terça-feira, junho 28, 2011

E por que não usar o bom senso para administrar justiça?

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 28 de Junho de 2011
Crónica 26/2011

Com frequência, o sistema judicial alcança ao fim de anos resultados que uma pessoa sensata alcançaria numa hora

1. No concelho da Guarda, três irmãs envolveram-se numa disputa em torno da campa da sua mãe. A mãe, que morreu em 2004, tinha sido enterrada num talhão do cemitério que pertencia a uma das filhas e esta, invocando os direitos de propriedade (e talvez movida por querelas antigas), impedia as suas irmãs de “colocar flores e outros objectos no túmulo da mãe, de aí rezarem e de se aproximarem do talhão". As irmãs processaram a proprietária da campa para conseguir através da justiça o acesso a que consideravam ter direito natural, mas o Tribunal da Guarda não lhes deu razão, considerando que o direito de propriedade se sobrepunha ao direito das irmãs a rezar na sepultura da mãe. As duas queixosas levaram o caso ao Tribunal da Relação de Coimbra, que acabou por determinar que a proprietária do talhão tinha de permitir o acesso das irmãs à campa e autorizar que estas aí depositassem flores, ainda que não pudessem colocar no túmulo lápides ou outros objectos não efémeros.

2. Um casal de namorados ganhou quinze milhões de euros no Euromilhões. Depois de cobrado o prémio, e após peripécias várias que incluíram o fim do namoro, cada um deles decidiu reivindicar para si a totalidade do dinheiro, um porque tinha sido o autor da chave vencedora, o outro porque tinha registado o boletim. O caso foi levado ao Tribunal Cível de Barcelos em 2007, que dividiu salomonicamente o prémio ao meio. Mas os ex-namorados não aceitaram a decisão e levaram o caso ao Tribunal da Relação de Guimarães que, há poucas semanas, decidiu manter a decisão da primeira instância.

3. A característica mais importante que os casos acima partilham é que ambos poderiam ter sido decididos com justiça e de forma expedita, no espaço de algumas horas, caso a decisão tivesse sido entregue a três pessoas de bom senso (ou a uma só) e apenas com um rudimentar conhecimento da lei. Em vez disso, ambos percorreram durante anos a aleatória via sacra dos  tribunais comuns e gastaram muitos milhares de euros ao erário público e a bolsos privados, assim como milhares de horas de trabalho inútil e provocaram angústias escusadas. Casos como estes existem aos milhões. Milhões de casos onde o sistema judicial submete a um escrutínio literalmente mentecapto e inacreditavelmente lento aquilo que o simples bom senso poderia reparar com justiça, rapidamente e a contento de todos.

4. No meio da verdadeira receita para a recessão plasmada no Memorando de Entendimento assinado entre o Estado português e a troika, existem algumas medidas que são pura indignidade (como quando se exige que o Governo cumpra o Orçamento de Estado que for aprovado no Parlamento, qual pai severo que repete ao filho que não se deve mentir) e existem também boas propostas, ainda que todas velhas. Uma delas - que consta aliás também do programa eleitoral do PSD - é a aposta em novos meios para resolução de disputas, além dos tribunais clássicos. De facto, a aposta nos tribunais arbitrais, dos quais já existe grande experiência internacional, poderia não só dirimir conflitos de forma expedita mas frequentemente de forma mais justa, evitando alguns aproveitamentos ilegítimos das formalidades que regem o funcionamento dos tribunais comuns e que se traduzem tantas vezes em denegação de justiça, geralmente em detrimento dos mais frágeis. Finalmente, uma experiência alargada da justiça arbitral - dos conflitos de vizinhos e das pequenas dívidas às disputas laborais -, se fosse gerida com grande rigor e transparência, poderia ter uma influência positiva na relação que os portugueses mantêm com a justiça e na imagem que possuem dos tribunais, de onde a confiança está hoje conspicuamente ausente. (jvmalheiros@gmail.com)

terça-feira, junho 21, 2011

A ameaça da mordaça

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 21 de Junho de 2011
Crónica 25/2011

