terça-feira, janeiro 31, 2006

Razão irracional

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 31 de Janeiro de 2006
Crónica 5/2006

O nosso cérebro é uma máquina de encontrar analogias e de fazer catalogações. E isso é uma actividade que não se pode desligar.

O nosso cérebro é uma máquina tão eficaz a comparar dados, encontrar padrões e deduzir regras que consegue realizar sem esforço a tarefa de encontrar inteligência mesmo naquilo que a não tem.

Há provas evidentes disto à nossa volta, mas poucas são tão eficazes como ler os horóscopos que as revistas mais ou menos femininas nos fornecem.

A verdade é que não é possível ler certas frases sem que o nosso pensamento voe para uma situação real (passada, presente ou simplesmente possível) com alguma semelhança com a referida. Não é possível ler “Dedique uma parte do dia a tratar das questões domésticas que tem negligenciado” sem nos lembrarmos daquela reparação que já devíamos ter feito e para a qual ainda nem tivemos tempo de pedir os orçamentos. Ou ler “Dê um salto a um ginásio e goze uma boa massagem” sem pensarmos que, realmente, merecemos um bocadinho mais de atenção de nós próprios.

Isso acontece porque o nosso cérebro é uma máquina de encontrar semelhanças, analogias e de fazer catalogações. E isso é uma actividade automática, que não se pode desligar. Não se pode ler “Está a atravessar um momento em que é particularmente atraente para o sexo oposto” sem pensarmos naquela colega que ri de uma maneira tão fresca de todas as nossas piadas.

Os estudos científicos feitos sobre a astrologia dizem-nos que uma das razões para o seu êxito é o facto de recorrerem a lugares-comuns que são verdadeiros para qualquer pessoa (“Existe um conflito entre a sua vida profissional e a sua vida pessoal” ou “Você é uma pessoa prudente, mas às vezes gosta de arriscar” ou “Às vezes custa-lhe encontrar um equilíbrio entre os seu eu racional e o seu eu emocional”) e de no-los apresentarem como tendo sido feitos apenas para nós.

Quando um destes retratos genéricos é mostrado a alguém e se pergunta a essa pessoa se lhe parece que o retrato se aplica mais a si ou aos outros, ela dirá que se aplica especialmente bem a ela (é natural, todos somos um pouco egocêntricos). Mas existem outras razões para a fé na astrologia.

Também existem horóscopos, muitas vezes sob a forma de bons conselhos, que foram escritos propositadamente para se transformarem em profecias auto-realizadoras (“Hoje, vai apreciar tudo o que vir à sua volta. Goze a beleza da Natureza”). Alguém que acredite nos signos verificará que o seu horóscopo tem, de facto, uma espantosa clarividência, pois, consciente ou inconscientemente, irá fazer o possível para que ele se realize. Um autor de horóscopos profissional terá ainda o cuidado de escrever a uma sexta (mas não a uma terça) coisas como “Hoje vai sair para se divertir, mas coma e beba com moderação” ou “Não se preocupe com o que os outros pensam de si. Faça algo louco e arriscado”.

O que isto quer dizer é que, mesmo sem truques baixos, é impossível ler os signos sem... acreditar neles. Sem constatar que eles se aproximam espantosamente da nossa vida.

É impossível não encontrar paralelos entre o horóscopo e a nossa vida e é difícil acreditar que isso acontece por acaso. Para não acreditar nos signos é preciso um olhar céptico e o recurso a técnicas de validação (verificar que os outros signos que não o nosso “acertam” na nossa vida tantas vezes como o nosso) que estão afastadas da prática quotidiana da maior parte de nós. É natural que uma simples olhadela distraída ao horóscopo dê origem a uma crença na astrologia.
Da mesma forma, o nosso cérebro encontra relações e racionalidade noutros locais onde eles não existem: é assim fácil ver conspirações onde só existe má-vontade, estratégia onde só existe negligência e corrupção onde só existe desleixo.

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