terça-feira, março 29, 2011

Sem cabeça e sem coração

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 29 de Março de 2011
Crónica 13/2011

Alguém imagina Sócrates convidado para dar aulas numa universidade prestigiada?


Quando o PS decide escolher de novo José Sócrates para o cargo de secretário-geral por uma esmagadora maioria de 93 por cento – seria injusto chamar-lhe “venezuelana”, porque Hugo Chávez fica-se por uns míseros 60 por cento – está a dizer-nos que não tem mais nenhuma ideia para propor aos portugueses que não sejam as que nos apresentou nos últimos seis anos e que não tem um desejo de nada diferente. E um partido sem ideias e sem desejo, sem cabeça e sem coração, está, se não morto, pelo menos em coma.

Percebe-se que Sócrates se recandidate ao cargo. O actual primeiro-ministro é um homem ambicioso, que não pode razoavelmente esperar fazer carreira em qualquer outro domínio que não seja o da política e esta é a última das últimas oportunidades para se manter no poder. Alguém imagina Sócrates convidado para dar aulas numa universidade prestigiada? A fazer o circuito internacional das conferências? A dirigir uma organização intergovernamental? Partilhando a sua visão na administração de uma fundação? Lançando-se numa carreira de ensaísta? Escritor? Não importa se as probabilidades de Sócrates vencer as próximas eleições são baixas ou altas: esta é a sua última oportunidade. E Sócrates, se tem a combatividade de um samurai, não tem a abnegação correspondente. É fácil imaginá-lo aos berros mas não a beber a cicuta e ainda menos a sair de cena sem espernear. Sócrates irá tentar a sua última oportunidade. Quem sabe? O PS é um dos partidos do “arco do poder” (o mal, tem eixo; o poder, arco) e a sua clientela, alargada pelos últimos anos de consulado e bem estimulada nestas últimas semanas de poder, pode ainda… Quem sabe?

Uma questão que é necessário colocar a um PS que não se cansa de acusar o PSD de colocar os interesses do partido à frente do país, é esta: 93,3 por cento do PS pensa realmente que Sócrates é a melhor solução para governar Portugal? Se é assim, é de esperar que, ganhe ou perca as eleições daqui a dois meses, o PS se mantenha sob a liderança do actual secretário-geral. Mas, se a perda de eleições motivar a queda de Sócrates, isso quererá dizer que, como todos suspeitamos, o PS apenas escolheu o líder que possuía a maior desfaçatez, na esperança de realizar uma campanha vitoriosa. Afinal, o homem já ganhou duas eleições… Quem sabe?

É claro que, apesar da esperança infundada dos socratistas, toda a gente sabe que Sócrates vai bater no fundo, com estrondo. Nessa altura, o PS vai experimentar um sobressalto cívico, talvez até republicano (não me atrevo a dizer socialista) e, das reservas das coortes do PS vai sair um candidato, talvez um candidato e meio (nunca dois, nunca dois… em Portugal não há tradição, estas coisas combinam-se, não é preciso discutirmos em público, como vendedeiras) que se disporá a assumir a liderança do PS durante a oposição, que em Portugal dá pelo nome de travessia do deserto devido à escassez de víveres que acompanha o estatuto.

Mas antes disso, naquele período de agitação que precede a indigitação do candidato a líder de um partido e que obedece a regras semelhantes às da procura da reencarnação do Dalai Lama, vamos ouvir nomes (“Nem sabia que ele era do PS…”), relembrar percursos (“Ah... foi ela que fez isso?”), comparar currículos (“Estudou numa universidade a sério?”), sondar reputações (“Dizem que até é honesto!”), avaliar atitudes (“Demitiu-se!?”) e, em plena fase de candidaturas das pré-candidaturas, vamos descobrir que, numa gruta sob o Largo do Rato, existem homens e mulheres capazes de liderar o partido e de dirigir um Governo, competentes, dinâmicos e com visão, honrados e respeitados, com consciência social e capazes de dizer sustentabilidade sem gaguejar. O que é pena é que tenham passado todos estes anos a jogar às cartas. (jvmalheiros@gmail.com)

terça-feira, março 22, 2011

As papoilas

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 22 de Março de 2011
Crónica 12/2011


Eu gosto muito das papoilas e estou com muitas saudades delas. Ainda bem que vêm já aí.

