terça-feira, março 28, 2006

Reescrever a Web

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 28 de Março de 2006
Crónica 13/2006

Cada novo ministro, ansioso por apagar as marcas do seu antecessor, gosta de encomendar um novo site

No dia da tomada de posse de Cavaco Silva, o site da Presidência da República, www.presidenciarepublica.pt, desapareceu para ser substituído por um outro, com outro endereço, www.presidencia.pt .

Enquanto o site anterior girava em torno de Jorge Sampaio, o novo, como é natural, centrava-se no novo presidente. A mudança de conteúdo não teria nada de especial não fosse o caso de o novo site ter relegado para lugar desconhecido aquilo que era o espólio do site da Presidência da República quando ocupada por Jorge Sampaio. A informação poderá estar cuidadosamente guardada, mas onde e como se poderá aceder a ela não é do domínio público.

O que aconteceu foi que aquele que devia ser o site oficial da Presidência da República Portuguesa, um site institucional, com alguma preocupação de perenidade, se transformou no site do Presidente Cavaco Silva (há um link que atira para os currículos dos anteriores presidentes, mas é tudo).

Se passássemos da Internet para o mundo físico, isto corresponderia a encaixotar todos os papéis encontrados no Palácio de Belém que dissessem de alguma forma respeito ao ocupante anterior e a enviá-los para armazenamento em local inacessível, para começar a nova presidência numa bela tábua rasa de informação, sem história e sem passado.

O que aconteceu na Presidência da República acontece também, regularmente, sempre que há mudanças de Governo em Portugal. Cada novo ministro, ansioso por apagar as marcas do seu antecessor, apressa-se a encomendar novo site (quase sempre ingenuamente convencido/a da facilidade da operação) e, regra geral, encafua em local misterioso a informação que aí se encontrava, produzida com os dinheiros dos contribuintes, e que, se nalguns casos é propaganda sem utilidade de maior, noutros constitui um importante acervo de informação.

Esta atitude é um desperdício de recursos e pode constituir em certos casos a perda de informação irrecuperável. É evidente que deveria ser possível a qualquer cidadão consultar um site do Governo, deste e dos anteriores, saber o que fez e disse cada ministro, mas tudo o que podemos fazer é consultar os sites do XVII Governo. O que veio antes foi relegado para o caixote de lixo da História.

A cada Governo, cada gabinete inventa cuidadosamente a roda do seu site na Internet, apenas para garantir que da informação respeitante ao partido anterior, ao governo anterior, à equipa anterior e ao ministro anterior é deixado o mínimo rasto possível.

Manter em funcionamento um site de uma equipa anterior pode levantar alguns problemas técnicos, mas a manutenção dessa informação deveria constituir uma preocupação, em nome do interesse público. O Governo actual, tão preocupado com a produtividade e com as novas tecnologias, talvez pudesse tentar estabelecer algumas regras de bom-senso (uma discussão prévia com partidos, documentalistas e historiadores poderia não ser inútil) que prevenissem a fúria saneadora dos novos Governos e definissem normas de boa prática na construção dos sites oficiais. Essas normas deveriam permitir não deitar para o lixo o que custou caro, nem obrigar um novo ministro a viver com o site do anterior. E, talvez, nesse esforço de boas práticas, se pudesse também uniformizar os nomes dos sites dos ministérios, que primam pela diversidade de critérios.

Nota: A crónica da semana passada tinha como tema um livro de Harry G. Frankfurt publicado nos Estados Unidos no final de 2005, com o título "On Bullshit". Soube posteriormente que existe uma edição portuguesa do livro, exactamente com o mesmo título que tinha dado à minha crónica ("Da Treta"), de iniciativa da editora Livros de Areia, de Viana do Castelo.

terça-feira, março 21, 2006

Da treta

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 21 de Março de 2006
Crónica 12/2006

À medida que os critérios do marketing se vão alargando a todas as áreas da actividade humana, ficamos mais e mais mergulhados em bullshit.

O título desta crónica pretende traduzir o de um pequeno livro recentemente publicado, da autoria do filósofo americano Harry G. Frankfurt: "On Bullshit".

O livro poderia ser humorístico mas não é. Ainda que o título faça sorrir, o seu autor, que é um reputado professor de filosofia de Princeton, tenta responder a questões sérias como: O que é? Por que é que há tanto? Que função social serve? O que significa para nós?

Como o autor explica, apesar da enorme quantidade de bullshit ser uma das características mais marcantes da nossa cultura, ele não tem sido objecto de estudo profundo e, por esse facto, "não existe uma teoria" do bullshit, o que é paradoxal considerando a sua ubiquidade. "Mesmo as questões mais básicas continuam não só sem ser respondidas mas até sem ser perguntadas", escreve Frankfurt.

O livro, composto apenas por um ensaio anteriormente publicado numa revista da Universidade Rutgers, mereceu rasgados elogios da crítica e lê-se com agrado, mas deixa um sabor a pouco: Frankfurt faz uma tentativa de definição mas não leva a empresa até ao fim e não chega a abordar a função do bullshit. Mesmo a interessante comparação entre bullshit e mentira mereceria mais.

