quarta-feira, fevereiro 17, 2010

A peça que temos

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 17 de Fevereiro de 2010

Crónica 7/2010

A peça é muito pouco consistente e o público vai perceber que os diálogos não foram muito trabalhados

Temos um enredo com demasiada intriga, com demasiado conflito, com demasiadas personagens, só com vilões e sem nenhum herói, o que torna muito difícil conseguir um desenlace feliz no terceiro acto.

Temos um público que boceja cinicamente perante as peripécias previsíveis do argumento, que não gosta de nenhum dos actores, que está enjoado até à medula com todos os efeitos especiais, mas que continua a seguir a peça por desfastio, à falta de melhor, sabendo que as últimas cenas nunca vão chegar a ser exibidas.

No primeiro acto temos dois juízes que acham que o duque cometeu o mais horrendo dos crimes contra o povo e que o querem acusar disso mesmo e por um momento parece que isto vai ser uma história moral edificante, mas depois chegam os outros dois juízes que acham precisamente o contrário e não se percebe se são de outra peça e se enganaram no palco ou se leram mal o script ou se são amigos do duque disfarçados ou se qualquer outra coisa e que fazem uma enorme salganhada e nunca chegam a explicar nada.

Depois temos o grupo dos amigos do duque, aqueles intriguistas pagos a peso de ouro e ansiosos por ficar nas suas boas graças, sempre a trocar mensagens uns com os outros, sempre a tecer tramas na sombra e a imaginar maneiras de agradar ao chefe, cheios de planos maquiavélicos para liquidar os inimigos do duque, mas que depois fracassam miseravelmente, são descobertos e negam tudo, e que mais parecem figuras de desenhos animados do que de uma grande tragédia como esta.

Depois temos os comerciantes que só aparecem para dizer que não sabiam de nada, os banqueiros que só aparecem para dizer que sabiam ainda menos, que não tinham conhecimento de que alguém tenha feito alguma coisa e que se alguém fez alguma coisa foi com certeza por acaso. É tudo muito pouco consistente. O público não é estúpido e vai perceber que aqui os diálogos não foram muito trabalhados.

Temos os partidários do duque que se indignam muito com as acusações, os partidários da abadessa que se indignam com os acusados e os outros todos que se indignam com a indignação dos primeiros, mas nada disso faz muito sentido e ninguém é muito convincente.

E também não se percebe se o duque tem mesmo amigos ou se agora é que ele vai perceber que afinal não tem amigo nenhum e que afinal isto é mesmo uma história moral mas de outro género.

Depois temos o próprio duque que berra e se irrita muito mas não tem nenhuma fala que seja muito verosímil. Também há o velho conselheiro, que se preocupa muito e faz grandes tiradas, mas que nem se percebe o que ele faz ali e até se podiam cortar as cenas em que ele aparece que ninguém reparava.

A verdade é que a peça não faz grande sentido. Parece que os magistrados são todos umas pobres marionetas desmioladas, que os cortesãos são todos uns labregos sem qualidade, que os comerciantes são todos uns mentecaptos, para não falar do duque que parece ter urdido uma trama para se tornar duque, o que não faz sentido.

Para mais, a peça não tem um só personagem admirável, um homem de honra, nobre e corajoso, alguém que fale de coração aberto – um só, para amostra, um com quem o público se pudesse identificar, alguém que pudesse ser respeitado, de quem se pudesse pôr o nome num cartaz.

Nem tem uma paixão ardente, um amor purificador, algo que se possa enaltecer, que justifique um desvario. É uma peça triste e fraquinha e um bocadinho desconchavada. É pena ser a peça que temos. (jvmalheiros@gmail.com)

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