Eu gosto muito de papoilas. As papoilas são vermelhas. Também podem ser de outras cores mas as verdadeiras são as vermelhas. As papoilas são a coisa mais vermelha que há. Não há nada tão vermelho como uma papoila vermelha.
Pode-se dizer papoila ou papoula mas eu gosto mais de papoila. Em espanhol diz-se "amapola" e quando eu era pequeno a minha mãe cantava "Amapola, lindísima amapola, No seas tan ingrata, Mírameeeee… Amapola, amapola, Como puedes tu vivir tan sola". En francês diz-se "coquelicot" e eu aprendi "J'ai descendu dans mon jardin, J'ai descendu dans mon jardin, Pour y cueillir du romarin, Gentil coquelicot mesdames, Gentil coquelicot nouveau" mas esta canção fala pouco das papoilas.
As papoilas sabem coisas que mais ninguém sabe - sabem ser vermelhas e podem ficar ao sol e não perdem a cor. Há animais que ficam da mesma cor das coisas à volta para que os outros animais não os vejam e não os apanhem, mas as papoilas não conseguem viver sem dar nas vistas e têm outro truque para que não as apanhem: quando as apanham elas morrem logo e deixam de ser papoilas e ficam todas moles e sem cor. É por isso que as pessoas não as apanham e as deixam nos campos. Só no Dia da Espiga é que as pessoas apanham papoilas para porem nos ramos para simbolizar a vida e o amor mas não faz sentido porque elas morrem e eu acho mal apanharem-nas mesmo que seja só no Dia da Espiga.
Se as papoilas não morressem logo as pessoas apanhavam as papoilas todas e levavam-nas para casa, porque é impossível ver um campo de papoilas sem querer levá-lo para casa.
Às vezes os campos de papoilas parece que estão cheios de borboletas vermelhas - principalmente quando há um bocadinho de vento e as papoilas sacodem as pétalas - mas isso não são as papoilas a disfarçar, é mesmo assim. Os campos de papoilas do Monet parecem cheios de borboletas.
As papoilas parecem feitas de papel de seda mas ainda são mais fininhas e se lhes tocarmos mesmo sem as arrancarmos elas também morrem. As papoilas são só para olhar e para pensar nelas e para gostar delas mas não são para mexer.
As papoilas têm um pezinho fininho e alto e com pelinhos e parece impossível como é que um pezinho tão fininho aguenta a papoila mas é que a papoila não pesa quase nada. O António Machado dizia que amava "los mundos sutiles, ingrávidos y gentiles, como pompas de jabón" mas podia ter dito como papoilas, porque elas também são ingrávidas.
As papoilas são tão frágeis que às vezes parece que são tristes, como ao fim da tarde, mas não sei, porque outras vezes parecem alegres e que dão gargalhadas de fogo. Às vezes parece que sabem tudo e que são filosóficas e profundas, mas outras vezes parecem descuidadas e estouvadas e juvenis.
Acho que ninguém sabe como é que uma papoila é realmente, porque as papoilas são muito independentes e não se deixam cativar. É um bocado como um gato ou a raposa do Principezinho mas as papoilas são ainda mais bonitas e mais sábias e mais esquivas. Mas não sei se é rebeldia ou timidez ou as duas coisas ou nenhuma. Com as papoilas é sempre assim. Como são muito vistosas e bonitas parecem toleironas, mas quando nos aproximamos vemos como são frágeis e percebemos que afinal são modestas e delicadas. Também há mulheres assim, mas essas são um grande perigo.
Ninguém sabe se as papoilas são sempre daquela cor ou se é só quando olhamos para elas. As papoilas são um grande mistério.
Quando chega a Primavera ninguém sabe quando é que elas vão aparecer nos campos e depois quando aparecem podem desaparecer quando as vamos ver e depois é preciso esperar que elas voltem outra vez no ano seguinte. É muito difícil esperar pelas papoilas, mas quando elas regressam perdoamos-lhes tudo, como o Jacques Brel na canção da Mathilde, porque elas nos roubaram o coração e temos vontade de fazer correr o vinho, "celui des noces et des festins", e de correr pelo campo e de rolar pelo chão e de as abraçar.
As papoilas às vezes são usadas para lembrar a guerra porque parecem manchas de sangue e porque havia muitas nos campos da Flandres na primeira Guerra Mundial e depois das batalhas ninguém sabia o que era papoila e o que era um buraco de bala. O menino de sua mãe do Fernando Pessoa podia ter uma papoila no peito, só que já tinha a cigarreira e o lenço e eram coisas a mais. As papoilas são como uma mancha de sangue vivo para nos lembrar que há coisas dilacerantes mas que, apesar disso, a paixão e a beleza existem.
Eu gosto muito das papoilas e estou com muitas saudades delas. Ainda bem que vêm já aí. (jvmalheiros@gmail.com)

