terça-feira, junho 20, 2006

A senhora da "Review"

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 20 de Junho de 2006
Crónica 23/2006


"The New York Review of Books" é mais do que uma revista: é uma revista com alma.

O nome que vem no cabeçalho da primeira página é "The New York Review of Books", mas o nome comum é "New York Review". A menção "of Books" aparece por baixo, em corpo mais pequeno, e essa discrição traduz uma intenção. A "Review" fala de livros, mas não quer ser confundida com uma revista literária. Fala de literatura, de política, de ciência, de arte, de história, da actualidade, de todos os temas e ideias que merecem ser divulgados e discutidos, mas não quer ficar entalada entre uma capa e uma contracapa.

Um dos sinais desse interesse pelas ideias e pela vida pública é o facto de muitos dos artigos/críticas não terem como objecto um único livro mas serem uma leitura comparada de vários livros ao mesmo tempo, de exposições, filmes e análises da actualidade. A "Review" fala de temas, de questões, de "issues". A sua marca? Os menos apreciadores dizem que é a extensão dos textos, dissuasora de leituras diletantes, mas a verdadeira marca é a sua qualidade, a qualidade dos colaboradores – entre os quais se contam alguns dos nomes mais famosos do ensaio e da literatura anglo-saxónica –, as excelentes caricaturas de David Levine e, "last but not least", o seu empenhamento cívico, a sua atenção aos temas políticos e aquilo a que nos EUA se chama uma clara inclinação liberal.

Uma das pessoas responsáveis por esta marca genética, imprimida desde 1963, acaba de desaparecer. A mãe da "New York Review", Barbara Epstein, morreu na sexta-feira de cancro de pulmão, aos 77 anos de idade. Deixou dois filhos, três netos e uma revista que faz honras ao que de mais nobre existe nas artes da edição de livros e de periódicos.

A revista é pequena pelos padrões americanos, com a sua tiragem de 130.000 exemplares, quase só vende por assinatura, tem formato tablóide, a ingrata periodicidade quinzenal, usa papel de jornal grosso e quase só imprime a preto e branco. Mas é mais do que uma revista: é uma revista com alma. Não há no conteúdo ou promoção da revista a mínima concessão ao comercialismo – o que não impede a empresa de possuir uma sólida situação financeira. Há quem a considere um clube mas, se for um clube é um clube de debate político, à maneira do século XIX.

Devo confessar que é a minha droga de eleição e que recebo cada exemplar com a mesma expectativa com que, há algumas décadas, recebia o "Tintin".

Quase todas as apreciações da "New York Review" referem a qualidade dos textos, mas só quem não conhece o ofício pode imaginar que (apesar da qualidade dos autores) eles chegam à redacção naquele formato polido. Essa qualidade é fruto de um conjunto de editores de escol, que revê, critica, sugere, edita e corta até os textos atingirem a excelência. Tal como aliás acontece em qualquer boa editora a qualquer bom livro de qualquer bom autor. Essa era aliás a grande qualidade de Barbara Epstein, que aliava à gentileza pessoal uma determinação feroz em não permitir a passagem de nenhum texto antes de uma série de exigentes revisões e, por vezes, várias reescritas. Os textos da "Review" interpelam, iluminam e mobilizam.

Barbara Epstein estava ao leme da "Review" desde a sua fundação, em 1963, juntamente com Robert Silvers como co-editor – que prossegue agora a tarefa sozinho. A revista tinha sido lançada após um jantar de amigos em casa dos Epsteins, com o objectivo de suprir o desaparecimento temporário do suplemento literário do "New York Times", o "The New York Times Book Review", devido a uma greve de tipógrafos que se arrastaria por quase quatro meses. O projecto era temporário, mas o acolhimento foi tal que o projecto prosseguiu para além da greve. Imaginam a inquietação intelectual destas pessoas, para quem a ideia de ficar sem um suporte onde debater os seus pontos de vista era tão insuportável que decidiram lançar a sua própria revista, recrutando amigos e conhecidos?

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