terça-feira, novembro 10, 2009

O degredo dos tempos modernos

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 10 de Novembro de 2009
Crónica x/2009

A Internet é hoje o meio através do qual se exerce uma parte fundamental da cidadania

O Conselho Europeu e o Parlamento Europeu alcançaram na semana passada um acordo que visa reduzir o download através da Internet de obras sujeitas a direitos de autor sem que sejam pagos os respectivos royalties.
A directiva ainda tem de ser confirmada pelo Parlamento Europeu, mas ela deverá permitir que um utilizador possa vir a ser impedido de aceder à Internet como sanção. Os termos em que isso acontecerá ainda não são claros. De facto, ainda que o acordo estipule que o corte do acesso à Internet “respeitará os direitos individuais”, não é ainda claro que ele passe obrigatoriamente por um juiz.
Que o corte do acesso só tenha lugar após uma decisão judicial que prove a responsabilidade do autor do acto, parece uma obrigação elementar. Mas é significativo dos tempos que vivemos e do ataque aos direitos individuais que haja quem defenda que a sanção seja aplicada pelos fornecedores de acesso à Internet (ISP), sem mais considerações, a todos os que possam parecer estar a infringir a lei.
Que a nova norma será difícil de aplicar é evidente. Basta pensar num computador doméstico, usado por todos os membros de uma família. Se o corte do acesso for decidido unilateralmente pelo ISP, sem processo e sem direito a defesa nem exigência de prova, tratar-se-á de uma prepotência inaceitável que justificará as mais violentas reacções de rejeição por parte dos utilizadores.
Mas mesmo que haja um processo judicial, como se tentará provar a responsabilidade de um dado membro da família? Para isso ser levado a cabo não podemos senão imaginar uma profunda devassa da vida privada de todos os elementos da família – interrogatórios separados com acareação? Estímulos à delação? Interrogatórios aos amigos para confirmar as preferências musicais de cada membro da família? Ou será que se prescindirá da responsabilização individual e se criará a nova figura de “responsabilidade familiar”, condenando todos os membros da família ao exílio da Internet?
E isto para além de uma questão prévia não menos importante: como sabem os ISP que alguém, através daquele computador, está a fazer download de um dado filme ou de um dado CD senão através de uma devassa da sua vida privada? Não se perceberá que, em nome da defesa dos direitos de autor, se estão a destruir princípios que não são menos importantes?
Quando os ISP (e outras empresas) nos diziam que, de vez em quando, davam uma olhadela ao nosso tráfego sempre nos juraram pela sua saúde que apenas o faziam para obter estatísticas e para detectar problemas técnicos e sempre nos garantiram que nunca tentariam saber o que fazia cada utilizador individual. A nova directiva vem provar que todas essas promessas e protestos eram falsos. Se não o fossem, os ISP estariam na primeira linha da recusa da nova norma europeia.
Que a nova norma se vai revelar inútil todos o sabemos. Há mais de uma maneira de esfolar um gato – ou de aceder a música e filmes com direitos sem pagar um tostão. A lei será, quando muito, um incentivo a formas mais sofisticadas de pirataria. Que a nova norma é injusta (e insensata) também sabemos. Os piratas que a indústria estupidamente persegue constituem o grosso dos compradores das obras de autor.
Mas o que a nova norma não esconde é o conceito que permeia de forma cada vez mais violenta as nossas sociedades: em nome da defesa dos direitos das empresas, todos os atropelos aos direitos individuais são permitidos. A Internet não é hoje uma forma de entretenimento. É o meio através do qual se exerce uma parte fundamental da cidadania. Amputar um cidadão dessa ferramenta constitui uma punição semelhante a um degredo, uma negação do exercício de direitos cívicos fundamentais.
Agora estão a levar os nossos vizinhos e não ligamos. Um dia virão buscar-nos a nós e será tarde. (jvmalheiros@gmail.com)

terça-feira, novembro 03, 2009

Jornalismo: ruído de fundo ou sinal?


