terça-feira, março 29, 2005

O limbo

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 29 de Março de 2005
Crónica 10/2005

Um novo Governo não pode viver num "off-shore" político

Na religião, o estado de graça corresponde a um estado permanente de comunhão com Deus ou a um estádio na via da perfeição espiritual. Na vida secular, porém, e em particular na vida política, aquilo a que chamamos estado de graça é algo que está condenado a ser perdido a curto prazo. Não é a certeza da eterna inocência nem a absolvição definitiva, mas uma pena suspensa. Não é algo que se atinja mas algo de que se parte, não é algo que se tenha merecido mas algo de que se vai certamente desmerecer.

É verdade que, quando um novo Governo toma posse, é costume falar de estado de graça, discutir-se durante quanto tempo o executivo o vai manter e gerir, como o vai perder. E acabou por se instituir esse compasso de espera quase com dignidade constitucional, como os períodos de campanha eleitoral.

Na realidade, porém, trata-se mais de um período de nojo. Acabámos de retirar do poder um Governo para lá pôr outro e precisamos de tempo para recriar a nossa representação do mundo. Por outro lado, é também uma questão de pudor: é de mau gosto lançarmo-nos à garganta dos recém-chegados, como se nos tivéssemos já arrependido da escolha, sem lhes dar tempo para cometer alguns erros.

No fundo, a entidade a quem pretendemos conceder a graça é a nós mesmos: por um momento, sonhamos que fizemos o que devíamos, o melhor que sabíamos e acreditamos que o melhor vai acontecer. E tentamos, com o tacto possível, adiar o momento da desilusão.

Mas se isso é compreensivo por parte do cidadão comum, que tem direito ao devaneio, é inaceitável que as instituições adoptem estas férias que ninguém aprovou.

Enquanto não houver nada para criticar, é evidente que nada deve ser criticado. Mas desde a primeira acção (ou inacção) substantiva que a atenção crítica e a fiscalização (dos media, de oposições, das instituições, da sociedade civil) se devem fazer ouvir e sentir. Não pode haver férias da democracia.

É aceitável que um ministro não fale do que vai fazer antes de ver o Programa de Governo aprovado, é é normal que não se lhe peça contas por algo de que não é responsável, que não teve tempo para conhecer e menos ainda para mudar. Mas isso não é estado de graça: é o tempo que as coisas levam. Da mesma forma, não se pode exigir resultados antes de tempo, mas podem e devem exigir-se ideias, critérios, estratégias, planos, avaliações e decisões. E deve-se certamente exigir respostas e explicações.

Não é aceitável que um ministro não responda a uma pergunta. O que é aceitável (nos primeiros dias de um Governo) é que ele diga que ainda não sabe.

É possível que os primeiros gestos do Governo não nos permitam encontrar a linha mestra da suas acções, perceber o caminho que vai trilhar e, por isso, nos impeçam de fazer uma avaliação global – mas isso também não é o estado de graça, é o benefício da dúvida. E isso não é a ausência de julgamento mas sim uma garantia do julgado durante o julgamento.

É aceitável que haja nos primeiros tempos alguma falta de coerência no comportamento de ministérios, é natural que haja protocolos por estabelecer e hábitos por definir, mas tudo isto deve ser visto pelo olhar da exigência e do "fair play" – no caso de um novo Governo ou noutro qualquer. Muitas coisas não terão importância, outras serão significativas.

O que é claríssimo é que os media não podem decretar ou aceitar que alguém decrete qualquer "estado de graça", um vácuo de escrutínio, um limbo da crítica, um paraíso fiscal para actos políticos. Um novo Governo não pode viver num "off-shore" político. Cada acção relevante deve ser relatada, debatida, comentada e, se for caso disso, rebatida e contestada. O que uma instituição crítica não pode fazer é criticar antes de haver matéria criticável, mas o que não deve fazer é pôr a sua função na gaveta em certos dias do calendário. Se isso acontecer, veremos depois que esses foram os piores momentos para o fazer.

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