terça-feira, janeiro 26, 2010

A angústia do jornalista perante a Internet

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 26 de Janeiro de 2010
Crónica 4/2010

A informação deixou de ser uma palestra e transformou-se numa conversa

De cada vez que tem lugar um acontecimento que concentra as atenções do mundo, como agora sucede no Haiti, torna-se evidente que os canais que utilizamos para nos mantermos informados mudaram de forma radical nos últimos dez anos.

É verdade que ainda continuamos a recorrer aos media tradicionais como a TV e os jornais (frequentemente através dos seus sites) e a ver as suas reportagens e a ler os seus artigos, mas ninguém que queira saber o que se passa no terreno e compreender os factos para além da superfície se fica por aí. O facto de podermos hoje ler e ver na Internet, sem mediação, os relatos dos indivíduos comuns que protagonizam estes acontecimentos, os testemunhos dos voluntários das organizações humanitárias, a par de blogues de jornalistas no local (locais ou estrangeiros, free-lance ou não) fornece à informação a que temos acesso uma riqueza incomparável. Durante anos tentámos vender a ideia (convictamente, nos melhores casos) de que o jornalismo era a única forma de aceder a informação rigorosa e independente sobre os acontecimentos do mundo. Se isso foi verdade alguma vez, hoje já não é certamente.

Sempre soubemos que não existiam fontes de informação desinteressadas, mas hoje é evidente que a única informação independente é a que se obtém através de uma multiplicidade de fontes e a que promove a participação dos cidadãos (os leitores sabem sempre mais que os jornalistas). Essas fontes independentes estão aos milhões na Internet, nos blogues, nas redes sociais, no Youtube, no Flickr, no Twitter, em novos serviços que emergem todos os dias e que não precisam de um modelo de negócio, porque não vivem disso. Foram eles que nos disseram o que estava a acontecer na Birmânia, no Irão, e agora no Haiti continuam a fazê-lo.

Podem permitir-nos prescindir dos media tradicionais? Não é essa a questão. Os media tradicionais estão a morrer porque estão a cometer harakiri, não porque alguém os queira destruir. E os leitores certamente que não querem substituir-se aos jornais. Só que são aqueles, "as pessoas antes conhecidas como a audiência", na expressão feliz de Jay Rosen, que têm mais histórias para contar, que sabem mais, que têm opiniões mais ricas e até posições mais isentas. Cada um deles? Não. Todos juntos.

É por isso que continua a ser espantosa a forma tímida (ou inexistente) como a imprensa tradicional ignora este recurso - o mais abundante e o mais rico recurso informativo do planeta - e, com raras excepções, lhe passa ao lado, com tímidas olhadelas de soslaio.

Como têm explicado muitos gurus do novo jornalismo - Dan Gillmor, Jeff Jarvis, ainda Jay Rosen - o jornalismo deixou de poder viver numa estrutura vertical, onde uns falam e os outros ouvem. A informação deixou de ser uma palestra e transformou-se numa conversa. As ferramentas existem e as pessoas estão a usá-las. O que é triste é que os media, devido ao corporativismo dos seus jornalistas, ao desânimo dos seus dirigentes, à ignorância dos seus gestores, à ganância anal-retentiva dos seus proprietários, continuam a tentar fazer tudo o que podem para deixar tudo na mesma. Não vai ficar. Se os jornalistas não quiserem entrar na conversa que o fluxo de informação já é, serão condenados à irrelevância.

O que não faz sentido é que, no momento em que há um novo jornalismo para inventar - e um jornalismo que merece entusiasmo, onde a criatividade e a participação cidadã assomam por todas as frinchas -, os media fiquem à espera da morte, repetindo sem o perceber o mantra louco que diz que a Internet é o futuro. O futuro passou-lhes debaixo do nariz e eles não deram por isso. (jvmalheiros@gmail.com)

quarta-feira, janeiro 20, 2010

Shaken, not stirred. E com um cheirinho a morte

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 20 de Janeiro de 2010
Crónica 3/2010

No Haiti há um resort cercado por um muro de 3,5 metros de altura e protegido por guardas armados

Três dias depois de o sismo de 12 de Janeiro ter arrasado o Haiti e ter deixado 200.000 mortos sob os destroços das suas casas, um navio da companhia americana Royal Caribbean, o Independence of the Seas, atracou na costa norte da ilha.

