terça-feira, dezembro 28, 2010

Apenas uma crise de crescimento

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 28 de Dezembro de 2010
Crónica 45/2010
 
Como seríamos prósperos se fôssemos só 5 milhões, como os finlandeses

Os números do défice e da dívida e os indicadores económicos não encorajam qualquer optimismo, apesar de as exportações se estarem a portar melhor do que se esperava e de nestes dias de fim de ano ser tradicional expressar votos de prosperidade para 2011 com o mais cândido dos sorrisos afivelado na face.

A verdade é que os juros da dívida crescem mais depressa do que a nossa capacidade de a pagar e o buraco em que nos encontramos é cada vez maior. Como os juros aumentam, devemos cada vez mais. Como devemos cada vez mais, os juros aumentam. Como devemos cada vez mais e os juros aumentam, as agências de rating baixam-nos a classificação, o que faz os juros subir e a dívida aumentar. Ao círculo vicioso sucede-se a espiral infernal. Os especuladores esfregam as mãos de contentes, mas os especialistas garantem-nos que eles têm uma função higiénica essencial à vida económica (como as hienas que comem os animais doentes) o que significa que o sistema caminha para um rápido saneamento e que todo este panorama é apenas um passo doloroso mas necessário.

O que sabemos é que, depois desta crise, o nosso país será um lugar mais eficiente, a nossa economia será mais robusta, a nossa administração pública será mais magra e mais rápida, as empresas que não têm direito à vida terão desaparecido, as outras pagarão muito menos impostos e salários mais baixos, o euro talvez tenha desaparecido (o que apenas significará que não devia ter nascido), a ideia de uma Europa solidária ter-se-á desvanecido (o que quererá dizer que afinal era só um conto de Dickens), só haverá reivindicações laborais nos filmes e o Estado-social será uma memória vaga. Será maravilhoso para os ricos.

As únicas entidades que poderão sair prejudicadas serão as pessoas, mas essas são substituíveis: há sempre pessoas novas a nascer, a crescer e à procura de trabalho e dispostas a aceitar relações de trabalho muito mais flexíveis. Os historiadores olharão para trás e verão a crise de 2008-2018 em Portugal apenas como uma crise de crescimento que serviu para fortalecer as empresas, a economia, os mercados financeiros, a banca, as lideranças empresariais e os serviços de segurança.

Se a crise serviu para alguma coisa foi para compreender que as pessoas estavam a ter salários demasiado altos, impostos demasiado baixos, demasiada estabilidade de emprego, demasiados serviços públicos, demasiada liberdade, saúde e educação de excessiva qualidade e juros demasiado baixos nos empréstimos bancários.

E, não havendo possibilidade de dissolver o povo, como Brecht sugeria, o Governo tentou pelo menos reduzi-lo à sua justa dimensão. A dura verdade é que o povo faz menos falta do que os bancos. Mais: o povo não só não faz falta como dá muita despesa. Como seríamos prósperos se fôssemos só os 5 milhões que os finlandeses são! Se pudéssemos dissolver os 5 milhões de portugueses menos letrados e mais velhos (que gastam uma fortuna em subsídios, em reformas, em saúde) seríamos um dragão, um tigre, um furão.

Não há razões para pensar que o país não é viável. Os testes de stress feitos ao sistema financeiro deram excelentes resultados. A economia reanima-se e as exportações dão sinal disso. Temos indicadores de inovação extraordinários. Todos os nossos ministros das Finanças sem excepção sabem qual é a receita para recuperar a economia. Basta ouvi-los. Todos eles sem excepção sabem que fizeram sempre tudo bem. Os dirigentes políticos também. Os do Governo e os da Oposição. Os banqueiros sabem que sempre fizeram tudo bem. Todos sabem que são perfeitos. As nossas elites sabem que são esclarecidas, brilhantes, iluminadas e outras coisas com luz. O país é viável! O povo é que não é, mas já estamos a tratar desse pormenor. (jvmalheiros@gmail.com)

Comentário na discussão de "O segredo"

Em resposta à seguinte mensagem de Tiago Tibúrcio:
 
"Zé Vítor, concordando com a afirmação de princípios, tenho muitas dúvidas sobre o que fica implícito no que escreves aqui. E o que fica implícito é uma certa absolutização do valor transparência, da ideia da verdade, sobre os vários valores... que devem ser tidos em conta. Se tiver tempo, gostaria de desenvolver sobre isto. Por enquanto, ficam-me algumas interrogações: defenderias o mesmo aplicado ao segredo jornalístico? Creio que, servindo um fim público (direito de informar - e, até por isso, beneficiando de algumas prerrogativas legais neste domínio), a questão que colocas também tem pertinência neste âmbito. Outra interrogação: o teu texto pressupõe que os jornalistas estão preparados para fazer a ponderação que referes entre os bens conflituantes mas – e acharás porventura isto uma infâmia – tenho muitas dúvidas. Noto uma certa tendência no jornalismo para, onde existe um feixe de valores em tensão, ver as coisas a preto e branco, recusando a complexidade das coisas. Claro que admito excepções. Que julgo casuisticamente (não consigo arranjar qq critério). Repara: estamos a falar de uma área absolutamente excepcional do ponto de vista do escrutínio mediático, que a lei considerou dever beneficiar de determinado regime de segredo para melhor prosseguir o bem comum. É estritamente neste âmbito que digo isto. Talvez o preço a pagar seja uma certa impunidade de alguns actores públicos. Também é esse o preço a pagar por termos direito à privacidade e não termos os nossos telefones todos sob escuta."
December 22, 2010 at 5:52pm 


Regresso à argumentação, depois do Natal.

Antes de mais, Tiago, não defendo nenhuma absolutização, nenhum primado, do valor "transparência", nem explícita nem implicitamente. (Já agora, nem deste valor - se é que se trata de um valor - nem d...e qualquer outro: os bens são para se conjugarem e não para se ofuscarem, mas isso é outra conversa).

