terça-feira, setembro 19, 2006

Todos os fogos

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 19 de Setembro de 2006
Crónica 32/2006

Um papa incendiário ou imprudente não augura nada de bom em tempos de crispação religiosa.

1. Se fosse apenas um teólogo entre outros, Ratzinger poderia falar do que lhe apetecesse, no tom que lhe apetecesse, citando quem lhe apetecesse. Dá-se porém a circunstância de Ratzinger ser não só uma autoridade da Igreja Católica mas o seu Sumo Pontífice. Investido desta autoridade, deste poder espiritual e político e desta capacidade de representação, é evidente que o papa Bento XVI não pode dizer o que disse em Ratisbona.

As suas palavras, se foram medidas, mostram-nos um papa calculistamente incendiário e apostado em alimentar e liderar um conflito de religiões. Se não o foram, mostram um papa imprudente e que ainda não percebeu que deixou para sempre de ser professor de teologia, o que não augura nada de bom em tempos de crispação religiosa.

Com esta intervenção, Bento XVI perdeu (junto das outras comunidades religiosas e também entre os católicos) uma parte da autoridade que deveria pelo contrário preocupar-se em reforçar por todos os meios, de forma a constituir-se como um elemento de racionalização e apaziguamento na relação entre religiões. Se houve altura em que esse diálogo se mostrou necessário, esta é certamente uma delas.

Posto isto, é evidente por outro lado que a reacção de uma parte do mundo muçulmano, traduzida em ameaças e agressões, não é de forma alguma admissível – mesmo que se faça das palavras do Papa a leitura menos benevolente.

É evidente que existe um problema com o Islão que não tem a ver com a mensagem do Alcorão (na Bíblia também é possível encontrar mensagens para todos os gostos) ou com a história de Maomé (também há protagonistas bíblicos para todos os gostos), mas com a manutenção de uma interpretação retrógrada, fundamentalista e agressiva do Islão que possui em muitos países e regiões do mundo islâmico uma posição predominante. É evidente que isso também existiu no mundo cristão – as conversões à espadeirada, os massacres de "infiéis", os autos-de-fé e a Inquisição (cuja versão modernizada Ratzinger dirigiu) são páginas negras da história "ocidental" e é verdade que continua a haver quem faça do cristianismo uma leitura retrógrada, fundamentalista e agressiva (certos evangelistas norte-americanos são um exemplo). Mas a diferença é que essas leituras totalitárias cristãs não são hoje hegemónicas (o diabo seja surdo) e, acima de tudo, existe uma avalanche de vozes "ocidentais" que as condenam - na política, nos media, na academia, nas próprias igrejas. Falta ouvir essa avalancha no mundo muçulmano.

2. A jornalista italiana Oriana Fallaci, que morreu na semana passada e que foi – apesar dos seus inúmeros destemperos – uma corajosa defensora da liberdade, considerava o fundamentalismo islâmico o novo nazismo.

É importante compreender que, de facto, o fundamentalismo islâmico - teocrático, totalitário, imperialista, segregacionista, bélico e terrorista – constitui uma ameaça à democracia e à liberdade e que neste confronto não se deve ceder um milímetro do essencial em nome do medo ou da má consciência. Para dar um exemplo concreto: é inaceitável que a situação de inferioridade de mulheres muçulmanas seja aceite nas sociedades ocidentais em nome do multiculturalismo, da aceitação da diferença ou do respeito religioso.

Só que, muitas vezes, alguns dos que defendem a firmeza na defesa dos valores da liberdade, apressam-se a meter no mesmo saco dos fundamentalistas todos os muçulmanos e todos os árabes e, já agora, aqueles que são mais morenos que a conta.

É importante ter em conta, por outro lado, que em nome da firmeza, não se pode pôr de lado a acção política e deixar de tentar compreender o fenómeno do terrorismo para erradicar as suas causas e para dissolver a base de recrutamento dos terroristas.

Entre estas duas posições (defesa da liberdade e da igualdade, respeito da diferença e acção política contra o terrorismo), inscreve-se um carreiro que se vai estreitando, onde cada vez é mais difícil caminhar, de onde é fácil cair para um lado ou para o outro e onde a companhia é cada vez mais escassa.

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