Frankfurt considera o bullshit uma "ameaça mais insidiosa para a verdade que a mentira", pois o bullshit não só está totalmente "desligado de uma preocupação com a verdade" - enquanto os mentirosos podem manter uma ideia clara da verdade – como é objecto de uma estranha tolerância (enquanto a mentira é vista em geral sem benevolência).

O que é extremamente refrescante no livro de Frankfurt é o facto de ele reconhecer uma tendência – de identificar o bullshit não como um desvio, mas como algo central no discurso moderno.

Uma das funções dos filósofos é esclarecer conceitos e temos de agradecer a Frankfurt ter-se apercebido de que o bullshit não é uma falha mas uma nova norma, não um lapso mas um novo código – que merece o escrutínio dos pensadores e dos cidadãos. Ainda que não seja claro se há algo que se possa (ou deva) fazer a respeito do bullshit.

Segundo Frankfurt, os paradigmas clássicos do bullshit podem encontrar-se "nos domínios da publicidade e das relações públicas e na estreitamente relacionada área da política". Porquê? Porque uma das características do bullshit é que ele visa esconder o que o seu autor realmente pretende. Como explica Frankfurt numa entrevista disponível no site da Universidade de Princeton, quando se quer vender alguma coisa o objectivo é vender, "não é dizer a verdade sobre o produto". E, à medida que os critérios do marketing se vão alargando a todas as áreas da actividade humana, ficamos mais e mais mergulhados em bullshit.

Outra das razões para o aumento do bullshit, ainda segundo Frankfurt, é o facto de a sociedade actual exigir de todos que tenhamos opinião sobre tudo, mesmo sobre aquilo que desconhecemos – o que constitui uma excelente oportunidade para bullshit. Neste contexto, é evidente que o mundo dos media constitui um excelente caldo de cultura de bullshit.

Quando Orwell lançou o seu clarividente conceito de "newspeak" este estava em plena floração estalinista (antes de se alargar a toda a política), mas tratava-se de um fenómeno ideológico. Com o primado do marketing e da gestão da imagem, a conversa da treta (os diálogos de António Feio e José Pedro Gomes são um marco) conquistou prosélitos que alastraram da economia para o todo social: um despedimento colectivo tornou-se uma "reestruturação"; um erro, uma "oportunidade de melhoria"; o discurso tornou-se uma venda e a comunicação uma hipocrisia.
Com este livro, o estudo do bullshit ganhou respeitabilidade. O risco é que a própria essência da treta beneficie do estatuto.

terça-feira, março 14, 2006

Arca de Noé

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 14 de Março de 2006
Crónica 11/2006

A ideia de que só nos resta esperar pela pandemia é profundamente irresponsável

No filme "Deep Impact", um enorme cometa encontra-se em rota de colisão com a Terra. Depois de falhar uma tentativa para o destruir, os Estados Unidos decidem construir enormes cavernas onde um milhão de pessoas vai tentar sobreviver ao impacto. O milhão de americanos a quem cabe salvar a Humanidade da extinção é formado por 200.000 cientistas, médicos e outros VIP e 800.000 cidadãos tirados a sorte.
Na semana passada, num gesto que não podia deixar de suscitar o paralelismo, a Direcção-Geral da Saúde anunciou o seu plano de tratamento preventivo de 100.000 portugueses contra a gripe das aves, informando que, na impossibilidade de fornecer o tratamento preventivo a toda a população, se tinha decidido garantir o tratamento dos portugueses essenciais para "manter o tecido social a funcionar" na perspectiva, provável, de uma pandemia de gripe.

Imagina-se que as intenções da DGS e do Ministério da Saúde terão sido as melhores mas, se o que pretendiam era acalmar os portugueses demonstrando que o país está preparado para a pandemia, não atingiram o objectivo.

Não pode haver nada mais alarmante do que ouvir o anúncio desta Arca de Noé (mais generosa proporcionalmente que a de "Deep Impact", note-se) e ouvir os responsáveis de Saúde preparar-se para a pandemia que pode chegar, sem os ouvirmos preparar a população para aquilo que podem e devem fazer agora, quando a gripe das aves é ainda uma gripe das aves, e sem ouvir o que estão a fazer para monitorizar e controlar (na medida do possível) aquilo que é ainda controlável.

Num texto publicado há dias no diário "International Herald Tribune", a especialista de doenças emergentes Laurie Garrett alertava: "Mais do que esperar que uma vaga de H5N1 varra todas as aves do mundo, sofra mutações e se transforme numa vaga que cubra a Humanidade, devemos criar linhas de defesa que comecem nas aves selvagens, que se estendam às aves de criação e que apostem no desenvolvimento de técnicas rápidas de avaliação dos seres humanos, para determinar quem está e quem não está infectado com o vírus". As palavras de Garrett, uma perita do Council on Foreign Relations, são de uma sensatez à prova de bala, mas os responsáveis sanitários portugueses (e de outros países) decidiram aceitar a ideia de que já não há nada mais a fazer a não ser esperar a epidemia, numa posição que pode agradar aos fabricantes de medicamentos mas esquece medidas do domínio da saúde pública. Há dias, criticou-se nesta coluna a posição das autoridades sanitárias, que se comparavam a avestruzes de cabeça na areia. Parece que as mesmas entidades decidiram provar a incorrecção da imagem decidindo agir como galinhas sem cabeça.