Pelo contrário, defendo e defendi explicitamente, aqui mesmo, numa outra Nota ("Democracia sem transparência?"), que o segredo se justifica em diversos contextos. O que defendo é, precisamente, que o segredo (de Estado, diplomático, etc) não é um valor absoluto e que deve ser pesado - em cada momento, em cada contexto, por cada actor - contra outros bens.
O que acontece é que os detentores dos segredos - que são, não por caso, também os impositores dos segredos - pretendem erigi-los em valores absolutos. O que digo é que isso - a transformação do segredo, de todos os segredos, num valor inviolável (merecedor de pena de morte, dizem muitas vozes nos EUA!) - é o caminho para a autocracia, porque vai retirando pedaços crescentes de informação (e de soberania) ao povo. Se entregarmos a um grupo de poderosos o direito a definir o que é segredo e se essa classificação não for passível de avaliação, de desafio, de contestação, de validação, teremos criado um buraco negro impenetrável à lei, à democracia, aos direitos. Isso não é admissível.

Não se pode decidir sem saber. Se queremos que o povo decida, o povo tem de saber. O povo pode escolher delegar esse poder em certos casos nos seus representantes eleitos, mas nos casos onde o segredo foi instituído nem sequer esse escrutínio existe. Ora, numa sociedade democrática, nada - sublinho nada - deve fugir ao controlo do povo soberano, último juiz.

Como se coaduna, então, a necessidade de um certo segredo, em certos contextos, com o escrutínio do povo, que exige transparência? Esse equilíbrio é difícil de definir, deve ser discutido em cada momento pela sociedade e é dinâmico. Se não pretendo destruir o segredo, também não pretendo ter encontrado a receita do ponto de equilíbrio ideal entre segredo e transparência.

Mas o que penso é que esse equilíbrio tem de ser definido através de sondagens (no sentido geológico do termo, não sociológico) da aplicação prática da norma. E essas sondagens são as fugas.

No final do meu texto defino algumas regras que penso que se deveriam usar na aplicação do estatuto de segredo: "O segredo deve ser justificado caso a caso, deve ser excepcional, temporário e, quando é finalmente revelado, deve ser evidente o benefício que gerou ou o malefício que evitou." Se estas regras não forem aplicadas isso significa que o segredo é apenas um instrumento de repressão, de concentração de poder, de sequestro do poder do povo.

Não há nenhuma razão para que um telegrama diplomático (ou os termos de um contrato público) não seja divulgado passado um curto período de tempo. Se o segredo se justifica num dado momento, ele não se pode justificar eternamente.

E, se os poderes não respeitam essas limitações, elas devem ser impostas por quem puder. Sempre? De forma indiscriminada? Não. Quando houver fundadas razões para desconfiar que a lei protege a iniquidade, a autocracia, o crime. Desobediência civil em nome da democracia.

A dignidade da lei não advém do facto de alguém dizer que ela é lei, mas do processo democrático que lhe dá origem ("No taxation without representation", etc.). E o processo democrático tem de ir até ao escrutínio da aplicação real da lei, não pode ficar pela avaliação da bondade da teoria que está na origem da lei. Se não seguíssemos estas regras a lei seria um puro instrumento de subjugação.

As leis não são apenas o resultado de uma discussão teórica entre pontos de vista diferentes, mas de conflito de interesses, de confronto entre poderes, de um braço de ferro real. O poder da fuga de informação é um poder a ter em conta nesse confronto. E o que é claríssimo para mim é que, se esse poder da fuga de informação pudesse ser aniquilado com cem por cento de eficácia, se se pudesse garantir sempre a estanquidade do segredo, a nossa sociedade seria muitíssimo menos democrática. Seria o primado do princípio "todo o poder aos poderosos".

A divulgação, ilegal, de informação classificada como secreta são os checks and balances a entrar pela janela quando os atiramos pela porta fora. Quanto mais iníqua for a lei, mais necessária é a desobediência. Quanto mais opaca e desonesta é a política, mais necessária é a fuga de informação.

2. O público faz um julgamento destas fugas. E, se é verdade, que muitas das informações são inócuas, outras revelam comportamentos criminosos e desrespeito pelos direitos humanos. A utilidade da fuga de informação é evidente. Mas vejamos agora o preço deste benefício. Será que estamos a atropelar os direitos fundamentais dos protagonistas destas trocas de mensagens?

Aceito sem problema que a impunidade de alguns criminosos seja um preço a pagar pelo respeito pelas liberdades. Mas, para começar, não se trata aqui, em caso algum, de liberdades individuais. Não se trata de "termos os nossos telefones todos sob escuta". Nem sequer dos telefones deles. Nem sequer de vasculharmos as gavetas das secretárias de trabalho deles, onde poderíamos topar com algum objecto pessoal. Trata-se de agentes do Estado, a agir nessa qualidade, na qualidade de nossos representantes (dos cidadãos dos seus países). Além de que, mais uma vez, há uma assimetria na equação: por que deixaríamos que fossem apenas os poderosos, os donos dos segredos, a ser protegidos por essa impunidade que seria o preço do respeito pelas liberdades? Que argumento poderíamos usar para defender que fossem os donos dos segredos a definir as regras de acesso a esses segredos, sabendo que essas regras lhes confeririam uma relativa impunidade, permitindo ao mesmo tempo que os outros cidadãos, os que não têm o poder de dizer que algo é segredo, nunca tivessem o benefício de impunidade alguma? Um privilégio de casta, reservado aos agentes do Estado? Um direito divino?

3. Não atribuo nenhuma prerrogativa particular aos jornalistas. No caso da WikiLeaks, nem Julian Assange nem Bradley Manning (presumível autor da fuga) são jornalistas. O estatuto do autor da fuga é, para mim, irrelevante, ainda que não o seja o seu móbil. É relevante para mim que ambos tenham considerado que a divulgação destas mensagens era importante para reforçar a cidadania (mais accountability, mais verdade no discurso político, etc.). O meu julgamento dos seus actos seria outro se tivessem usado as mensagens para fazer chantagem com os seus autores ou para as vender pela melhor oferta, como é evidente.

