terça-feira, julho 18, 2006

À espera da criação

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 18 de Julho de 2006
Crónica 27/2006

Os insultos possíveis vão desde as comparações zoológicas à atribuição de uma conduta dissoluta aos membros da família

As reacções à cabeçada de Zidane na final do Campeonato Mundial de Futebol deram origem ao aparecimento de dois grupos de pessoas: os que consideraram o gesto indesculpável e a sanção justa e os que se recusaram a julgar de forma definitiva o jogador francês e consideraram que tinham de saber, antes disso, o que lhe tinha dito o defesa italiano Materazzi para levar um homem habitualmente calmo a uma tal agressão.

De acordo com o que se viu nos replays mais difundidos da história da Internet, era evidente que Materazzi tinha dito qualquer coisa a Zidane e que este o tinha agredido em resposta. Tinha respondido com uma cabeçada a um insulto. Mas isso não era suficiente para todos. "O que eu gostava de saber era o que é que o italiano lhe terá dito para o irritar daquela maneira", diziam os que hesitavam na condenação moral. E não era suficiente dizer-lhes que os insultos possíveis vão desde as comparações zoológicas do próprio à atribuição de uma conduta moral dissoluta aos vários membros da sua família, com mais ou menos pormenores pitorescos, passando pela atribuição de preferências sexuais heterodoxas a pessoas próximas e pouco mais.

Na cara dos renitentes afivelava-se a careta da dúvida: "Não me parece. Isso já ele deve ter ouvido muitas vezes e nunca reagiu assim. Foi alguma coisa especial." E não valia de nada sugerir os comentários de ordem racial, religiosa ou a acusação de simpatia por práticas terroristas ou ameaças físicas e psicológicas de vários tipos e garantir que nada mais poderia ter sido dito. A resposta destas pessoas (todas profundas ignorantes de futebol e mais ignorantes ainda dos hábitos dos jogadores envolvidos) era a mesma: "Isso deve ele ouvir todos os dias... Deve ter sido outra coisa". Mas o quê?

As primeiras sugestões lançadas pelos media, incluindo declarações de um perito em leitura labial que descrevia em pormenor as palavras de Materazzi (suavizadas para poderem ser reproduzidas em meios de comunicação de consumo familiar) não conseguiram apaziguar a inquietação destes curiosos que continuaram a recusar todas as possibilidades conhecidas do domínio lexical para imaginar uma ofensa verbal de um cariz nunca antes explorado, um ultraje de um tipo nunca antes experimentado, tocando talvez numa área da vida de Zidane que não teria a ver com sexo, nem com família, nem com raça, nem com honra, nem com religião mas que seria, apesar disso, essencial à sua pessoa, essencial à sua vida, que teria sido posta em causa por meia dúzia de palavras e que teria sido insuportável.

Tratar-se-ia talvez do núcleo duro da alma humana, de uma zona totalmente nova ou esquecida, que constituiria o cerne deste homem (ou de todos os homens) e que não poderia ser posta em causa sem provocar a desagregação de todo o seu ser. O que estas pessoas esperavam no fundo era que Materazzi tivesse gerado com as suas palavras um universo paralelo, um mundo onde outras coisas seriam possíveis, onde as mesmas causas do nosso mundo não causariam os mesmos efeitos, onde certas palavras não pudessem ter como resposta senão uma cabeçada. Esperavam, numa palavra, que ele tivesse criado. E viviam a espera do momento em que seria revelado esse segredo da criação como outros esperam o anúncio do Nobel, a tiragem do Euromilhões ou um sinal do céu. Quando se tornou evidente a banalidade do caso, voltaram para as suas vidas, sem perceber por que razão tinham imaginado que pudesse haver outra coisa.

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