Nota: Assinaladas a itálico partes suprimidas pelo autor, por razões de espaço, na versão publicada no Público.

terça-feira, março 15, 2011

A manifestação do nosso descontentamento

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 15 de Março de 2011
Crónica 11/2011


Aquilo que começou como um movimento de trabalhadores precários começa a parecer-se com um Tea Party

As manifestações de sábado foram enormes. Muito maiores do que se esperava – atendendo à fragilidade dos meios dos organizadores e à indefinição dos seus objectivos. Mas mostraram o descontentamento das pessoas com a situação económica, com o desempenho do Governo, com os políticos em geral, com a precariedade do emprego, com a falta de perspectivas. O descontentamento das pessoas em geral e não apenas dos jovens. Se a manifestação mostrou que é possível pôr centenas de milhares na rua usando uma página da Facebook, também mostrou que o descontentamento excede a camada jovem com empregos precários e abrange toda a população. Os jovens não estão mais à rasca que os outros. O seu desespero pode ser mais chocante, mas de facto eles não estão mais à rasca que os dois milhões de pensionistas a quem o Governo acaba de congelar as pensões. Nem que os dez milhões que viram os seus impostos agravados, os seus salários encolhidos, os apoios sociais reduzidos, as isenções fiscais reduzidas. Nem que os inquilinos que vão ver as suas rendas aumentadas, que os desempregados que vão ver os seus subsídios encurtados, que os doentes que vão ter de pagar mais pelos medicamentos, que os deficientes que vão ver os seus apoios desaparecer, que os empregados que acabarão no desemprego.


A manifestação também mostrou que, se está toda a gente descontente, ninguém faz a mínima ideia do que fazer com esse descontentamento. Dispensar os políticos foi uma das ideias que pareceu ter mais adesão, mas ninguém tem grandes dúvidas de que a ideia é insuficiente como estratégia de organização social ou como segredo de geração de bem-estar. E por muito que se grite contra a precariedade todos sabem que ela não acaba por decreto. A pergunta que todos fizeram e ainda fazem – incluindo os organizadores da manifestação - foi o conhecido “O que farei com estes manifestantes?” que vem dar voz à mesma angústia com que Manuel Alegre primeiro e Fernando Nobre depois perguntaram “O que farei com estes votos?”. Há uma resposta honesta: ninguém faz a mínima ideia. Por um lado, ninguém sabe se há algo de comum naquilo que toda esta gente quer. Depois, ninguém sabe se o que a maior parte desta gente quer é uma política possível ou apenas uma fantasia. Finalmente, ninguém sabe se o desagrado com a situação é um sentimento mobilizador ou um arrufo que se desvanecerá nas próximas eleições.

A criação de um fórum para recolher ideias “para produzir mudanças” parece uma boa ideia, mas é espantosa a ingenuidade de algumas das ideias (hortas comunitárias? PME?), ao mesmo tempo que outras tresandam a puro fascismo (fim dos políticos e dos partidos?) ou ao neoliberalismo que está na origem da hecatombe financeira actual (fim das empresas públicas? o Estado só serve para sugar os trabalhadores?). Para algo que se apresenta como uma consciência crítica, o movimento revela uma atitude singularmente acrítica em relação ao funcionamento do capital, dos mercados financeiros e das empresas em geral. E a defesa dos trabalhadores aparece mais associada a ataques aos políticos e ao Estado que a críticas aos patrões. Aquilo que começou como um movimento de reivindicação de trabalhadores precários começa a parecer-se com um reaccionário Tea Party.