4. Quanto a quem define "bem comum", etc. Somos nós. A nossa consciência. Aceitando as consequências. E argumentando. Tentando levar o consenso social, a prática política e o produção das leis para o lado que consideramos mais justo.

quarta-feira, dezembro 22, 2010

Mensagens de Natal e uma proposta para reduzir o défice

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 22 de Dezembro de 2010
Crónica 44/2010
 
A cerimónia de cumprimentos de Boas Festas do Parlamento ao Presidente da República precisa de reforma

Fúnebre. É o adjectivo mais adequado para descrever a mensagem de Natal do presidente da Assembleia da República, Jaime Gama. Ou a mensagem de Natal do Presidente da República. Ambas podem ser vistas em vídeo nos respectivos sites mas são uma tristeza, por isso não aconselho ninguém a ir lá ver. O presidente da Assembleia da República consegue dizer duas vezes "dificuldades" numa mensagem de um minuto e meio e nem Jaime Gama nem Cavaco Silva esboçam o mais leve sorriso durante o breve discurso. Ambos falam de esperança nos seus vídeos, mas só se vê desalento no seu semblante. Nós sabemos as razões, mas eles devem saber ainda melhor. Só Maria Cavaco Silva esboça um sorriso, leve mas simpático, ao dizer o seu "Boas Festas". Apesar desse lampejo, ambas as mensagens contribuem para a depressão. Para a económica e para a outra.

A mensagem do primeiro-ministro devemos ouvi-la só no Natal, mas já sabemos o que podemos esperar: Portugal está mal, mas não podia estar melhor e há quem esteja pior, por isso tudo está bem. Será ainda mais deprimente.

Quanto a mensagens de Natal, este ano também não vai acabar sem que se assista a uma das mais clássicas pepineiras do calendário político: a apresentação dos cumprimentos de Boas Festas a Sua Excelência o Presidente da República pela Digníssima Assembleia da República, representada pelo presidente da Assembleia da República, pelos seus vice-presidentes, pelos secretários da mesa da AR e pelos presidentes dos grupos parlamentares. Não falta ninguém. Vai ser hoje à tarde. O PAR dá as Boas Festas, o PR responde com Boas Festas, todos muito constrangidos, todos muito hirtos, sem saber o que fazer, o que dizer, para onde ir, para onde olhar, onde pôr as mãos e os pés, como acabar. Depois o PR cumprimenta toda a gente e há câmaras de televisão e fotógrafos que filmam e fotografam como se o evento tivesse alguma importância.

A cerimónia tem um cheirinho de monarquia e é fatuamente oca. Podia ser um momento simpático e descontraído, cheio de graça e brilhantismo, onde se abrisse uma pipa de vinho do Porto e todos os políticos presentes tivessem de fazer um brinde original ao novo ano, numa espécie de desgarrada com wit e com verve, mas imaginem como seria confrangedor para o Presidente se, uma vez por ano, se esperasse dele ummot d"esprit. A sugestão fica aqui, de qualquer forma. Talvez um futuro presidente a possa aproveitar. Tal como está, a cerimónia, se tem algum significado político, é um que não é aceitável: a vassalagem da AR ao PR.

Não digo isto por não apreciar as tradições. Aprecio muitas, das mais arcaicas às mais recentes. Há algumas que têm mérito porque têm graça ou porque transportam a memória de algo com significado. Acho graça que os grupos folclóricos vão cantar as Janeiras ao PR no Dia de Reis, por exemplo. E não passo um primeiro de Janeiro sem o Concerto de Ano Novo da Filarmónica de Viena. Mas estas tradições têm música e boa disposição. A brigada das Boas Festas está além do suportável. E não só para mim mas também para os pobres dos intervenientes.

A minha contribuição para a redução do défice é que se substituam os cumprimentos de Boas Festas por uma mensagem que o presidente da AR pode enviar por mail ao PR. Apenas uma mensagem. O Presidente pode responder também por mail. Se a WikiLeaks a apanhar não tem importância porque nem tudo tem de ser secreto. O fotógrafo oficial pode fazer uma foto do Presidente a ler a mensagem, o cameraman oficial pode fazer um vídeo. Quem quiser pode ver na Internet o vídeo do Presidente a ler o mail na Internet. E poupa-se o tempo de toda aquela mascarada.

Em que é que isto reduz em défice? O efeito não é dos mais drásticos, mas reduz. Poupa-se em viagens e em electricidade, poupa-se em tempo de emissão na televisão, poupa-se o tempo daquela gente toda que pode ser usado para coisas mais úteis e, principalmente, poupa-se a nossa fatigada paciência que é o bem que está a sofrer o mais profundo défice de que há memória. (jvmalheiros@gmail.com)

terça-feira, dezembro 21, 2010

O segredo

Por José Vítor Malheiros
Os cidadãos não podem permitir que o segredo (segredo de Estado, segredo militar, segredo diplomático, segredo de justiça ou outro) seja usado para cometer e encobrir crimes, para concentrar o poder na mão de uma oligarquia ou de um partido, para favorecer ou prejudicar determinada facção política ou grupo económico, para sonegar ao público e aos vários actores políticos o conhecimento e a capacidade de escrutínio dos actos do Estado, para evitar a responsabilização dos detentores do poder pelos seus actos, para evitar que o discurso político público seja confrontado com uma prática que o desmente, para instituir a mentira incontestada como regra do discurso político.

O segredo não pode ser usado para garantir a irresponsabilidade, a inimputabilidade e a impunidade dos poderosos - porque a responsabilização, o primado do direito e a igualdade dos indivíduos perante a lei são bases essenciais do Estado democrático.

No entanto, o que acontece de facto é que o segredo é usado para tudo o que está atrás e constitui, por esse facto, frequentemente, um mecanismo de uso antidemocrático, uma arma usada contra a democracia e o primado da lei.

Se tudo fosse segredo, a democracia seria impossível e a ditadura seria inevitável.

