terça-feira, fevereiro 23, 2010

A beleza e a liberdade

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 23 de Fevereiro de 2010
Crónica 8/2010

Uma estratégia não é um texto: é uma ideia mobilizadora

Há cerca de vinte anos, no início do lançamento do PÚBLICO, fiz  uma entrevista ao italiano Riccardo Petrella, que foi durante dezasseis anos director do programa FAST (Forecasting and Assessment in Science and Technology) da Comissão Europeia e, com João Caraça e outros, um dos fundadores do Grupo de Lisboa, que produziu em 1994 o estimulante manifesto “Limites à competição”.

A questão central que se punha na entrevista era “a estratégia de desenvolvimento” que deveria ser adoptada por Portugal, que Petrella conhecia bem, e ele respondeu- me com a sua habitual exuberância: “Portugal devia apostar na beleza!”

A beleza! Algo que não estamos à espera de ouvir da boca de um economista, mesmo quando esse economista é também um católico de esquerda, um crítico da mercantilização do mundo e um militante da cidadania activa. Se fosse necessário provar que uma estratégia não precisa de estar encadernada em cem páginas A4, ou nesse mínimo denominador comum do raciocínio chamado PowerPoint, bastaria ouvir estas palavras: “Portugal devia apostar na beleza!”

Não é evidente o que pode decorrer daqui? Não é evidente que basta ir desdobrando cuidadosamente esta ideia para nos irem aparecendo os objectivos sectoriais a curto ou longo prazo, da paisagem à indústria e às artes, os programas, as acções? E não é evidente que esta pode ser uma estratégia nacional porque é, antes de mais, uma ideia mobilizadora, pela qual queremos ser mobilizados, uma ideia que vale a pena?

Mas se Portugal não se quis deixar seduzir pela beleza (nem por qualquer outra coisa, diga-se de passagem) e considera como objectivo suficiente viver a vidinha, há quem tenha outro rasgo. A Islândia deverá debater esta semana no seu Parlamento um surpreendente projecto, já subscrito por 19 deputados de vários partidos políticos, que pretende transformar o país num paraíso da liberdade de informação e da liberdade de expressão.

À imagem dos países que são paraísos fiscais, a proposta, apresentada pela deputada de esquerda Birgitta Jonsdottir, visa ampliar ao máximo as liberdades de expressão previstas na lei e impossibilitar as práticas que a reduzem, importando de diversos países diferentes dispositivos legais – leis que garantam a protecção da identidade das fontes dos jornalistas, leis que protegem as pessoas que denunciem práticas ilegais das empresas ou instituições onde trabalhem, leis que protejam a informação disponibilizada em servidores da Internet instalados no país, etc.

Há uma razão para esta iniciativa: a sensação de que, se tivesse havido uma maior obrigação de transparência por parte das instituições financeiras islandesas e se os media tivessem feito o seu trabalho sem receio de represálias, a Islândia não teria sido afectada pela crise financeira da forma violenta como foi.

Mas os proponentes do diploma consideram que existe aqui, mais do que uma protecção contra novos escândalos, um caminho a seguir, uma estratégia. Basta, mais uma vez, desdobrar esta ideia de liberdade de expressão para ter uma ideia do que isto pode significar em termos de criação e até de negócio.

“Queremos tornar-nos o oposto de um paraíso fiscal”, diz Birgitta Jonsdottir, citada pelo New York Times (http://tiny.cc/KgTxk). “Eles querem tornar tudo opaco. Nós queremos tornar tudo transparente.”

A ideia ainda precisa de algum amadurecimento e a sua concretização pode vir a revelar-se difícil ou mesmo impossível, mas é uma ideia mobilizadora e original. Algo em que merece a pena investir algum tempo e esforço.

