e constitui um atentado à dignidade da Justiça.

Os chamados casos mediáticos dos últimos anos permitiram a todos os cidadãos ficarem com uma ideia da Justiça. Péssima em geral. Mas durante alguns anos podia parecer que tudo se resumia a desorganização de serviços, a falta de computadores, tiranices de funcionários ressabiados, pequenas corrupções, desleixos e pequenas infâmias, juízes rezingões mais preocupados com a forma que com a vida, leis antiquadas ou contraditórias que alguém se tinha esquecido de mudar ou advogados brilhantes capazes de encontrar os mais pequenos buraquinhos da lei através dos quais conseguiam empurrar os seus clientes.

Hoje, porém (e em parte graças ao caso Felgueiras), percebemos que não é assim. E percebemos que não é assim não pelas coisas estranhas que chegaram ao nosso conhecimento mas pela maneira como o colectivo de profissionais da justiça assobia para o ar perante essas coisas estranhas.

A Justiça tem cadáveres no armário. E começam a cheirar mal.

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