A democracia implica conhecimento da acção do Estado e dos actores sociais, implica liberdade de pensamento, de expressão, de opinião, de informação, de reunião, de discussão. Só se pode escolher e decidir quando se conhece e não se pode conhecer o que é secreto.

É verdade que há actos (do Governo, das autoridades judiciais) que pode ser conveniente manter secretos durante uma fase inicial por uma questão de eficácia - para que não sejam conhecidos das entidades particulares que têm interesse em impedir que seja alcançado o objectivo social desses actos (uma investigação criminal, uma negociação diplomática). Mas estes casos de segredo devem ser excepção. A regra do Estado democrático tem de ser a transparência. E, mesmo quando há segredo, esse segredo tem de ser mantido durante o menor tempo possível. Para que, pelo menos a posteriori, o povo soberano possa julgar os actos que foram cometidos em seu nome e avaliar as suas consequências, responsabilizar os seus protagonistas e decidir se houve ou não razão para o segredo, de forma a afinar o procedimento de invocação desse estatuto - que deve ser, repete-se, excepcional.

Esse tempo de segredo deve ser o mais curto possível porque a justiça que tarda não é justiça e a responsabilização que tarda é igualmente injusta.

A regra na condução dos negócios do Estado em democracia deve ser a verdade. E a liberdade de informação e discussão é a condição dessa verdade. O segredo é a instituição da mentira.
Quando falamos de segredo devemos lembrar-nos que o segredo é sempre imposto por um grupo sobre outro - em geral por uma minoria sobre uma maioria. O segredo não é imposto por uma entidade supra-social, nem por uma entidade neutra e desinteressada. O segredo é uma desigualdade que luta para manter a desigualdade. Ou que tenta mesmo desequilibrar ainda mais essa desigualdade em seu favor. Alguém que já sabe tenta evitar que outros fiquem a saber.
Mas há uma questão de índole prática essencial: a história da utilização do segredo na política torna evidente que as principais razões para o seu uso são o encobrimento de crimes e a obtenção de vantagens ilegítimas por parte de um grupo e em detrimento de outros.

A consequência disso é que os casos onde se desvendam segredos (devido a fugas de informação que chegam à imprensa ou a investigações históricas) são quase sempre casos onde o povo descobre a futilidade ou a pura mentira das razões invocadas para o segredo e constata que esse segredo apenas serviu para proteger malfeitores ou gerar benefícios ilegítimos para um grupo. O que a história das fugas nos diz é que o segredo é quase sempre injustificado e muitas vezes criminoso. O que não constitui incentivo para respeitar os segredos actuais e é, pelo contrário, uma boa razão para descobrir e revelar os que não possuam uma justificação evidente.

O segredo deve ser justificado caso a caso, deve ser excepcional, temporário e, quando é finalmente revelado, deve ser evidente o benefício que gerou ou o malefício que evitou.

A questão não se resume, porém, a saber quando e se se deve divulgar um segredo que já está na nossa posse.
Quando conhecemos o seu conteúdo, podemos avaliar as consequências do segredo e as da sua divulgação e pesá-las uma contra a outra.
Trata-se de uma questão de consciência, por vezes difícil, que por vezes implica pôr em causa lealdades pessoais e confrontá-las com outros valores, mas nestes casos temos todos os elementos para decidir.

Há uma questão de outra ordem e que frequentemente surge antes daquela que é: Quando se deve tentar aceder a um segredo que sabemos existir? Quando devemos quebrar as regras que protegem um segredo - regras cujos princípios gerais são muitas vezes aceites consensualmente pela sociedade (segredo de Estado, de justiça, etc.)?

A resposta só pode ser:
Quando o segredo põe em causa a democracia. Quando temos fundadas razões para desconfiar de que as autoridades mentem - activamente ou por omissão -, e que estão a escamotear ao público informação que lhe permite fazer juízos de valor e tomar decisões em matéria relevante.
Quando o segredo prejudica o bem comum. Quando temos fundadas razões para pensar que a revelação desse segredo é do interesse público e que o seu segredo é, inversamente, prejudicial ao interesse público e só defende interesse particulares.
Quando o segredo protege a prática de crimes. Quando a mentira de que se suspeita tem implicações graves - se traduz em atropelos graves aos direitos individuais, à democracia, à lei.

Nestes casos, pactuar com o segredo é pactuar com a mentira e com os atropelos aos direitos.
Mas não se deverá deixar essas averiguações a polícia, aos tribunais, aos organismos políticos?
Em teoria, sim. Na prática, não. Porque esses segredos são, em geral, os segredos mantidos pelos poderes, nem sempre se pode confiar nos poderes para os fiscalizar.
De facto, o sistema de checks and balances não é perfeito e não aconselha uma confiança cega no sistema.

E quando o segredo, uma vez conhecido (por um jornalista, por exemplo), se revela justificado? Quando o segredo, uma vez conhecido, revela apenas, por parte daqueles que o mantiveram, um escrupuloso respeito pelos direitos e pelo bem comum? Quando é evidente que a sua revelação ao público pode ter consequências negativas para o bem comum? Nesse caso, ele não deve ser divulgado.

terça-feira, dezembro 14, 2010

A festa frágil

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 14 de Dezembro de 2010
Crónica 43/2010
 