por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 3 de Novembro de 2009
Crónica x/2009

Numa altura onde as notícias estão por todo o lado, o jornalismo não pode somar-se ao ruído de fundo

Quando comecei a fazer jornalismo considerava- se que as notícias eram a parte mais nobre do trabalho do jornalista. Fazer entrevistas ou escrever crónicas podia ser interessante, mas considerava-se que eram as notícias – o relato de novos acontecimentos – que permitiam cumprir a responsabilidade central do jornalismo, pois eram elas que permitiam que os leitores criassem a sua visão das coisas e das pessoas e consolidassem as suas opiniões.

Esta ideia fazia sentido num mundo onde os media constituíam a única forma de comunicar globalmente com a sociedade. Há vinte anos, uma empresa que quisesse lançar um produto, um partido que quisesse lançar um candidato ou um académico que quisesse difundir uma nova tese tinham forçosamente de passar pela mediação dos media (passe a redundância) e – se o que se pretendia era credibilização –, em particular, pelo jornalismo. É claro que havia outras possibilidades de difusão – podia-se distribuir panfletos na rua, fazer outdoors, campanhas porta a porta, discursos nas esquinas –, mas a regra tinha de ser o recurso aos media, sob a forma de publicidade ou de informação.

Esta ideia, porém, hoje deixou de fazer sentido.

Depois de termos andado anos a dizer que, com a Internet, qualquer pessoa podia ser editor ou jornalista, chegámos a uma época onde é evidente para todos que essa era já chegou.

Enquanto, há vinte anos, uma qualquer entidade que quisesse comunicar algo ao público fazia um comunicado de imprensa que enviava para vinte jornalistas, na esperança de que algum o achasse digno de notícia, hoje a mesma entidade pode publicar no seu site na Internet a mesma informação. É verdade que a esmagadora maioria passa despercebido, mas o mesmo acontecia à esmagadora maioria dos comunicados de imprensa. E há muitos que recebem a atenção de milhares ou mesmo milhões de leitores.

A verdade é que há milhões de pessoas que querem manter-se informadas e que escolhem, a par dos media, sites institucionais para o fazer – seja o site da Apple, o do PSD, o do Benfica, o da Comissão Europeia ou o da Amnistia Internacional.

Por outro lado, devido ao escrutínio crescente e global a que estas informações de origem institucional são submetidas, a sua qualidade melhorou enormemente. Os documentos ocos, de cariz propagandístico, recheados de mentiras e falsas promessas, são hoje, mais do que ontem, um risco para as instituições que os emitem. O público que os consulta é mais exigente e tem ferramentas para mostrar o seu desagrado. O que isto significa é que as notícias, ontem a parte mais nobre do trabalho do jornalista e o seu monopólio natural, deixaram de ser tanto uma coisa como outra.

O que é espantoso é que quase toda a gente reconhece este estado de coisas, mas poucos ou nenhuns órgãos de comunicação social extraem daqui conclusões e continuam a tentar combater no domínio da pura notícia – onde a esmagadora maioria pouco mais faz do que repetir as fontes oficiais sob outro cabeçalho.

O jornalismo que se exige numa altura onde as notícias estão por todo o lado e são produzidos por todas as pessoas e todas as entidades não é um jornalismo que se soma ao ruído de fundo, mas um jornalismo que ajuda a distinguir no meio do ruído de fundo o que é relevante, que torna explícito o que é obscuro e que desmonta as mentiras oficiais que se escondem por trás dos factos ocorridos. É um jornalismo de investigação e de denúncia, de rigor e de perseverança, que exige investimento em tempo e em competências, um inabalável sentido cívico, a coragem de ser incómodo e uma feroz independência perante todos os poderes e todos os interesses. Infelizmente, é esse jornalismo que cada vez escasseia mais. (jvmalheiros@gmail.com)