terça-feira, dezembro 19, 2006

Nós e os outros

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 19 de Dezembro de 2006
Crónica 44/2006

Quem são os "cidadãos da nova democracia digital" de que fala a "Time"?

1. A ilustração de capa da última revista "Time" é um espelho, feito com um pedaço de mylar colado no papel, onde cada leitor se pode ver reflectido. O número é dedicado à Pessoa do Ano 2006 que desta vez é "Você" – "You" no original. Para que o leitor surpreendido pela honra não tenha dúvidas, a revista explica, ainda na capa: "Sim, você. Você controla a Idade da Informação".

A ideia é boa. É original e há bons argumentos para a defender, além de escovar o ego dos leitores reflectidos e de vender revistas – o que não é um crime.

2. A razão da escolha da "Time" é a explosão da chamada Web 2.0 – um conceito que se traduz na multiplicação de sites que permitem a partilha de informação e o trabalho cooperativo, que facilitam a criação de comunidades e que popularizaram os blogs, a difusão de informação e a comunicação entre cidadãos comuns. A Web 2.0 (uma designação adaptada por piada da indústria de software) e a Web social (um conceito que coloca a ênfase na Web como ferramenta de interacção social), a cujo nascimento estamos a assistir, são fenómenos de enorme impacto social, económico, cultural e político. Os tempos que estamos a viver são extremamente excitantes e todos temos a sensação de estar a participar numa revolução na qual depositamos enormes expectativas. E, por isso, a escolha da "Time" parece justa e estimulante.

3.
O problema da tecnologia é que as possibilidades com que nos acena fazem-nos sonhar de tal forma que por vezes é difícil separar a potencialidade da realidade ou admitir que os caminhos da evolução podem não ser os mais desejáveis. E a realidade é que, por muito inclusiva que seja esta tecnologia (e é em muitos casos), também ela gera exclusão. Por muito poder que ela dê aos seus utilizadores anónimos (e dá em muitos casos), ela não permite resistir à lógica avassaladora de um mercado frequentemente desumano. Por muitas oportunidades económicas que ela abra (e abre em muitos casos), ela não tem permitido reduzir o fosso entre ricos e pobres – que cresceu ao longo dos mesmos anos em que a Web alargou a sua influência. Que, por muito social que ela seja, ela não dá mostras de poder inflectir o comportamento dos países ricos em relação ao ambiente, à pobreza ou à guerra.

4. Que existem potencialidades que apenas agora começamos a vislumbrar na Net parece evidente. Que a Net pode conferir um enorme poder ("empowerment") aos cidadãos também parece evidente. Que a Net pode servir (e deve servir) para difundir e aprofundar a democracia também não merece dúvida. Mas que esse poder constitua uma diferença para os milhares de milhões de seres humanos vítimas da fome, da guerra e da pobreza crónica, sem-abrigo, sem trabalho, sem-papéis, sem-terra, é uma completa falsidade. Eles não são os novos "cidadãos da nova democracia digital" de que fala a Time. "You" não são eles. Eles são os outros. Não aqueles com quem se fala, mas apenas (no melhor dos casos), aqueles de quem se fala.

5. Se quando diz "you" a "Time" fala daqueles que terão a sorte de se ver reflectidos na sua capa, do grupo dos seus leitores, o "empowerment" poderá ser real. Mas ele não o é para os outros, para aqueles que a própria tecnologia permite dispensar, para os redundantes da sociedade pós-industrial. Para esses, o "you" é tão real como o "american dream" é real para um sem-abrigo nigeriano, como o "Give me your tired, your poor" da Mãe dos Exilados é real para uma prostituta seropositiva de Taiwan, como os quinze minutos de fama são reais para uma criança malnutrida do Burkina Faso. Esses não pertencem aos que estão "a transformar a Idade da Informação", como diz a "Time". Nem pertencem ao número dos que se assustam com o "excesso de democracia" da Web, como diz a "Time". Eles não controlam a Idade de Informação. E os seus números são crescentes.

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