Os WikiLeaks não são uma história, são as Mil e Uma Noites em edição ampliada

1. A Web é uma festa. Ele é notícias em todos os jornais e em e em todos os sites e em todos os blogs. Ele é comentários e críticas e opiniões e discussões por todo o lado, dos think tanks às redes sociais, dos tablóides aos jornais sérios, das universidades às ONG. Ele é porta-vozes de governos e de bancos a dizer que não sabem, que não comentam, que não disseram, que não sabiam, que não fizeram, que não viram, que não ouviram, que não pediram, que não prometeram, que não roubaram, que não mentiram, que alguém percebeu mal, que era só a fingir, que não podem, que não estão. Ele é boicotes à Amazon e ao PayPal, ataques DDoS à Visa e ao MasterCard e a mais uns quantos, ele até transborda para manifestações IRL e petições e donativos e fundos de defesa e 1697 mirrors do site WikiLeaks. Ele é Keep us strong e Courage is contagious e Cavaco Silva, português suave, lembrando que "Portugal tem uma imprensa muito suave". Ele é jornalistas a discutir o que devem fazer os jornalistas, jornais a explicar o que devem fazer os jornais, assessores a garantir que os jornais só estão a dizer coisas que já toda a gente sabia e que essas coisas por acaso até são mentira, cientistas sociais a tentar perceber o que é a Web, estudantes a perceber pela primeira vez para que servem os diplomatas, analistas políticos a tentar explicar que o cabelo branco de Assange prova que ele fez um pacto com o demónio, políticos a tentar perceber o que raio devem fazer os políticos, democratas a perguntar se tanta transparência não fará mal à vista, conservadores a gritar que chegou a anarquia, anarquistas a anunciar que vem aí o fascismo, candidatos presidenciáveis a lançar fatwas contra o líder da WikiLeaks, fascistas a aconselhar a zona da nuca de Assange onde se deve encostar a pistola, líderes religiosos a garantir que o tiro só será pecado se for ao domingo, lexicólogos a tentar perceber se WikiLeaks é feminino ou masculino, advogados a lembrar que não estão de lado nenhum mas que podem estar dos dois, polícias a lembrar o que pode acontecer a quem tentar dizer aquilo que lhe passa pela cabeça. Os WikiLeaks não são uma história, são as Mil e Uma Noites em edição ampliada, 24/7 e 360 graus. Ainda só foram divulgadas 0,5% das 251.287 mensagens mas o impacto começa a fazer ondas.

2. Houve duas coisas que o caso Wikileaks já mostrou: o imenso poder mas também a imensa fragilidade da Internet. Se é verdade que surgiram logo centenas de sites-espelho para impedir que o boicote da EveryDNS e da Amazon impedissem o site de se manter no ar, é igualmente verdade que o bloqueio à WikiLeaks por parte de grandes empresas financeiras como a PayPal (subsidiária da EBay), a Visa e a MasterCard quase conseguiram asfixiar a organização.
Actualmente, a coordenação das actividades de apoio à WikiLeaks, a Julian Assange e a Bradley Manning (o analista militar na origem do Cablegate) faz-se usando principalmente duas redes sociais: o Facebook e Twitter. O que aconteceria se uma delas (ou ambas) decidisse tomar uma atitude contra a WikiLeaks – como fizeram as até então insuspeitas Amazon e PayPal – devido a pressões políticas?
A Internet, espaço “anárquico” de “liberdade total” não é um espaço de liberdade total e tem donos e chefes – como os chineses bem sabem. Umas poucas dezenas de grandes empresas controlam a Internet mundial: as comunicações, o hosting, as pesquisas, as finanças e as praças públicas que são as redes sociais. Uma situação cuja fragilidade só é sensível em momentos de crise como os actuais. O que esta crise mostrou é que é fundamental criar redes sociais que escapem a esses controles e que possam funcionar de forma totalmente descentralizada, na cloud da Internet. Um desafio técnico mas um imperativo cívico. (jvmalheiros@gmail.com)

domingo, dezembro 12, 2010

Comentário na discussão de "Democracia sem transparência?"

Por José Vítor Malheiros
Post in Notes in Facebook

Que a situação é complexa, estamos de acordo. Não há exclusivamente um monte de males de um lado e um monte de bens do outro. Se fosse assim, seria tudo mais fácil, mas menos interessante e menos enriquecedor para a democracia. Posto isto, ...é quase sempre preciso escolher entre duas posições e correr o risco de nos molharmos. Esta vez não é excepção.
Dois comentários, de ordem diferente, ao post do André Freire:
1 - Temos de distinguir entre o essencial e o circunstancial. Que existem nas mensagens divulgadas algumas que não deveriam ter sido divulgadas por poderem ter consequências negativas, é provável (no caso das informações relativas ao Iraque, por exemplo, isso é certo). Não posso ser mais peremptório porque não li todos os mails do Cablegate e provavavelmente não poderia avaliar com rigor as consequências de cada um. Mas aceito desde já que isso aconteceu e vai provavelmente tornar a acontecer nos restantes 99% de mensagens que ainda não foram divulgadas.
Mas condenar a fuga da WikiLeaks por causa disso é como condenar a imprensa livre por publicar (todos os dias, em todos os jornais, em todos os países do mundo) notícias e artigos que atentam contra direitos de outrem (invasão da vida privada, difamação, etc.). Esses danos não são o objectivo da imprensa livre, não são a sua razão de ser, não são a sua consequência mais importante e não são o único critério nem o mais importante pelo qual devemos avaliar o papel da imprensa. Essas consequências negativas – por vezes imprevisíveis, frequentemente fruto de uma má prática profissional – correspondem àquilo a que os militares chamariam “danos colaterais” numa operação de guerra. É forçoso fazer tudo o que esteja ao nosso alcance para os evitar, mas eles acontecem.
Recusar a liberdade de imprensa porque a imprensa erra seria deitar fora o bebé com a água do banho e imporia uma fasquia de avaliação à qual nem os políticos sobreviveriam.
Um dos méritos da WikiLeaks e, especificamente, de Julian Assange, é que eles parecem ter feito o que podiam para minimizar esses efeitos negativos. Desde começar por contactar a Secretaria de Estado dos EUA – através do embaixador em Londres, Louis Susman – para que lhes indicasse quais das informações que possuiam deveriam ser editadas para evitar colocar indivíduos em risco, até contactar cinco órgãos de comunicação sérios a quem passaram todo o material para que o editassem e filtrassem como entendessem.
2- De uma perspectiva mais pragmática, as fugas da WikiLeaks correspondem a uma pressão para a transparência – uma pressão aplicada num mundo onde existe demasiado segredo e onde esse segredo serve principalmente para proteger os líderes políticos e os poderosos em geral do escrutínio democrático e para escamotear ao público informação esencial para as suas escolhas políticas e outras.
E, neste braço-de-ferro (a imagem do tug-of-war parece mais adequada pois pretende-se puxar a prática política para a adopção de um comportamento de maior transparência), eu situo-me sem hesitação do lado dos que exigem maior transparência.
Os políticos têm de aprender que o segredo excessivo em que vivemos – onde o povo é infantilizado de uma forma inaceitável e onde se considera que as decisões devem apenas ser tomadas “pelos que sabem”, uma porta aberta a todos os excessos – tem mais custos para eles que a lealdade e a transparência.

