terça-feira, setembro 15, 2009

Willy Ronis, o fotógrafo das pequenas coisas

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 15 de Setembro de 2009.
Crónica x/2009

Na morte do autor de muitas das imagens com que recordamos a França do pós-guerra
É o interior de uma casa de campo, uma casa rústica de pedra, chão de grandes lajes de pedra, parede áspera. A divisão adivinha-se ampla, em primeiro plano está uma cadeira de palha que era do Van Gogh e há um espelho oval na parede.
Pousado no chão está um grande jarro de louça e encostado à parede, num canto, um almofariz de pedra com o seu pilão. No centro está uma mulher nua, de costas, de pé num grosso tapete de palha redondo, reclinada sobre uma bacia de louça, no seu suporte de ferro. A mulher lava-se na bacia, pernas ligeiramente flectidas, dorso curvado, o seu corpo em contraluz por causa da janela, de portada de madeira escancarada, por onde entra um sol glorioso e inclemente e através da qual se vê um maciço de vegetação mediterrânica sobreexposta, sedenta e vigorosa, que ocupa todo o rectângulo. A fotografia cheira a palha seca (da cadeira, do tapete, de um fardo de palha no sótão), a pedras aquecidas pelo sol, tem o cheiro adocicado da charneca no Verão, giestas, esteva, urze, carqueja, mel e espécies, pinheiros, há um cheiro forte de alfazema que não sei se vem de fora ou do sabonete que ela tem na mão e há um leve cheiro a transpiração, do corpo dela, ou da cama que não se vê à esquerda fora de campo, de sono ou de sexo, ou talvez seja só imaginação. Quase não se ouve nada. Só as gotas de água que pingam da cara para a bacia, o estalar do tapete debaixo dos seus pés, uma brisa seca nas ervas lá fora, uma vaca que muge muito ao longe, o zumbido ocasional de uma mosca.
Seja qual for a dimensão da minha short list [escrevi lits e por um segundo divertido pensei se seria gralha ou lapso] de fotografias favoritas esta teria sempre de estar. Chama-se Nu Provençal e fui eu que a tirei noutra vida. Devo ter sido porque sei tudo sobre ela. Conheço a sensação fresca de cada uma daquelas pedras na planta dos meus pés, a textura das tábuas de madeira crestada das portadas das janelas na polpa dos meus dedos, posso desenhar de memória a decoração florida daquela bacia e daquele jarro, se fechar os olhos reconheço todos os cheiros daquele Verão imóvel de 1948 e conheço aquela mulher.
Quem tirou mesmo a foto foi o fotógrafo francês Willy Ronis, que morreu na noite de sexta-feira com 99 anos. A mulher é a sua mulher e a casa era uma ruína que tinham comprado em Gordes. Ronis acordou, a sua mulher lavava-se com a água que era preciso ir buscar a um poço, agarrou na Rolleiflex e fez quatro fotos. Ronis sempre foi económico nos disparos. Às vezes saía de casa para fotografar e não batia uma única chapa. Só quando encontrava a imagem certa é que disparava e nós agradecemos o cuidado. Nunca usou motor, nem experimentou o digital – ainda que só tenha parado de fotografar em 2002, depois de 75 anos de trabalho e 300.000 fotografias. A sua última fotografia é também de uma mulher nua. Fez muitos nus e o último livro que lançou foi Nues, que em francês quer dizer “nuas” e “nuvens”.
Mas o que Ronis sempre fotografou foram pessoas. Representante da chamada “fotografia humanista”, corrente forte da fotografia francesa do pós-guerra (ainda que ele preferisse dizer que fotografava a vida quotidiana e as pessoas modestas), comunista convicto até ao fim (apesar de ter deixado o partido nos anos 60), Ronis deixou imagens que se tornaram símbolos do Paris do século XX. A crítica que se lhes pode fazer é que muitas se transformaram em postais. Queria ser músico mas teve de se ocupar do estúdio do pai. Foi fotógrafo a contragosto e depois com paixão. Deixou-nos imagens de uma estética formal rara, com uma luz que o céu só oferece a poucos. Há quem diga que o Nu Provençal parece um Bonnard. Parece. Mas a mim parece-me um Vermeer. Ronis deixou-nos bocados de vida inesquecíveis, fotos com cheiro, a rebentar de sentimento, cheias de histórias e de recordações. A mim deixou-me esta foto que fui eu que fiz, de um dia de Verão na Provença. (jvmalheiros@gmail.com)

Nu provençal (Willy Ronis, 1948)

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