terça-feira, julho 20, 2010

A igreja fálica, iníqua, católica e apostólica

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 20 de Julho de 2010
Crónica 27/2010

O pecaminoso sexo das mulheres e os compreensíveis excessos dos padres pedófilos, coitados

A religião serve para responder (ou tentar responder) a perguntas que não encontram resposta em nenhuma outra instância. Para que é que existimos? Por que existe o mal? Questões que vão para além do simples funcionamento e do encadeamento de causas e efeitos do mundo físico e que têm a ver com a procura do sentido da vida, da sua finalidade, com a procura de razões para as circunstâncias que a nossa racionalidade resiste a acreditar que dependam apenas do acaso.

A religião também serve para resolvermos o problema da morte. Não só a morte que acontece do lado de cá, mas a morte que se estende para o lado de lá, esse referente impossível por excelência. Essa morte simultaneamente inevitável (para que haja vida tem de haver morte) e inconcebível (como conceber o nosso nada depois do nosso tudo?).

Perante a morte, a religião oferece pacificação e continuidade. Sentido, mais uma vez – pois não há sentido sem consequência e não pode haver consequência sem continuidade.
A religião também pode ser um instrumento de coesão social e de identidade colectiva mas aqui não faz melhor serviço que um bom mito fundador, uma história e uma língua comum.

Outra função central da religião é a codificação de um sistema de valores. Os valores existem muito aquém da religião e vivem bem sem ela, mas a religião pode conceder-lhes eficácia e estatuto, poder e autoridade. As religiões sempre pretenderam aliás arvorar-se em únicos árbitros do Bem e tentam confundir Moral e Religião sempre que podem. De uma religião espera-se confiança perante o indecifrável e conforto perante o inevitável. Mas também que ajude os seus seguidores a decidir e a fazer as boas escolhas, a hierarquizar os bens e os males, a aproximar-se do bem.
 
A carta que o Vaticano enviou na semana passada aos bispos de todo o mundo com novos preceitos da lei canónica, onde se colocava ao mesmo nível o delito da ordenação de mulheres e a violação de menores pelos padres é um mau serviço prestado à religião em geral e ao catolicismo em particular - o que não teria problema nenhum. Mas o que é mais grave é que esta carta é um despudorado atentado à moral.

O que este documento nos mostra é uma igreja que parece ter perdido todo o sentido do bem e dos direitos individuais (das mulheres e das vítimas de pedofilia), todo o sentido de igualdade cristã e que apenas se preocupa em preservar a sua própria autoridade.

As autoridades eclesiásticas apressaram-se a explicar que os dois delitos eram colocados ao mesmo nível apenas em termos de sanções para os padres ao abrigo da lei canónica e que a Igreja não os considerava igualmente graves, mas é significativo que a igreja tenha tido de acrescentar a explicação.

A questão é que uma igreja que não distingue sem ambiguidades entre o mais odioso dos crimes (por ser perpetrado pelos seus próprios agentes, a coberto da sotaina, contra os seres humanos mais frágeis e mais indefesos) e um procedimento técnico do qual não vem qualquer mal ao mundo é uma igreja que não distingue o bem e o mal.

Esta igreja iníqua e fálica, mais que masculina, onde os pecados de um homem como o padre mexicano Marcial Maciel, bígamo, pedófilo, violador e vigarista mereceram o apoio do Vaticano durante toda a sua vida – como os de muitos outros padres pedófilos – e onde as mulheres representam a tentação e o diabo, é uma igreja que defende a supremacia masculina em todas as circunstâncias. É por esta mesma razão que reserva compreensão (quando não colaboração e abrigo) para os seus pedófilos, fecha os olhos aos “sobrinhos” dos padres, mantém as religiosas numa vil posição de subjugação e considera que as mulheres devem ser sempre servas e nunca companheiras ou colegas em termos de igualdade. (jvmalheiros@gmail.com)

terça-feira, julho 13, 2010

As elites, as massas, a excelência e a necessidde da democracia

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 13 de Julho de 2010
Crónica 26/2010