Mas há outra coisa chocante: a escassez de ideias que por aí há a circular. O Fórum das Gerações convida todos a lançar ideias para a discussão, como se partisse do zero, e as ideias que estão a aparecer parecem de facto próximas do zero. Não haverá por aí partidos, sindicatos, clubes desportivos, universidades, think tanks, autarquias, investigadores, empresas, que tenham umas ideias na manga? Uma que seja? Ou a única solução será mesmo apostar nas hortas comunitárias? (jvmalheiros@gmail.com)

terça-feira, março 08, 2011

Que parvos que nós somos

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 8 de Março de 2011
Crónica 10/2011

Pela primeira vez desde que se inventou o progresso, não temos razões para acreditar que os nossos filhos vão viver melhor do que nós

 Nem sempre na história se teve a noção de que era possível fazer do futuro um sítio melhor para os nossos filhos viverem. E muito menos os homens imaginavam que esse fosse o seu principal dever cívico ou que essa melhoria pudesse abranger toda a sociedade. O futuro podia ser melhor porque era possível acumular poder e riquezas, experiência e saber, mas esses acidentes, se podiam acontecer, conjugavam-se sempre no singular e eram singulares eles próprios. O futuro foi, durante a maior parte da história, uma continuação do presente ou uma repetição cíclica do passado e, quando era sonhado, tomava geralmente a forma de uma revisitação de uma Idade de Ouro perdida e que talvez nunca fosse possível recuperar. Por poderoso que o mito prometeico tenha sido ao longo de séculos, o conceito de construção do futuro, de constante melhoria, a moderna ideia de progresso tem escassos trezentos anos, com proeminentes precursores a abrir o caminho a Voltaire, a Kant e a Marx.

Isto significa que, de há trezentos anos para cá, se tornou comum aspirar a que os nossos filhos tivessem uma vida melhor do que nós. E não apenas os nossos filhos, mas todos os filhos. Não era apenas possível aspirar a isso; era também razoável esperar que isso acontecesse. Essa parecia a evolução natural das coisas. Tudo permitia esperar que os filhos tivessem uma vida melhor do que os pais não só em termos materiais mas também em termos espirituais, com maior liberdade e mais acesso à cultura.

Hoje, vivemos um momento inédito na nossa civilização. Pela primeira vez desde que se inventou o progresso, não vemos razões para acreditar que os nossos filhos vão viver melhor do que nós ou num mundo melhor do que o nosso, com mais bem-estar, mais paz e mais liberdade. E os nossos filhos também não vêem.

Sabemos que esse mundo é possível, sabemos que há ferramentas que permitem construir esse mundo, descobrimos aqui e ali pequenos exemplos desse mundo, sabemos como se faz, conhecemos inúmeras armadilhas que podemos evitar, sabemos como a guerra é destruidora, sabemos como a liberdade é preciosa, ensinámos milhões a sonhar e a criar, produzimos suficientes alimentos para acabar com a fome e suficientes medicamentos para salvar as vidas de milhões. Sabemos como se produzem bens e como se inventa, temos muito boas ideias sobre a melhor forma de organizar uma empresa, uma aldeia ou uma escola, sabemos que a liberdade de expressão e de reunião não só fazem bem à alma como geram as melhores soluções, como nos ensinou John Stuart Mill. Percebemos o que quer dizer liberdade, igualdade e fraternidade. Inventámos as mais fantásticas tecnologias e até nos sabemos organizar sem chefes.

E, apesar de tudo isso, vemos as desigualdades aumentarem, o espaço da cidadania encolher, os privilégios das oligarquias reforçarem-se, o apelido valer mais que a competência, a corrupção instalar-se, a justiça desviar os olhos dos poderosos e pôr na cadeia o autor de um graffito, um diploma passado ao domingo valer mais do que um passado à segunda-feira, os salários a diminuírem e os lucros dos bancos a engrossarem, os prejuízos nacionalizados e os lucros privatizados, o desemprego a subir e os salários dos jotas a crescer, a Segurança Social a pagar pensões de miséria a uns e várias pensões de luxo a outros – tudo enquanto nos louvam as vantagens da flexibilidade laboral, do despedimento fácil, nos explicam que os salários portugueses estão demasiado altos, que os nossos call centers têm o melhor nível de escolaridade do mundo, que as manifestações só se devem fazer no Norte de África, que a democracia prejudica a produtividade e que os direitos dos trabalhadores são a razão do nosso atraso. (jvmalheiros@gmail.com)

terça-feira, março 01, 2011

O poder do “Like”

por José Vítor Malheiros

Texto publicado no jornal Público a 1 de Março de 2011
Crónica 9/2011

Lemos jornais para sermos cidadãos. Quando usamos o Facebook, somos cidadãos.

