terça-feira, julho 14, 2009

Por favor não telefone

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 14 de Julho de 2009
Crónica xxx/2009


O "Serviço" possui profissionais altamente qualificados que podem explicar-nos todas as razões por que não temos razão

"A sua chamada é importante para nós, por favor não desligue". A voz tem um tom de enfado. Imagino que devem ter obrigado a senhora a repetir a mensagem até considerarem a gravação perfeita. Não é.

Musiquinha electrónica. "Lamentamos o tempo de espera. A sua chamada é importante para nós. Por favor aguarde." Musiquinha electrónica. O "por favor, aguarde" surge intercalado com o "por favor, não desligue". É para variar e não ser tão chato. É na mesma. Quando aparece finalmente uma ser humana do outro lado do telefone já não me lembro a quem estava a telefonar. Digo e desligo.

A experiência pode ser mais violenta. "Bem-vindo ao Serviço de Clientes da Silva & Silva." Quando uma gravação diz "Bem-vindo" devemos preparar-nos para o pior. Uma empresa que não põe a hipótese que a pessoa que está a ligar seja uma mulher tem uma visão particular do mundo. E se houver uma referência a um "Serviço de Clientes" deve-se fugir sem perder tempo a desligar o telefone. O "Serviço" possui profissionais altamente qualificados que conhecem todas as técnicas que permitem explicar-nos todas as razões por que não temos razão.

Algumas das mensagens foram produzidas para promover a venda de ansiolíticos. São - as - gra - va - ções - que - di - zem - a - men - sa - gem - mui - to - de - va - gar e nos explicam as coisas muito mais detalhadamente do que precisamos: "Se pretender deixar uma mensagem, espere o sinal sonoro que se vai seguir a esta mensagem gravada. Após a emissão desse sinal sonoro, deve gravar a sua mensagem. Quando terminar a gravação da sua mensagem pode desligar o seu telefone carregando na tecla vermelha".

Há as mensagens didácticas, que nos dizem o que precisamos de fazer para podermos saber o que temos de fazer: "Para um melhor atendimento, por favor ouça atentamente as instruções que lhe vamos transmitir e escolha a opção pretendida seleccionando o número que lhe for indicado". As mensagens primas são outra grande categoria. "Para assuntos relacionados com facturação, prima 1. Para assuntos relacionados com promoções ou para adesões ao serviço Gold, prima 2. Para assuntos relacionados com avarias e apoio técnico, prima 3. Para voltar a ouvir esta mensagem, por favor prima 4. Para ser atendido por um operador prima a raiz quadrada de menos 1." E algumas mensagens levam o cosmopolitismo ao ponto de repetir tudo em inglês, neste caso como forma de promoção de antiácidos.

O que tudo isto significa é que as telefonistas estão a desaparecer. Aquelas pessoas que sabiam quem estava onde, o que fazia cada um, quantas secções havia na empresa, que percebiam os clientes, que conheciam os fornecedores, que tomavam nota de recados, que sabiam reconhecer uma urgência e que até sabiam o que a empresa em que trabalhavam fazia, estão a desaparecer. Os gestores dizem que é um sinal de progresso e que uma gravação faz tudo muito melhor. E até certo ponto é verdade, porque agora podemos ser atendidos por uma doutorada em ciências políticas em cuja secretária a chamada caiu e aproveitar para discutir as lacunas da democracia representativa enquanto ela tenta (infrutiferamente, porque também tem de ouvir a gravação) pôr-nos em contacto com o armazém, que era o que nós queríamos. Mas é evidente que seria preciso ser muito estúpido para pensar que uma gravação é melhor que uma telefonista e os nossos gestores são tudo menos estúpidos. A verdadeira razão tem de ser outra. A minha teoria é que as telefonistas estão a ser chacinadas por um serial killer (ou vários) e as gravações são apenas um estratagema para disfarçar a vaga de crimes. É a única explicação sensata. Se concorda, prima 1. Jornalista (jvm@publico.pt)

quarta-feira, julho 01, 2009

Um marco para a civilização

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 1 de Julho de 2009
Crónica xxx/2009

Ninguém sabe como é mil milhões de pessoas com fome. Mil milhões de pessoas não são ninguém

Este ano, não se sabe exactamente em que dia, o mundo atinge um marco civilizacional: o número de pessoas que vivem com fome no planeta vai ultrapassar os mil milhões - um em cada seis seres humanos. Mais exactamente: segundo a Organização para a Alimentação e a Agricultura das Nações Unidas (FAO), no final deste ano deverá haver 1020 milhões de pessoas que não dispõem de comida suficiente para viver. A somar-se a estes, há mais 2000 milhões que sofrem de malnutrição.