Não há verdadeiras elites sem verdadeira democracia nem verdadeira democracia sem verdadeiras elites

Nos últimos dias, em debates públicos onde estive presente, vi abordar por mais de uma vez, em relação ao sistema educativo e de formação, a questão da construção de élites versus democratização ou da aposta na excelência versus massificação. Em geral, quando esta questão emerge, assistimos sempre de um lado (à esquerda) a uma defesa envergonhada da suposta construção da elite. “Defesa”, por se considerar que há homens e mulheres com talentos excepcionais a quem devem ser dadas todas as possibilidades de os desenvolver (o “pleno desenvolvimento” de que fala a Declaração Universal dos Direitos Humanos) e porque um ensino de qualidade deve ser capaz de produzir homens e mulheres dotados de competências para servir da melhor forma a sociedade (uma necessidade de todos). “Envergonhada”, por se considerar que esse objectivo pode colidir de alguma forma com o objectivo do acesso generalizado ao ensino de qualidade (os recursos não chegam para tudo) e porque se sente que esta aposta na construção destas élites pode pôr em causa esse sentimento forte de igualdade entre todos os seres humanos que está na base do ideal republicano (todos são iguais mas uns são melhores que os outros).

A questão da elite versus democratização é uma falsa questão que seria bom que o sistema educativo e os seus profissionais arrumassem de vez. E é uma falsa questão porque não há verdadeiras elites sem verdadeira democracia nem verdadeira democracia sem verdadeiras elites. Sem democracia existem castas de dirigentes que concentram privilégios, mas isso não faz deles uma elite. Uma elite só o é com provas dadas.

Uma elite é o grupo dos melhores mas, para termos a certeza de que temos os melhores, temos de poder escolher de entre todos.
No fundo todos sabemos isto: se queremos ter a certeza de que vamos ter os melhores craques de futebol, sabemos que basta dar a todas as crianças do país a possibilidade de jogar futebol. Alguns vão jogar suficientemente bem para ter prazer nisso, vão continuar a jogar, a treinar, e alguns deles serão excepcionais. Basta fornecer a todos as mesmas (e boas) oportunidades: tempo, locais, equipamentos, treinadores.

As famílias judias, pobres e ricas, fazem isto desde sempre com os seus filhos na área da formação musical. Aos quatros anos os pais põem um violino ou um piano na mão dos filhos. Todos os talentos são identificados porque as oportunidades de formação são virtualmente universais, ubíquas. Ninguém deixa de aprender por falta de oportunidade, porque o seu talento não foi detectado. O resultado? Há imensos intérpretes judeus excepcionais nas elites musicais. E não é uma questão de privilégio – é mesmo o contrário do privilégio. É o acesso universal.

Em Portugal temos as elites anémicas que temos porque a nossa democracia é tão imperfeita que ainda hesitamos se devemos dar uma educação física, uma educação musical e uma educação científica decente a todas as crianças – ou reservar isso apenas para alguns – para os mais bem comportados ou para os que têm os pais mais bem comportados. Há quem faça essa selecção e lhe chame “promoção da excelência”. Não é. É apenas uma eternização de privilégios.

A falta de democratização gera fracas elites. Há menos por onde escolher. Ainda há imensas áreas onde apenas escolhemos de entre os filhos dos ricos – o ensino universitário é ainda principalmente para as classes abastadas. Ou escolhemos de entre os filhos dos educados. Noutras só escolhemos de entre as crianças que vivem nas cidades. Noutros casos só escolhemos de entre os rapazes. Em muitas áreas (na política, por exemplo) escolhemos de entre um universo que só contém metade da população porque excluímos quase todas as mulheres. A estratégia da excelência? Chama-se democracia. (jvmalheiros@gmail.com)

terça-feira, julho 06, 2010

A angústia dos media antes do penalty

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 6 de Julho de 2010
Crónica 25/2010

A Face Oculta é uma conspiração anti-Sócrates? A Casa Pia nunca existiu? O PEC é necessário? O Estado deve ter golden shares?