Afinal, ser conhecido como o campeão mundial da liberdade de expressão não parece uma coisa má (ainda que não seja isenta de riscos, como nenhuma liberdade é). Não haverá por cá nenhuma ideia mobilizadora deste género, como a beleza de Petrella ou a liberdade de expressão de Jonsdottir? (jvmalheiros@gmail.com)

quarta-feira, fevereiro 17, 2010

A peça que temos

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 17 de Fevereiro de 2010

Crónica 7/2010

A peça é muito pouco consistente e o público vai perceber que os diálogos não foram muito trabalhados

Temos um enredo com demasiada intriga, com demasiado conflito, com demasiadas personagens, só com vilões e sem nenhum herói, o que torna muito difícil conseguir um desenlace feliz no terceiro acto.

Temos um público que boceja cinicamente perante as peripécias previsíveis do argumento, que não gosta de nenhum dos actores, que está enjoado até à medula com todos os efeitos especiais, mas que continua a seguir a peça por desfastio, à falta de melhor, sabendo que as últimas cenas nunca vão chegar a ser exibidas.

No primeiro acto temos dois juízes que acham que o duque cometeu o mais horrendo dos crimes contra o povo e que o querem acusar disso mesmo e por um momento parece que isto vai ser uma história moral edificante, mas depois chegam os outros dois juízes que acham precisamente o contrário e não se percebe se são de outra peça e se enganaram no palco ou se leram mal o script ou se são amigos do duque disfarçados ou se qualquer outra coisa e que fazem uma enorme salganhada e nunca chegam a explicar nada.

Depois temos o grupo dos amigos do duque, aqueles intriguistas pagos a peso de ouro e ansiosos por ficar nas suas boas graças, sempre a trocar mensagens uns com os outros, sempre a tecer tramas na sombra e a imaginar maneiras de agradar ao chefe, cheios de planos maquiavélicos para liquidar os inimigos do duque, mas que depois fracassam miseravelmente, são descobertos e negam tudo, e que mais parecem figuras de desenhos animados do que de uma grande tragédia como esta.

Depois temos os comerciantes que só aparecem para dizer que não sabiam de nada, os banqueiros que só aparecem para dizer que sabiam ainda menos, que não tinham conhecimento de que alguém tenha feito alguma coisa e que se alguém fez alguma coisa foi com certeza por acaso. É tudo muito pouco consistente. O público não é estúpido e vai perceber que aqui os diálogos não foram muito trabalhados.

Temos os partidários do duque que se indignam muito com as acusações, os partidários da abadessa que se indignam com os acusados e os outros todos que se indignam com a indignação dos primeiros, mas nada disso faz muito sentido e ninguém é muito convincente.

E também não se percebe se o duque tem mesmo amigos ou se agora é que ele vai perceber que afinal não tem amigo nenhum e que afinal isto é mesmo uma história moral mas de outro género.

Depois temos o próprio duque que berra e se irrita muito mas não tem nenhuma fala que seja muito verosímil. Também há o velho conselheiro, que se preocupa muito e faz grandes tiradas, mas que nem se percebe o que ele faz ali e até se podiam cortar as cenas em que ele aparece que ninguém reparava.

A verdade é que a peça não faz grande sentido. Parece que os magistrados são todos umas pobres marionetas desmioladas, que os cortesãos são todos uns labregos sem qualidade, que os comerciantes são todos uns mentecaptos, para não falar do duque que parece ter urdido uma trama para se tornar duque, o que não faz sentido.

Para mais, a peça não tem um só personagem admirável, um homem de honra, nobre e corajoso, alguém que fale de coração aberto – um só, para amostra, um com quem o público se pudesse identificar, alguém que pudesse ser respeitado, de quem se pudesse pôr o nome num cartaz.

Nem tem uma paixão ardente, um amor purificador, algo que se possa enaltecer, que justifique um desvario. É uma peça triste e fraquinha e um bocadinho desconchavada. É pena ser a peça que temos. (jvmalheiros@gmail.com)

quarta-feira, fevereiro 10, 2010

Um equilíbrio entre os factos e os interesses?