Os especialistas da comunicação sabem há muito que não são os mass media nem os “líderes de opinião” que geram a opinião pública, mas sim a comunicação entre os cidadãos que se estabelece na sequência da acção desses media e desses líderes de opinião. Os media funcionam como um motor de arranque, fornecendo informação que os cidadãos digerem e comentam nos seus círculos de relações, em iterações constantes, até que uma opinião se começa a solidificar. Essa opinião pública é influenciada pelos media, mas não é comandada pelos media, pois a discussão subsequente realiza um trabalho crítico sobre a informação que lhe dá origem – e pode pô-la em causa.

Nunca acreditei que as pessoas liam jornais “para se informar” ou “para saber o que se passa no mundo” – como pretendia o paradigma clássico, contaminado por uma ideia escolar da informação. Sempre acreditei que as pessoas querem saber o que se passa (no mundo, na sua rua) para poderem falar uns com os outros. E o tema dessa conversa pode ser, no limite (como vemos acontecer com a televisão e com os tablóides, mestres na auto-referência), o que se passa nos próprios media. É a conversa que conta. Sentirmo-nos ligados aos outros. Comentar, confrontar opiniões, indignarmo-nos, congratularmo-nos e tomar decisões com os outros a partir dessa informação. É essa comunicação, lateral, horizontal, verdadeiramente social, inter pares, que condiciona o nosso uso dos media.
Outra maneira de o dizer é que lemos jornais para sermos cidadãos, concidadãos, vizinhos.
No momento em que a tecnologia facilita de uma forma inesperada esta comunicação entre cidadãos através da Web e das redes sociais – e tendo os media, apesar de tudo, o papel privilegiado que têm nessa discussão – é estranho constatar que tantos órgãos de comunicação continuam a não perceber este facto evidente e a queixar-se da sua crescente irrelevância. A verdade é que, na prática, a maioria dos jornais ou televisões continua a considerar o jornalismo mais como uma conferência do que uma conversa (para usar a imagem que o guru dos media Dan Gillmor tornou famosa) e a negar-se à interacção com os seus leitores e espectadores. É toda uma nova tecnologia de comunicação que é preciso aprender – e não falo aqui de ferramentas, mas de práticas.

As recentes revoluções na Tunísia e no Egipto – e, em menor grau, a da Líbia – mostram-nos ao vivo o poder desta comunicação horizontal que é o coração daquilo a que chamamos a sociedade civil. Uma comunicação que se transforma em participação e que se apodera do espaço público.

Que as redes sociais põem as pessoas a falar umas com as outras já sabemos. E sabemos que as redes sociais permitem uma fluida (e anónima) partilha de informação. Mas uma das mais extraordinárias (e discretas) inovações das redes sociais é o facto de facilitarem a agregação das pessoas em torno de ideias, de sentimentos, de gostos e de necessidades partilhadas. E de o permitirem de uma forma orgânica e mesmo não discursiva. Os activistas que criaram as páginas do Facebook que contestavam a corrupção, a repressão e as condições de vida no Egipto descobriram, no espaço de semanas, que havia um número inesperado de pessoas como eles. Tudo o que essas pessoas tiveram de fazer para dar um passo em frente foi clicar no botão “Like” que aparecia no topo dessas páginas. Algo mais fácil e menos comprometedor do que inscrever-se num movimento, mais fácil do que votar, uma adesão soft, mas que era o sinal de que estas pessoas queriam mudar a sua sociedade, um sinal que arrastou milhões que esperavam. É este poder de agregação, de reunir instantaneamente grandes números de pessoas semelhantes entre si e predispostas a uma acção comum, que o Facebook e outros sites oferecem. É o “Like” que está a mudar o mundo. (jvmalheiros@gmail.com)