Em 2007, o site WikiLeaks – onde é possível divulgar anonimamente documentos classificados para denunciar comportamentos criminosos e abusos de Estados ou organizações – publicou milhares de páginas com as compras realizadas pelas forças armadas americanas para os contingentes em serviço no Iraque e no Afeganistão.
Os responsáveis do site esperavam que este filão de informação fosse explorado pelos media e que desse origem a vários trabalhos jornalísticos, já que a lista permitia levantar questões sobre as tácticas empregadas pelos militares americanos – e levantava, nomeadamente, a suspeita de uso de armas ilegais. A fuga, porém, recebeu uma atenção mínima por parte dos media convencionais.

Julian Assange, o hacker australiano que fundou o WikiLeaks, ficou furioso com a indiferença dos media, mas a verdade é que este tipo de reacção está a tornar-se cada vez mais o comportamento-padrão dos media – mesmo nos países onde o jornalismo de investigação tem pergaminhos históricos.

A fragilidade económica que afecta actualmente a imprensa traduz-se num emagrecimento dos seus quadros (em particular dos quadros de jornalistas), numa necessidade de reduzir custos no funcionamento corrente e numa urgência na captação de novas receitas. O emagrecimento das redacções tem como consequência a aposta em jornalistas generalistas, capazes de cobrir qualquer tema. Se forem jovens, melhor, porque serão mais baratos e menos reivindicativos. A redução de custos (que é geralmente chamada “procura de efi ciência” e outros eufemismos semelhantes) significa que cada jornalista tem cada vez menos tempo para estudar os temas, para se formar, para contactar fontes, para viajar, para sair da redacção e ver as coisas com os seus olhos. E menos tempo para escrever.

Analisar a lista de compras do Exército americano teria exigido um especialista na área (a um leigo a lista não diz nada), tempo suficiente para a estudar e uma equipa para confirmar dados e fazer pesquisa suplementar. E, o que não seria mais fácil, capacidade para resistir às pressões para não publicar nada que pudesse ferir a imagem dos militares americanos. Tudo isto sem nenhuma garantia à partida de que o trabalho jornalístico que daí resultasse fosse ter um grande impacto. Apenas o exercício de algo que, há uns anos, a imprensa considerava ser o seu dever central: a fiscalização dos poderes, o escrutínio das acções levadas a cabo em nome do público, a garantia do respeito dos direitos humanos.

A fragilidade económica das empresas de media é o seu pior inimigo. Porque uma empresa que não se pode dar ao luxo de hostilizar nenhuma eventual fonte de receita encontra-se à mercê de todos os poderosos. E porque um jornalista que não tem tempo nem recursos para investigar um assunto encontra-se muito mais dependente das informações que as fontes (sempre partes interessadas) lhe transmitem.

O jornalismo “eficiente” que, de forma crescente, é levado a cabo pelos media divide-se assim entre os faits divers dos jornais menos sérios e o “este disse, aquele disse” dos mais sérios. No meio, o leitor interroga-se sobre quais serão os factos e não sabe o que pensar. A Face Oculta é uma conspiração anti-Sócrates? A Casa Pia nunca existiu? O PEC é necessário? O Estado deve ter golden shares?

E este jornalismo, que deixa de ser questionador, crítico, céptico, incómodo, profundo e rigoroso, entra no nono anel do círculo vicioso quando começa a ser criticado pelos poderes pela sua falta de qualidade, de isenção e de rigor (o que é verdade) e começa a ser ameaçado “para o seu bem”, de um mais apertado controlo das autoridades. Vemo-lo em Portugal, na Grã-Bretanha (talvez o país com a melhor imprensa do mundo), por todo o lado.

A descida aos infernos vai continuar até que os jornais e os leitores percebam que o bom jornalismo vale o seu peso em ouro. (jvmalheiros@gmail.com)