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 10 de Fevereiro de 2010

Crónica 6/2010

O que o lobby das petrolíferas pretende é lançar a dúvida entre os cidadãos sobre o aquecimento global

Nos meses que antecederam a cimeira do clima de Copenhaga, em Dezembro último, um jornalista que escrevesse num jornal de alguma importância coisas como a) “o planeta está a aquecer” b) “o aquecimento do planeta pode provocar uma catástrofe climática” ou c) “o aquecimento do planeta é em grande medida de origem humana” arriscava-se a ser objecto de uma verdadeira barragem de mails onde essas ideias eram contestadas, classificadas como resultado de investigação errada ou fraudulenta, identificadas como fazendo parte de uma conspiração anticapitalista e onde eram fornecidos links para sites que contestavam o aquecimento global.

A operação era demasiado generalizada, demasiado sincronizada e demasiado organizada para ser fruto do acaso.

Era evidente que se tratava de uma operação de contra-informação global, estruturada e bem financiada. E, nos últimos meses, tem vindo a lume alguma informação sobre essa operação, referindo, por exemplo, o financiamento por parte de empresas como a ExxonMobil.

O objectivo destas operações não é apagar da mente dos cidadãos de todo o mundo o conhecimento que têm sobre o aquecimento global. O objectivo é apresentar o ponto de vista dos chamados “cépticos” como sendo tão válido como o ponto de vista consensual na comunidade científica, defendido pelo IPCC, e forçar os media a tratar ambas as perspectivas de uma forma “equilibrada”, de forma a lançar a dúvida entre os cidadãos e a reduzir o apoio político ao combate ao efeito de estufa.

É normal que existam cientistas honestos cépticos quanto ao aquecimento global e/ou às suas causas. Mas esse facto não invalida o imenso consenso científico que existe no mundo sobre o efeito de estufa nem o imenso consenso social sobre a conveniência de o combater. E isto independentemente do que se pense da maior ou menor correcção da atitude deste ou daquele investigador ou até da existência de erros nesta ou naquela investigação particular – que, a existirem, devem ser naturalmente corrigidos. Apesar disso, porém, as provas são inúmeras e esmagadoras.

O lobby da contra-informação, no entanto, tem aqui a seu favor dois pontos de peso. O primeiro é a atitude de abertura que é base da cultura científica, que leva os investigadores a considerar com seriedade qualquer argumento que contrarie o consenso, por heterodoxo que seja. O segundo é a atitude dos media, onde os jornalistas especializados escasseiam e são cada vez mais pressionados a produzir prosa a metro e onde a competência tende a ser substituída por uma atitude mais “distanciada” e “profissional” (e menos arriscada) e que muitas pessoas confundem com “balanced reporting”: citar A, citar B, lavar daí as suas mãos e deixar o leitor extrair as suas conclusões ou mergulhar na confusão total. É com base neste critério que há escolas e jornais que tratam o evolucionismo e o criacionismo como duas visões equivalentes do mundo. E o mesmo pode acontecer com o aquecimento global.

É evidente que não cabe aos media definir o que é a verdade científica do momento, mas o seu papel também não se pode resumir a citar as várias partes de uma discussão – principalmente quando essa discussão está viciada por interesses escondidos.

Os media devem produzir racionalidade e permitir que os cidadãos façam escolhas informadas – não contribuir para a cacofonia. Neste caso, a racionalidade passa por saber quem fala e quem paga a quem para dizer o quê. “Follow the money” sempre foi uma boa regra do jornalismo. (jvmalheiros@gmail.com)