Democracia sem transparência?

Por José Vítor Malheiros

Aceito por princípio que há coisas na actividade do Estado que devem ser secretas. Mas, numa democracia - governo do povo - essas coisas devem ser a raríssima excepção. A regra deve ser a transparência. E deve ser a transparência porque numa democracia o povo - soberano - tem o direito de saber o que é feito em seu nome, com o seu dinheiro e em teoria para seu benefício. Tem o direito de fiscalizar directamente - e não apenas indirectamente - os actos do Estado. Tem o direito de os ver, de os ouvir, de os ler. E de os discutir e criticar. E tem o direito de saber porque só assim pode decidir em consciência se os mandatos que concedeu estão a ser lealmente executados e se deve eleger outros governantes ou sancionar os actuais. Só assim pode saber de que forma deve manifestar a sua vontade – nas eleições e de mil outras maneiras.
O que acontece é que os Estados - todos - abusam de uma forma ditatorial desse segredo e transformaram-no em regra. Vemos isso tanto em Portugal como nos EUA. De tal forma que a simples contestação do segredo é vista como um atentado contra o Estado. Mas a verdade é que existe segredo indevido em todas as áreas da actividade do Estado. Das negociações partidárias no Parlamento às compras públicas, da contabilidade pública aos procedimentos dos Tribunais, das relações internacionais à gestão das empresas públicas. Esse segredo é um veneno mortal para a democracia. Esse segredo destrói a credibilidade na política e nos políticos, esse segredo encobre a corrupção que espolia os mais pobres e enriquece os mais ricos, esse segredo permite que interesse privados dominem o Estado, esse  segredo transforma a democracia numa oligarquia de poderosos sem escrúpulos. Esse segredo é a capa que permite manter uma ilusória imagem de democracia por cima da corrupção e da manipulação dos cidadãos.
Um ataque ao segredo é um passo no caminho do fortalecimento da democracia.
Não estamos aqui a falar de comunicação privada e é bom não misturar as questões. Do que falamos aqui é de funcionários públicos, que devem estar ao serviço do bem público e de tornar acessíveis ao seu soberano o seu trabalho. Que os diplomatas e os políticos entendam que a mentira, a hipocrisia, a desonestidade e a duplicidade são ferramentas admissíveis nas suas negociações de gabinete poder-se-ia aceitar se não fosse inevitável que essa mentira, essa hipocrisia, essa desonestidade e essa duplicidade moldassem também as suas relações com o povo, com os cidadãos. Mas isso é inevitável.
Imaginemos um cenário: imaginemos que TODAS as negociações, comunicações e documentos do Estado fossem tornados públicos um ano depois da sua realização. Neste caso poder-se-ia defender que desrespeitar esse embargo fosse atropelar as regras do jogo e ferir a eficácia da acção do Estado. Mas seria possível argumentar isso porque a transparência da acção do Estado, a sua democraticidade, a accountability dos responsáveis estaria garantida, acautelada. O que acontece é que nada disso está hoje garantido. Pelo contrário: o segredo garante o oposto. Garante a irresponsabilidade dos dirigentes, a sua inimputabilidade, a impunidade pela prática de crimes, o desrespeito dos políticos pelos compromissos assumidos perante o povo, a manutenção do poder na mão dos que desrespeitam as regras. Daí que atacar a transparência forçada dos Wikileaks seja atacar uma das ferramentas essenciais que nos pode aproximar um pouco da democracia. E defender a sua criminalização seja destruir os laços ténues que ainda unem a vontade do povo à acção do Estado. Aquilo a que chamamos democracia.

terça-feira, dezembro 07, 2010

Abrir a janela e arejar a democracia

Por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 7 de Dezembro de 2010
Crónica 42/2010

Num estado democrático, a actividade do Estado é levada a cabo em nome do povo, com o dinheiro do povo e para benefício do povo

