terça-feira, dezembro 21, 2010

O segredo

Por José Vítor Malheiros
Os cidadãos não podem permitir que o segredo (segredo de Estado, segredo militar, segredo diplomático, segredo de justiça ou outro) seja usado para cometer e encobrir crimes, para concentrar o poder na mão de uma oligarquia ou de um partido, para favorecer ou prejudicar determinada facção política ou grupo económico, para sonegar ao público e aos vários actores políticos o conhecimento e a capacidade de escrutínio dos actos do Estado, para evitar a responsabilização dos detentores do poder pelos seus actos, para evitar que o discurso político público seja confrontado com uma prática que o desmente, para instituir a mentira incontestada como regra do discurso político.

O segredo não pode ser usado para garantir a irresponsabilidade, a inimputabilidade e a impunidade dos poderosos - porque a responsabilização, o primado do direito e a igualdade dos indivíduos perante a lei são bases essenciais do Estado democrático.

No entanto, o que acontece de facto é que o segredo é usado para tudo o que está atrás e constitui, por esse facto, frequentemente, um mecanismo de uso antidemocrático, uma arma usada contra a democracia e o primado da lei.

Se tudo fosse segredo, a democracia seria impossível e a ditadura seria inevitável.

A democracia implica conhecimento da acção do Estado e dos actores sociais, implica liberdade de pensamento, de expressão, de opinião, de informação, de reunião, de discussão. Só se pode escolher e decidir quando se conhece e não se pode conhecer o que é secreto.

É verdade que há actos (do Governo, das autoridades judiciais) que pode ser conveniente manter secretos durante uma fase inicial por uma questão de eficácia - para que não sejam conhecidos das entidades particulares que têm interesse em impedir que seja alcançado o objectivo social desses actos (uma investigação criminal, uma negociação diplomática). Mas estes casos de segredo devem ser excepção. A regra do Estado democrático tem de ser a transparência. E, mesmo quando há segredo, esse segredo tem de ser mantido durante o menor tempo possível. Para que, pelo menos a posteriori, o povo soberano possa julgar os actos que foram cometidos em seu nome e avaliar as suas consequências, responsabilizar os seus protagonistas e decidir se houve ou não razão para o segredo, de forma a afinar o procedimento de invocação desse estatuto - que deve ser, repete-se, excepcional.

Esse tempo de segredo deve ser o mais curto possível porque a justiça que tarda não é justiça e a responsabilização que tarda é igualmente injusta.

A regra na condução dos negócios do Estado em democracia deve ser a verdade. E a liberdade de informação e discussão é a condição dessa verdade. O segredo é a instituição da mentira.
Quando falamos de segredo devemos lembrar-nos que o segredo é sempre imposto por um grupo sobre outro - em geral por uma minoria sobre uma maioria. O segredo não é imposto por uma entidade supra-social, nem por uma entidade neutra e desinteressada. O segredo é uma desigualdade que luta para manter a desigualdade. Ou que tenta mesmo desequilibrar ainda mais essa desigualdade em seu favor. Alguém que já sabe tenta evitar que outros fiquem a saber.
Mas há uma questão de índole prática essencial: a história da utilização do segredo na política torna evidente que as principais razões para o seu uso são o encobrimento de crimes e a obtenção de vantagens ilegítimas por parte de um grupo e em detrimento de outros.

A consequência disso é que os casos onde se desvendam segredos (devido a fugas de informação que chegam à imprensa ou a investigações históricas) são quase sempre casos onde o povo descobre a futilidade ou a pura mentira das razões invocadas para o segredo e constata que esse segredo apenas serviu para proteger malfeitores ou gerar benefícios ilegítimos para um grupo. O que a história das fugas nos diz é que o segredo é quase sempre injustificado e muitas vezes criminoso. O que não constitui incentivo para respeitar os segredos actuais e é, pelo contrário, uma boa razão para descobrir e revelar os que não possuam uma justificação evidente.

O segredo deve ser justificado caso a caso, deve ser excepcional, temporário e, quando é finalmente revelado, deve ser evidente o benefício que gerou ou o malefício que evitou.

A questão não se resume, porém, a saber quando e se se deve divulgar um segredo que já está na nossa posse.
Quando conhecemos o seu conteúdo, podemos avaliar as consequências do segredo e as da sua divulgação e pesá-las uma contra a outra.
Trata-se de uma questão de consciência, por vezes difícil, que por vezes implica pôr em causa lealdades pessoais e confrontá-las com outros valores, mas nestes casos temos todos os elementos para decidir.

Há uma questão de outra ordem e que frequentemente surge antes daquela que é: Quando se deve tentar aceder a um segredo que sabemos existir? Quando devemos quebrar as regras que protegem um segredo - regras cujos princípios gerais são muitas vezes aceites consensualmente pela sociedade (segredo de Estado, de justiça, etc.)?

A resposta só pode ser:
Quando o segredo põe em causa a democracia. Quando temos fundadas razões para desconfiar de que as autoridades mentem - activamente ou por omissão -, e que estão a escamotear ao público informação que lhe permite fazer juízos de valor e tomar decisões em matéria relevante.
Quando o segredo prejudica o bem comum. Quando temos fundadas razões para pensar que a revelação desse segredo é do interesse público e que o seu segredo é, inversamente, prejudicial ao interesse público e só defende interesse particulares.
Quando o segredo protege a prática de crimes. Quando a mentira de que se suspeita tem implicações graves - se traduz em atropelos graves aos direitos individuais, à democracia, à lei.

Nestes casos, pactuar com o segredo é pactuar com a mentira e com os atropelos aos direitos.
Mas não se deverá deixar essas averiguações a polícia, aos tribunais, aos organismos políticos?
Em teoria, sim. Na prática, não. Porque esses segredos são, em geral, os segredos mantidos pelos poderes, nem sempre se pode confiar nos poderes para os fiscalizar.
De facto, o sistema de checks and balances não é perfeito e não aconselha uma confiança cega no sistema.

E quando o segredo, uma vez conhecido (por um jornalista, por exemplo), se revela justificado? Quando o segredo, uma vez conhecido, revela apenas, por parte daqueles que o mantiveram, um escrupuloso respeito pelos direitos e pelo bem comum? Quando é evidente que a sua revelação ao público pode ter consequências negativas para o bem comum? Nesse caso, ele não deve ser divulgado.

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