terça-feira, fevereiro 02, 2010

O trabalho não pode ser o lugar do desespero

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 2 de Fevereiro de 2010

Crónica 5/2010
 
É possível ter empresas competitivas a nível global e internamente coesas, onde dê prazer trabalhar
Na semana passada, o PÚBLICO publicou uma entrevista de Ana Gerschenfeld a Christophe Dejours, um psiquiatra e psicanalista francês que estuda a relação entre trabalho e doença mental. A entrevista (Um suicídio no trabalho é uma mensagem brutal, 30/1/2010), que pode ser lida numa versão mais longa no site deste jornal, tem como tema central os suicídios de trabalhadores causados pelo assédio moral nas suas empresas e debruça-se, em particular, sobre o caso da France Telecom, mas nela Christophe Dejours faz acusações à gestão moderna que merecem consideração.
Uma das técnicas que lhe merecem mais reservas é a chamada "avaliação individual de desempenho", que praticamente hoje todas as empresas utilizam - e que tantos gestores idolatram pelo poder repressivo que lhes oferece. Para Dejours, a avaliação individual modificou totalmente o mundo do trabalho ao pôr em concorrência entre si não só as empresas, mas também os indivíduos. Como a avaliação está em geral associada a prémios ou promoções e, por vezes, mesmo à própria manutenção do emprego, ela é uma ferramenta geradora de medo, que destrói a cooperação entre trabalhadores sobre a qual se baseia todo o trabalho e o próprio tecido social do local de trabalho. "Aos poucos, todos os elos que existiam até aí - a atenção aos outros, a consideração, a ajuda mútua - acabam por ser destruídos. As pessoas já não se falam, já não olham umas para as outras. E quando uma delas é vítima de uma injustiça, quando é escolhida como alvo de um assédio, ninguém se mexe..." E acrescenta: "[Antes] Quando alguém era assediado, beneficiava do olhar dos outros, da ajuda dos outros, ou simplesmente do testemunho dos outros. Agora estão sós perante o assediador (...). O mais difícil em tudo isto não é o facto de ser assediado, mas o facto de se viver uma traição - a traição dos outros."

Não há, nas declarações de Dejours, para alguém que conheça minimamente o mundo do trabalho, nenhuma surpresa. Todos sabemos que as coisas são assim - à esquerda e à direita, trabalhadores e patrões, sindicalistas e directores de Recursos Humanos - mas ensinaram-nos a pensar que isso era inevitável, que essa pressão e essa submissão que os gestores tentam impor possuíam alguma racionalidade. Que os fins, em suma, justificavam os meios. Não têm e não justificam. Nunca justificam, como já devíamos ter aprendido.
O que as palavras de Dejours nos dizem, claramente, é que as empresas se transformaram muitas vezes em locais de submissão e de sofrimento inútil - às vezes de verdadeira tortura, às vezes de morte. E também nos explica - como devia ser evidente - que isso não tem de ser assim, que é melhor para todos, e também para as empresas, que as coisas não se passem assim.

Nos últimos anos, por todo o mundo, mulheres e homens de esquerda (e os sindicatos...) acederam a abdicar dos seus princípios e aceitaram que as empresas podiam ser parêntesis da democracia, da liberdade, da igualdade, da fraternidade, da solidariedade. Pequenas ilhas de tirania e de submissão em nome da eficiência, da produtividade, do crescimento, da competitividade global. É uma falsa equação. Toda a investigação moderna nos mostra que o stress mata a inovação, que o medo estrangula a criatividade, que a submissão não produz maior empenho, que o desânimo não estimula a cooperação - essa inovação e criatividade e empenho e cooperação que são o pão da boca da economia e da produtividade. E, mesmo que isso não acontecesse, deveria bastar a nossa consciência para traçar os limites da decência.

Agora que começamos a perceber o buraco em que nos metemos, que começamos a ver os frutos dos ovos de serpente que deixámos que fossem incubados no mundo do trabalho, não será altura de arrepiar caminho? (jvmalheiros@gmail.com)

segunda-feira, fevereiro 01, 2010

"Um suicídio no trabalho é uma mensagem brutal" - uma entrevista a não perder

"Um suicídio no trabalho é uma mensagem brutal"

Uma entrevista ao investigador francês Christophe de Dejours por Ana Gerschenfeld. A não perder.
As condições de trabalho impostas pelos modernos métodos de gestão em nome da Santa Eficiência, da Nossa Senhora da Produtividade e da Congregação da Competitividade Global.
Quantas centenas de milhões de escravos trabalham em países ditos modernos e democráticos sob este regime?
E quantas pessoas têm a coragem de combater este regime laboral em nome da simples decência?