O navio não levava medicamentos, nem tendas para os desalojados, nem cães para detectar sobreviventes soterrados, nem bulldozers para remover escombros, nem trabalhadores humanitários. Trazia turistas, que participavam num cruzeiro caribenho, e que vieram gozar a habitual paragem na praia de Labadee, um resort cercado por um muro de 3,5 metros de altura e protegido por guardas armados, que garantem que nenhum dos miseráveis haitianos que vivem do lado de lá perturbará o calmo mergulho nas águas cor de esmeralda ou o churrasco servido nas areias douradas que a empresa proporciona aos seus clientes. E assim foi. Depois de uma estadia de 24 horas, durante a qual os turistas não tiveram de ver as pilhas de corpos em decomposição recolhidos das ruínas, nem as crianças subnutridas que aguardam tratamento nos hospitais de campanha, nem a violência das pilhagens pelas ruas, o navio seguiu viagem com os seus passageiros, em direcção ao paraíso tropical seguinte.

É verdade que muitos dos passageiros, conscientes do que se passava do lado de lá dos muros - cujas imagens enchiam os noticiários das televisões dos seus camarotes -, não quiseram sequer descer à praia. E é verdade que o navio deixou na ilha quarenta paletes de ajuda alimentar e que a empresa de cruzeiros se comprometeu a entregar como donativo as receitas da estadia. Mas, apesar destes leves paliativos, não se pode deixar de sentir que o episódio contraria as mais elementares regras da decência. Como se pode beber um martini quando há ao lado uma criança que morre por falta de água? Como podemos balançar numa rede entre dois coqueiros quando, ali ao lado, ouvimos o grito dilacerante da rapariga de 14 anos que chora a morte do seu irmão de cinco anos, esmagado debaixo de uma casa sob cujos escombros ela sobreviveu cinco dias? É fácil responder que o martini não pode matar a sede à criança e que a anulação do cruzeiro iria prejudicar ainda mais a quase inexistente economia haitiana, mas nenhum sarcasmo e nenhum cálculo conseguem disfarçar o nó nas nossas tripas. Será tão difícil perceber que algo está profundamente errado? Será tão difícil perceber que esta desigualdade é indecente?

A questão é que o que se passou neste cruzeiro não foi muito diferente do que se passou das outras vezes em que o Independence of the Seas atracou em Labadee. O Haiti é desde há muito o mais pobre país das Américas e a esmagadora maioria da sua população vive abaixo do limiar de pobreza, com um por cento da população a arrecadar metade do produto nacional. Do outro lado do muro de três metros e meio de altura sempre houve fome. E casas que não oferecem qualquer garantia de protecção contra sismos. Mesmo sem uma catástrofe a mostrar nas televisões a morte e a violência, a pobreza e a sordidez, o Haiti - que tem a glória de ser o único Estado moderno que nasceu de uma revolta de escravos - é desde há muito um dos caixotes de lixo do mundo, um país exportador de escravos, explorado sucessivamente pela França e pelos EUA, que apoiaram as suas múltiplas ditaduras, condenado à miséria e à doença (recordam-se da sida?) e esquecido do mundo. As promessas de ajuda de hoje devem-se apenas à presença no primetime. E a escala do Independence of the Seas só nos parece chocante hoje pela mesma razão. Há muito tempo que os passageiros do Independence of the Seas tomam os seus martinis sobre um fundo de cheiro de morte. Nós é que fingimos que não o sentimos. (jvmalheiros@gmail.com)

quarta-feira, janeiro 13, 2010

Spam

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 13 de Janeiro de 2010
Crónica 2/2010

Há oportunidades à espreita no seu filtro de spam. Em 2010 não deixe a vida passar-lhe ao lado

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sexta-feira, janeiro 01, 2010