O principal problema com a mega fuga de informação levada a cabo pela WikiLeaks e conhecida pelo nome de Cablegate é o facto de ser mega.
Quando se divulgam 251.287 mensagens trocadas ao longo de anos, é evidente que no molho vão informações de cariz diferente, de interesse variável e cuja divulgação tem consequências diversas.
[Para mais, apesar da enxurrada de notícias que têm enchido a imprensa mundial desde o passado dia 28 de Novembro, a esmagadora maioria das mensagens não é ainda conhecida. A WikiLeaks entregou a totalidade das mensagens a cinco órgãos de comunicação (El País, Le Monde, The Guardian, Der Spiegel e The New York Times), que estão a investigá-las e as divulgam seguindo os seus próprios critérios e ao seu ritmo, entregou alguns subconjuntos a outros órgãos de comunicação e a organização está ela própria a publicar alguns documentos, mas não existe um arquivo aberto onde toda a gente possa desde já consultar todo o material – ainda que esse pareça ser um dos objectivos finais.]
A fuga de mensagens diplomáticas encheu de dezenas de histórias as primeiras páginas dos jornais, suscitou frissons de voyeurismo, a indignação de cidadãos confrontados com a duplicidade dos seus líderes políticos, o reconhecimento de outros perante a divulgação de indícios de corrupção no seu país, a excitação dos historiadores, o embaraço dos EUA, a raiva incontrolada dos poderosos visados de forma crítica nos documentos e acessos de fúria assassina na direita americana – com apelos à execução do soldado americano acusado (mas não julgado) de estar na origem da fuga das informações, Brandley Manning, e ao assassinato do líder da WikiLeaks, Julian Assange. Mas, paralelamente, suscitou uma vaga quase unânime de condenação – mais à direita, mas até à esquerda – perante a “irresponsabilidade” de colocar na praça pública aquilo que devia estar resguardado do olhar da plebe e em defesa da necessidade de discrição nas tarefas da governação.
[Houve quem considerasse o Cablegate como “o 11 de Setembro da diplomacia mundial”, inúmeras vozes que defenderam que a WikiLeaks tinha levado a cabo um ataque terrorista e que Assange devia ser tratado como um “combatente inimigo”, quem preconizasse um total secretismo no futuro para garantir que a história não se repete, outros que previram o fim da diplomacia como a conhecemos, etc.]
Curiosamente, nos media, apesar de todos aproveitarem com avidez os restos do festim dos Cinco Grandes, têm sido hesitantes as defesas do comportamento da WikiLeaks e são relatados com factualidade os incitamentos ao assassinato de Assange.
O que pensar? Há coisas que se podem afirmar com segurança. A primeira é que a WikiLeaks e Assange parecem ter tratado a divulgação do CableGate com grande sentido de responsabilidade, entregando os dados a media respeitáveis que tiveram, por sua vez, o cuidado de não divulgar informações que pudessem pôr pessoas em risco e a máxima lealdade em relação às fontes citadas, avisando-as do que iam publicar e, em certos casos, negociando a protecção de certos dados. Se houve informações que não deviam ter sido publicadas mas acabaram por o ser, isso são as vicissitudes normais da actividade jornalística, que nem sempre satisfaz os seus padrões de qualidade – o que não justifica que, por esse motivo, se defenda o fim da imprensa livre.
Quanto à fuga em si, seria conveniente que os defensores do segredo diplomático a todo o custo tivessem em conta que, num estado democrático, a actividade do Estado é levada a cabo em nome do povo, com o dinheiro do povo e para benefício do povo. Defender que o povo não tem direito a conhecer essa actividade a não ser quando já não pode fazer nada para a influenciar é de um paternalismo que não é compatível com a defesa da democracia.
Isto quer dizer que tudo deve ser transparente e divulgado? Não. É verdade que seria difícil fazer diplomacia assim. Mas quer dizer que, quando algo que é confidencial acaba por ser divulgado, o seu autor deve ser capaz de andar de cabeça levantada, porque deverá ser evidente que os seus actos se pautaram sempre por normas de dignidade e de defesa do interesse público.
O que a mega fuga da WikiLeaks nos ajuda a perceber é que esses padrões de comportamento estão muito longe do que deviam ser – e não se trata apenas da normal hipocrisia da política mas de entorses aos direitos humanos, de corrupção, de cleptocracia, de tráfico de influências.
Que os corruptos deste mundo – na Ucrânia, no Afeganistão ou noutro país – se sintam um pouco menos seguros do que antes de 28 de Novembro é algo que me agrada. Como me agrada que os EUA (e Portugal, e os outros países) se sintam mais submetidos ao escrutínio dos cidadãos do mundo, mais vulneráveis a denúncias e mais relutantes em se envolverem em negócios sujos.
E isso é algo que temos de agradecer à WikiLeaks. (jvmalheiros@gmail.com)

Nota: Os parágrafos assinalados entre parêntesis rectos foram suprimidos pelo autor na versão publicada no Público, por razões de espaço.

terça-feira, novembro 30, 2010

A destruição natalícia do Rossio está de volta

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 30 de Novembro de 2010
Crónica 41/2010
 
Que se chame “animação” a infernizar os ouvidos dos passantes e moradores parece uma maldição moderna

O pequeno carrossel gira lentamente na praça gelada. A tabuleta por cima do guichet diz que uma volta custa dois euros, quatro voltas seis euros, dez voltas dez euros. A rapariga que vende os bilhetes tem uma T-shirt da Misericórdia de Lisboa e há publicidade dos Jogos da Santa Casa por todo o Rossio. “O carrossel é da Misericórdia de Lisboa?” pergunto-lhe. “Não, o carrossel é particular. A T-shirt é porque a Misericórdia patrocina a animação”. “Ah, bom!”, digo eu, “então quer dizer que aquilo (aponto a tabuleta com os preços) não está em vigor?” “Sim, aquilo são os preços…” “Mas, disse-me que a Misericórdia patrocinou a animação…” A rapariga sorri condescendente, disposta a explicar-me os meandros da teoria económica que sustenta as indústrias culturais. “É que não são só as voltas”, explica. “Há o transporte, a instalação…” “Mas dois euros é o que custa um carrossel não patrocinado pela Misericórdia de Lisboa!” A rapariga sorri sem palavras com aquele ar simpático já-lhe-expliquei-tudo-mas-você-é-muito-estúpido-para-perceber.