Do ano passado para este, o número deu um salto de 100 milhões, acelerando a tendência que já se fazia sentir desde 1995. Nos anos 80 e na primeira metade dos anos 90, houve uma redução do número de pessoas com carência grave de alimentos, mas essa tendência sofreu uma inversão em meados dessa década e os números de pessoas com fome (e mortes por inanição) têm vindo a aumentar desde então. Note-se, como faz a FAO, que isto não se deve a falta de alimentos, que são cada vez mais abundantes. Deve-se à falta de dinheiro destas pessoas para comprar alimentos, agravada pela actual crise financeira - que reduz o crédito e as remessas de emigrantes. E ao facto de não possuírem capacidade autónoma de produção de alimentos devido à destruição da sua agricultura por opções políticas erradas, pela guerra, pela seca, pelas alterações climáticas, pela concorrência desleal da agricultura americana e europeia.

O triste cabo que dobramos este ano é particularmente irónico porque, em Setembro de 2000, os líderes mundiais, reunidos sob a égide das Nações Unidas, aprovaram uma Declaração que continha os Objectivos de Desenvolvimento do Milénio, onde se definiam metas concretas de combate à pobreza, à fome, à doença, à injustiça e à destruição do planeta entre as quais se encontrava a redução para metade até 2015 (em relação a 1990) do número de pessoas em situação de pobreza e fome extremas. E esta não foi a primeira vez que o mundo decidiu acabar com a fome. Em 1996, a Cimeira Mundial da Alimentação de Roma já tinha decidido reduzir os famintos a metade em 2015 e Jacques Diouf, que era e ainda é o director-geral da FAO, dizia na altura: "O objectivo está ao nosso alcance. Temos o conhecimento. Temos os recursos. E temos a vontade."

E ainda antes disto, na Conferência Mundial da Alimentação de 1974, o mundo já tinha até decidido acabar com a fome, a insegurança alimentar e a malnutrição "ao longo da década seguinte".

Apesar destas promessas, a fome mundial não deixou de alastrar: 825 milhões de famintos em 1995-97, 857 milhões em 2000-02, 873 milhões em 2004-06, 915 milhões em 2008, 1020 milhões este ano.

Há muitas maneiras de olhar para estes números, mas, pelo meu lado, gostaria que não olhássemos para os números. Ninguém sabe como é mil milhões de pessoas com fome. Mil milhões de pessoas não são ninguém. Não se pode conhecer mil milhões de pessoas, não se pode gostar de mil milhões de pessoas, não se pode sequer ver mil milhões de pessoas.

Pense apenas numa. Escolha uma.

Há muitas por onde escolher, ainda que os jornais e as televisões, para nossa vergonha, tenham mais gosto em publicar fotos de Paris Hilton do que uma só dos seis milhões de crianças que morrem por ano de fome. Um Holocausto por ano, um Holocausto infantil, a somar-se a outros, de homens e mulheres, um Holocausto indiferente, sem a honra de um memorial, sem protagonistas, sem ódios sequer, como se acontecesse apenas por obra do acaso, quando sabemos que se produz no mundo comida suficiente para cada uma destas crianças que deixamos morrer, quando sabemos que "temos o conhecimento e os recursos" para evitar que elas morram. Quando sabemos que até temos conhecimento e recursos suficientes para aumentar cada vez mais, de ano para ano, a riqueza dos mais ricos do planeta.

Pensemos, portanto, apenas numa delas. Por mim, vejo uma criança somali, uma coisinha de uma fragilidade extrema, de olhos cheios de surpresa, já para além da fome, ao colo da mãe, uma imagem cadavérica de dignidade, resignação e tristeza, coberta por um manto castanho, uma Pietà anónima, como uma de há dois mil anos, como qualquer uma das 16.000 que a fome vai fazer hoje. A legenda da fotografia, tirada nos anos 90, dizia que a criança tinha morrido logo depois de o fotógrafo ter feito a fotografia e sei que, de cada vez, lia a legenda com um misto de dor e de alívio.

Só sei que mil milhões é o sofrimento desta criança e desta mãe repetido sem fim, sem fim, sem alívio. Jornalista (jvm@publico.pt)