terça-feira, setembro 07, 2010

França vai pôr fim à igualdade perante a lei?

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 7 de Setembro de 2010
Crónica 29/2010

Os “criminosos de origem estrangeira” são as maçãs podres que contaminam a sociedade dos ”verdadeiros franceses”
 
Os sindicatos franceses convocaram para hoje em todo o país manifestações de protesto contra as reformas da segurança social propostas pelo presidente Nicolas Sarkozy. A subida da idade de reforma dos 60 para os 62 anos constitui a principal razão da contestação sindical, mas os desfiles de rua irão certamente focar também outras razões de protesto, como as suspeitas de financiamento ilegal da campanha presidencial de Sarkozy em 2007, as suspeitas de favorecimento fiscal da multi-milionária Liliane Bettencourt e de tráfico de influências envolvendo o ministro Eric Woerth e o escândalo do tratamento policial discriminatório dado aos ciganos – dos quais cerca de mil já foram expulsos para a Roménia e Bulgária nos últimos três meses.

As expulsões de ciganos têm sido o pico do icebergue da “política de segurança” de Sarkozy, que prometeu erradicar de França os “elementos criminosos de origem estrangeira”. Estes “criminosos de origem estrangeira” são, de acordo com o discurso sarkozista, as maçãs podres que contaminam um tecido social francês de gema que é ordeiro e amante da paz.

Apesar da atenção que as expulsões de ciganos têm merecido – devido, em grande parte, às imagens pungentes captadas quando do desmantelamento de acampamentos de ciganos e da sua deportação – existe outra medida anunciada, na mesma linha, que se revela ainda mais preocupante, não apenas devido às suas intenções, mas devido à fraca contestação que a oposição lhe tem dedicado.

Trata-se da alteração (i)legal que Sarkozy preconiza, no sentido de retirar a nacionalidade francesa aos franceses naturalizados que cometam crimes graves – nomeadamente contra elementos das forças da ordem. A medida, a ser aprovada, criará duas classes de cidadãos, definindo penas diferentes pelo mesmo crime para cidadãos “franceses de gema” e para “neo-franceses”, reinstaurando um sistema penal de base étnica de triste memória.

É irrelevante que o Sarkozy-filho-de-emigrantes acredite ou não nas patranhas da particular inclinação para o crime dos “ciganos de origem romena e búlgara” – ao longo do Verão foi preciso afinar o tiro e especificar etnias com cuidados de bordadeira, quando se descobriu que a esmagadora maioria dos chamados ciganos nómadas eram afinal… franceses. O que é relevante é que a estigmatização étnica seja possível no século XXI e se traduza em votos. O que Sarkozy pretende não é evidentemente aumentar a segurança mas apenas garantir a sua reeleição em 2012 e conta com as tiradas e medidas xenófobas para recuperar uma popularidade que atingiu níveis mínimos desde a eleição.

As redes criminosas que existam no meio dos ciganos não são mais perigosas que a actividade dos banqueiros e não é por isso que se deportam os banqueiros – mas estes, como é sabido, são ricos.

Não está aqui em causa se existem redes de crime organizado entre os ciganos e se o nomadismo pode facilitar o seu encobrimento – há provas de que elas existem e a esquerda francesa faz mal em tentar recusar o óbvio. O que está em causa é o estabelecimento da equação cigano=criminoso e estrangeiro=criminoso que o presidente e o Governo francês têm feito tudo para afirmar, alimentando os mais baixos sentimentos de uma classe média e baixa em perda de poder de compra e risco de desemprego. (Veja-se o apoio popular às declarações racistas do banqueiro Thilo Sarrazin na Alemanha.)

Hoje as ruas das cidades de França vão certamente encher-se de slogans anti-Sarkozy e os manifestantes vão congratular-se na sua solidariedade humanista com os emigrantes. Mas dentro de casa ficará uma camada considerável de pessoas, talvez crescente, para quem Sarkozy fala, que está pronta a aceitar leis diferentes para cidadãos conforme a sua origem geográfica ou a sua cor da sua pele, e que o estarão tanto mais quanto mais a situação social se degradar. Algo que teríamos considerado impensável em 1945. (jvmalheiros@gmail.com)

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