Ao lado está uma pista de “gelo”. É “gelo” e não gelo. É feito daquele plástico branco que se usa para fazer tábuas para cortar a carne e os patins são parecidos com patins de gelo. Há uma música infernal que envolve todo o Rossio e há barracas e barreiras de metal das que se usam para conter as multidões por todo o lado. O Rossio é um estaleiro, feio, com música agressiva e em volta da coluna do D. Pedro IV está um andaime com um aspecto muito, muito robusto e com luzes. Percebe-se que tiveram de fazer uma intervenção de urgência na estátua que ameaçava ruína, que só tinham ali à mão aquelas vigas das mais grossas, que não houve grande tempo para pensar e que puseram umas luzes para disfarçar, aproveitando que é Natal. É muito feio, mas sendo um caso de emergência, admite-se. A escolha da música também se justifica. As seis pessoas que patinam parecem não se importar e uma funcionária de serviço até trauteia uma das canções. Talvez o faça inconscientemente. O efeito repetitivo destas canções é similar ao de uma trepanação medieval. Mas quando o mercado pede, que solução há senão dar-lhe com o que pede?
O Rossio está igual a si próprio. Quando o Natal ou outra data qualquer se aproxima há sempre alguém disposto a pôr-lhe uns barracões sujos em cima, uns contentores, uns tapumes, espalhar cabos e altifalantes nas árvores, uma música esganiçada a sair dos altifalantes e a chamar-lhe animação. A mim pareceu-me mais morto que vivo e os basbaques – ao contrário do que diz a organizadora Associação de Dinamização da Baixa Pombalina – não me pareceram mais dinâmicos do que os do costume.
A única coisa de que gostei foi de dois jovens espanhóis que faziam bolas de sabão gigantes em frente à Suíça e umas palhaçadas malabarísticas. Simples. Bonito. Divertido. Sem barulho. Sem música aos berros. Sem barracas. Sem pagar dois euros. Sem T-shirts de propaganda. Imagino que há centenas como eles que poderiam animar de facto o Rossio caso fosse essa a intenção. Li que os artistas de rua são pagos pela Câmara e os mamarrachos pela Misericórdia. O sentido do acordo com a Misericórdia escapa-me.
Que se chame “animação” a infernizar os ouvidos dos passantes e moradores parece uma maldição moderna. Mas não tem de ser. Como não tem de ser esta ocupação selvagem da paisagem urbana pela publicidade. A Misericórdia de Lisboa é uma boa causa, mas isso não justifica que ma enfiem pelos olhos e pelos ouvidos quando quero passear pelo Rossio. A miséria da Câmara não justifica esta prostituição e atravancar o Rossio não é uma necessidade. Além de que há maneiras menos invasivas de o fazer. Basta pensar nisso um pouco antes do Natal. Que tal aproveitar a Web para recolher ideias para a animação do próximo Natal, o de 2012, o de todas as crises? Requisitos: a Câmara não pode gastar um tostão a mais do que gastou este ano, não pode haver publicidade agressiva, não pode haver música aos berros, solicita-se um mínimo de gosto. A Câmara quer começar a recolher as ideias? (jvmalheiros@gmail.com)

quarta-feira, novembro 24, 2010

Começar hoje a mudar o mundo

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 24 de Novembro de 2010
Crónica 40/2010

Todos gostamos de histórias e estamos dispostos a investir o tempo necessário para as ouvir

As estatísticas dizem isso há anos, mas como as estatísticas não são mais do que um dos três tipos de mentiras que há no mundo, como lembrava Mark Twain, é prudente duvidar. Só que desta vez é verdade: os portugueses estão a ler mais. A ler mais livros, entenda-se – além de andarem a ler mais no geral (se contarmos os jornais gratuitos e a Web e os SMS).
Como é que eu sei? Sei, porque na semana passada entrei numa carruagem de metro de Lisboa, na Linha Azul, e havia, num raio de cinco metros, sete-pessoas-sete a ler livros. Livros a sério, alguns grossos, alguns já perto do fim, quase todos romances. A maior parte dos leitores eram mulheres (4-3), como sempre, mas os homens até estavam bem representados na amostra. E além destes ainda havia várias pessoas a ler jornais e revistas, uns gratuitos, outros nem por isso. Algo impensável há dez anos e um dos raros sinais de esperança do presente.

Como se explica o fenómeno? A subida da escolaridade média e as iniciativas do Plano Nacional de Leitura têm certamente algo a ver com isso, mas a minha explicação favorita é a Web.

As décadas de explosão dos media ensinaram-nos que quanto mais informação se consome... mais informação se quer consumir. A informação que consumimos hoje desperta apetite por mais informação amanhã. Lemos histórias que queremos saber como continuam, que queremos saber como acabam. E a informação a que acedemos hoje cria um contexto no qual a informação de amanhã ganha mais sentido, se torna mais interessante. A narrativa vai ficando cada vez mais rica. Por outro lado, à medida que acumulamos informação e vamos encontrando as peças do puzzle, as lacunas no nosso conhecimento vão-se tornando evidentes e acabam por se tornar insuportáveis. Precisamos de saber.

Por outro lado, a verdade é que todos gostamos de histórias – sejam elas notícias ou romances – e estamos dispostos a investir o tempo necessário para as ouvir se tivermos um razoável grau de certeza de que elas vão fazer sentido para nós. É aqui que a Web – e as redes sociais e os telemóveis – ganham importância. A Web, pela informação que permite partilhar entre amigos e conhecidos, entre membros de uma mesma rede, entre especialistas e leigos, tem um imenso poder de recomendação – como os sites de livros ou discos bem sabem. O embaraço da escolha é uma das muitas razões que nos pode fazer adiar uma compra – quer se trate de um livro, de um carro ou de um vinho – e a existência de uma recomendação de alguém em quem confiamos (porque sabe mais do que nós ou, pelo contrário, porque é alguém como nós) facilita a decisão da compra.

A leitura, depois, alimenta-se a si própria. O mais difícil é começar. Uma vez descoberta a magia da leitura e dispondo de um mínimo de orientação, é fácil continuar. E a maior ligação existente entre pessoas (e não menor, como se receava há uns anos), através de redes sociais e telemóveis, funciona como estímulo. Já sabíamos que as pessoas liam notícias principalmente para poderem falar umas com as outras sobre o que aconteceu. O que acontece com a literatura não é diferente: quando um livro, para além de conversar connosco, se transforma em tema de conversa (“Já leste? Onde é que vais? Não achas fantástico? Viste a maneira como ele conta a viagem?”) não é possível mantermo-nos de fora. Na primeira oportunidade compramos o livro ou – mais raramente - requisitamo-lo numa biblioteca.

Pode ser que a crise se traduza num maior recurso às bibliotecas – o que seria uma conquista. As bibliotecas têm segredos insuspeitos e emprestam-nos livros que nunca compraríamos. Se ainda não tem o vício da leitura, hoje, dia de greve geral, é um bom dia para começar. Não precisa de passar o dia todo em manifestações. Pegue num dos livros que estão à espera na sua estante. Leve-o para um jardim e leia. Escolha um livro inspirador. Continuamos a precisar de ideias para mudar o mundo. (jvmalheiros@gmail.com)