terça-feira, fevereiro 20, 2001

Representação

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no Público de 20 de Fevereiro de 2001
Crónica x/2001


A ratificação do Tribunal Penal Internacional deu origem nos últimos dias a uma pequena avalanche de textos de opinião, editoriais e debates.
A discussão não é fácil porque a questão tem a particularidade de colocar frente a frente bens igualmente estimáveis e contraditórios: de um lado, o justo desejo de punir os grandes criminosos negligenciados pelas justiças nacionais e o primado dos Direitos Humanos sobre os códigos nacionais. Do outro, os princípios de soberania nacional e o princípio humanista do Código Penal português que recusa as penas perpétuas — para deixar de lado as imunidades dos detentores de cargos públicos.
Trata-se de saber, neste caso, quais destes bens temos por essenciais e inalienáveis e quais consideramos negociáveis em troca de um menor mal ou de um maior bem — no duplo plano da moral e da política.
(Diga-se à margem que defendo a ratificação do TPI, com algum cepticismo mas sem hesitação.)
O curioso nesta discussão tem sido que, quando se torna evidente o choque entre o desejo de prevenir/punir um genocídio e a necessidade de prescindir da humanidade das penas portuguesas, venha à baila a eventualidade de se realizar um referendo. Como se, confrontados por um dilema que não passa pela facilidade da fracção ideológica, os votos do povo pudessem servir de moeda ao ar.
Um preocupante corolário que se pode extrair desta proposição é que os nossos representantes eleitos parecem considerar-se as melhores pessoas para tomar as decisões relativamente às quais os partidos têm posições claras e opostas, mas já não para decidir questões de maior profundidade filosófica. O que é perturbador para aqueles (poucos) que se apressam a falar de referendo não é o confronto nem as ideais em presença, mas a dúvida.
Para este tipo de questão, o referendo não pode ser uma possibilidade. O referendo é adequado para que uma população escolha entre duas possibilidades aceitáveis (ambas) no plano dos princípios, mas não pode ser a base da moral ou da política. Serve para ver de que lado estão mais interesses — o que é legítimo e razoável em muitos casos. Mas não pode ser um escape para a pusilanimidade.
É precisamente neste tipo de questões que a democracia representativa tem de mostrar a sua virtude. Esta parece-nos um melhor sistema que a democracia directa não só porque é mais eficaz, nem só porque nos permite eleger os melhores de entre nós, mas também porque obriga os eleitos a representar-nos de forma pública — comprometendo-se a representar (há uma componente teatral na política) o papel de políticos honestos, competentes, corajosos e empenhados no interesse público. Independentemente da qualidade da nossa escolha, a visibilidade da representação garante de alguma forma que os nossos eleitos serão melhores do que nós (ou se esforçarão por sê-lo), ainda que o não fossem à partida — numa espécie de profecia auto-realizadora positiva.

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