EUA difundem conselhos de Ano Novo para bombistas

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 5 de Janeiro de 2010
Crónica 1/2010


Department of Homeland Security ensina-lhe como deixar de se preocupar e passar a amar a bomba

Depois de, no passado dia de Natal, o nigeriano Abdul Farouk Abdul Mutallab ter tentado fazer explodir um avião da Northwest Airlines proveniente de Amesterdão, quando este se aproximava do aeroporto de Detroit, a Transportation Security Administration, a agência federal responsável pela segurança dos transportes nos EUA, que faz parte do famigerado Department of Homeland Security, decidiu emitir novos procedimentos que devem ser seguidos por todos os futuros bombistas, sejam eles ou não da Al-Qaeda, se quiserem passar despercebidos e ser bem sucedidos nos seus atentados.

Antes de mais, a Transportation Security Administration (TSA) alerta os candidatos a bombistas para o facto de que todos os passageiros que queiram entrar nos Estados Unidos e que sejam originários ou provenientes de 14 países (Nigéria, Paquistão, Iémen, Afeganistão, Líbia, Somália, Cuba, Irão, Sudão, Síria, Argélia, Líbano, Arábia Saudita e Iraque) vão passar a ser submetidos a uma revista corporal completa e a uma inspecção manual dos seus objectos pessoais.

Isto significa que, se a Al-Qaeda quiser que os seus bombistas passem despercebidos, deve ter o cuidado de os escolher entre cidadãos naturais de outros países, o que não será difícil. Para maior garantia, a TSA lembra que são os aviões que se dirigem aos Estados Unidos que são objecto de vigilância mais apertada e não aqueles que saem dos Estados Unidos, o que sugere que sejam estes os escolhidos como alvos de atentados bombistas. Uma das vantagens adicionais consiste no facto de os EUA serem um dos países do mundo onde é mais fácil comprar armas ou explosivos, tornando mais fácil o aprovisionamento dos terroristas.

A TSA avisa porém todos os futuros bombistas de que não vai difundir em detalhe os novos procedimentos anti-terroristas que devem ser seguidos pelas companhias aéreas - o que significa que poderá ser mais avisado para os futuros terroristas dedicar-se a atacar outros tipos de transporte, com posições menos destacadas na lista de prioridades da Homeland Security, mas não menos mediáticos nem menos mortíferos. O metropolitano, ferries, comboios e autocarros são possibilidades deixadas em aberto - mas deve ter-se em conta que a responsabilidade da TSA se resume aos transportes, podendo haver alternativas interessantes para os objectivos da Al-Qaeda noutros domínios de actividade.

No que diz respeito aos aviões, além das revistas corporais e da inspecção das bagagens pessoais dos suspeitos oriundos de certos países, os passageiros devem estar conscientes de que podem ser objecto de quaisquer outras medidas de caução imaginadas pelas companhias aéreas ou pelas tripulações dos aparelhos - sem restrições de qualquer tipo. Entre as que estão a ser adoptadas pelas companhias aéreas estão a obrigatoriedade de mostrar as duas mãos sempre que a tripulação o pedir (supõe-se que o pedido seja o clássico "mãos ao ar") ou de estar sentado durante a última hora de voo ou a proibição de usar a casa de banho - o que desaconselha vivamente qualquer diarreia, como um outro passageiro nigeriano já descobriu.

Todas estas medidas, adoptadas na sequência do tentado atentado do jovem nigeriano e da maléfica histeria crónica de Dick Cheney, poderão vir a ser ainda complementadas por outras até que a democracia americana se torne virtualmente indistinguível de um país fundamentalista muçulmano. Os hábitos serão diferentes, mas o grau de liberdade semelhante. É evidente que nenhuma dessas medidas serve absolutamente para nada senão para instalar uma falsa sensação de segurança ou uma verdadeira sensação de medo, mas Obama poderá dizer que não fraquejou na luta contra o terror. Por enquanto, só está a fraquejar na luta contra Cheney e o seu estilo ("tough, mean, dirty, nasty", segundo o próprio) de "garantir a segurança dos EUA". Aterrorizador. (jvmalheiros@gmail.com)