Tentando ser claro: não se põe em questão a necessidade de prever tratamentos preventivos e de os escalonar de acordo com as disponibilidades de medicamentos e as necessidades sociais – no limite nem estão em causa os 100.000 – o que está em causa é a ideia transmitida à população de que, agora, só nos resta esperar pela epidemia e rezar para que a nossa família esteja entre o 2,5 milhões que tomarão o Tamiflu (que ninguém sabe que eficácia terá). Essa ideia é profundamente irresponsável.

Agora ainda é a altura de alertar a população para as formas de contágio dos seres humanos pelas aves (o que ainda não se fez), ainda é altura de tentar evitar por todos os meios o contágio de aves domésticas e de porcos (o que ainda não se fez), ainda é altura de mobilizar a população para monitorizar as aves selvagens infectadas de forma a localizar o perigo (Garrett sugere mobilizar bird-watchers e ornitologistas). Mas isto tudo deve ser feito antes da pandemia. Mais vale prevenir.

terça-feira, março 07, 2006

Ainda a liberdade

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 7 de Março de 2006
Crónica 10/2006

A única maneira de evitar a possibilidade de ser ofendido, é aceitar a certeza de ser escravizado.

As questões da liberdade de expressão e da liberdade de imprensa e dos seus limites continuam a alimentar muitas conversas. O assunto não se consegue esgotar, tanto mais que as linhas de clivagem atravessam grupos e ideologias estabelecidas e descobrimos por vezes nessas discussões proximidades insuspeitadas ou distâncias surpreendentes, que nos obrigam a redesenhar cuidadosamente os mapas de valores de cada um, sem poder seguir a grelha conhecida de latitudes e longitudes, sondando cuidadosamente a profundidade das águas em cada baía, prolongando as linhas de rumo de cada raciocínio, como se desenhássemos de novo sobre um pergaminho uma carta portulano medieval.

Numa dessas discussões em que participei, alguém referiu, a propósito (ou a despropósito) da liberdade de expressão (que defendo), os Códigos de Praxe e as práticas associadas (que não defendo). Devo dizer desde já que partilho, quanto às chamadas "praxes académicas", a opinião de José Mariano Gago que as rotula sem ambiguidade de "práticas fascistas". É o que são em muitos casos, se não em todos. E quem tiver dúvidas pode ler, entre outros, o Código de Praxe da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (http://home.utad.pt/~cv) onde pode encontrar pérolas como "O caloiro não tem direitos nem voz activa, excepto os consagrados pelo presente Código de Praxe".

Porque é que a praxe ofende os direitos? Porque é que não é apenas uma brincadeira aceitável em nome da liberdade de expressão? Porque ela impõe uma prática de submissão, porque ela obriga os estudantes mais novos a humilhar-se e a submeter-se aos abusos dos mais velhos. Porque ela limita de facto a liberdade dos outros, além de ofender a sua dignidade. Há na praxe não apenas uma ideia de prova de iniciação mas um real abuso do mais fraco, o que é ignóbil. É por isso que a praxe não devia existir (pelo menos nessa forma) e é por isso que não tem lugar numa universidade. E isso não devido a um qualquer direito à censura (que não existe), mas devido às obrigações da Universidade perante a sociedade, aos valores que deve assumir e promover. Mas atenção: que um qualquer saudosista proponha no seu site um tal código de praxe é algo a que essa pessoa terá evidentemente direito.

Da mesma forma, não é o facto de um "jornal sério" se negar a publicar os cartoons de Maomé que prova que eles não têm o direito a ser publicados. Um jornal (ou um cidadão) consciente não explora sempre até ao limite todas as suas liberdades. Há coisas que temos o direito de fazer e escolhemos não fazer – isso é parte integrante da liberdade. O direito não tem de ser utilizado para existir, nem prescreve por não o ser, ainda que por vezes deva ser usado por pura reivindicação da sua existência.

A praxe é condenável porque nela se obriga alguém (por coacção física ou pressão dos pares), mas o uso da liberdade de expressão não restringe a liberdade de ninguém.

Há quem tente comparar o comportamento do "cartoonista" (usemos expressões de código por facilidade de linguagem) que não aceita ser calado, ao do "muçulmano" que não aceita ser ofendido. A analogia está ferida porque os comportamentos não são simétricos. Enquanto que a acção do muçulmano nesta parábola pretende forçar o cartoonista e restringir os seus movimentos, a acção do cartoonista não força nem limita o muçulmano. E esse respeito da liberdade (de ambos os interlocutores neste confronto) é, nas democracias liberais, mais importante que o risco de ser ofendido. É que a única maneira de evitar a possibilidade de ser ofendido, é aceitar a certeza de ser escravizado.