Uma vitória política existe num plano diverso do julgamento ético

1. Os media sentem-se obrigados a alimentar uma besta humana de múltiplas cabeças que dá por nomes tão diversos como “interesse público”, “opinião pública” ou “curiosidade” e que possui os mais diversos apetites. No entanto, por diversos que sejam esses apetites, todas estas cabeças exigem de todos os alimentos mediáticos um ingrediente essencial: a novidade. As notícias também se podem chamar novas, e têm de o ser para o serem.
Entre os efeitos perversos desta lógica conta-se o facto de não ser possível arrastar nos media durante muito tempo o tratamento de um dado tema. Por actual que esse tema continue a ser, por fundamental que seja para as vidas dos cidadãos, o assunto tem de ser abandonado passado umas quantas notícias, a não ser que seja alimentado por novos factos. As pessoas cansam-se e exigem novidade.
Os políticos queixam-se (na maioria das vezes sem razão) de que certas notícias são publicadas para vender papel. Penso que é mais frequente que certos assuntos sejam abandonados para satisfazer a ânsia de novidade do público. Quando não acontece – que é o pior dos casos – que um assunto seja silenciado para se poder continuar a ter publicidade.
Isto tudo serve para dizer que é frequente que um assunto importante deixe de ser tratado nos media apenas porque já foi tratado e se receia o cansaço dos leitores.
Quando esse assunto envolve de alguma forma uma crítica a alguém, existe uma razão suplementar para o abandono do tema: a imprensa não gosta de dar a impressão de que a move uma sanha persecutória contra ninguém.
E, como é evidente, a somar-se a todos os motivos anteriores, pode acontecer que exista uma forte pressão (política, económica, pessoal) para que um assunto incómodo seja abandonado.

2. Um exemplo desse abandono de um assunto relevante foi o tema das finanças pessoais de Cavaco Silva e, em particular, da sua compra de acções da Sociedade Lusa de Negócios (SLN), proprietária do Banco Português de Negócios (BPN), que foi um tema quente da campanha eleitoral para as presidenciais, mas que seria abandonado após a eleição presidencial.

Cavaco Silva sempre usou como resposta às críticas e às dúvidas o argumento de que a sua honestidade era conhecida dos portugueses. E, apesar das informações que publicou nas páginas da Presidência da República – um local discutível, já que o que sempre esteve em causa foram as acções do cidadão Cavaco Silva – nunca esclareceu de forma cabal todas as dúvidas que foram sendo colocadas ao longo de meses pela imprensa e por políticos de diversos quadrantes.

Tal como Fátima Felgueiras e Isaltino Morais, Cavaco Silva acha que uma vitória eleitoral elimina todas as dúvidas sobre negócios que surgem nas campanhas.
De facto, não é assim. Uma vitória política existe num plano diverso do julgamento ético que podemos fazer de um dirigente político e não apaga a necessidade de fornecer aos cidadãos as explicações que estes exigem. Se uma vitória eleitoral devesse calar todas as perguntas, isso significaria que não poderíamos interpelar nenhum político no poder – o que seria absurdo e antidemocrático. De facto, a recusa de Cavaco Silva em dar explicações cabais sobre este caso lança uma sombra sobre o cargo que ocupa, porque permite que continuem a manter-se dúvidas sobre o comportamento da pessoa que o ocupa. (jvmalheiros@gmail.com)

Nota: Incluí no meu texto a frase usada pelo director da revista "Sábado", Miguel Pinheiro, a propósito de Cavaco Silva, após a sua vitória nas eleições presidenciais. Esta frase deu origem a uma participação judicial de Cavaco Silva contra o seu autor por alegado crime de ofensa à honra do chefe do Estado. Considero intolerável essa mordaça que se pretende colocar sobre a liberdade de expressão. Quando não se pode criticar e interpelar o poder, vivemos sob ditadura. Cabe-nos a todos impedir essa indignidade.

segunda-feira, junho 20, 2011

Audição sobre Educação para o Risco - Intervenção de José Vítor Malheiros

Conselho Nacional de Educação, 20 de Junho de 2011

Esta Audição é sobre Educação para o Risco e eu não sou nem um especialista de Educação nem de Risco, portanto sinto-me à vontade para dizer disparates. Mas talvez seja um especialista do que está no meio, da intermediação.
Se nós perguntarmos às pessoas, neste momento concreto, em Portugal, quais são os riscos que mais receiam, provavelmente vão dizer-nos que é a subida da prestação da casa para um nível que já não a consigam pagar, o desemprego, as perturbações sociais, a saída do euro, a catástrofe económica. Receiam um conjunto de riscos que se situam numa categoria que podemos chamar “riscos sociais”. No entanto, quando se fala de Educação para o Risco ou de percepção do risco costumamos pensar noutro tipo de riscos, completamente diferentes: catástrofes, acidentes, etc.
Para tentar sistematizar um bocadinho, a primeira coisa que eu acho que é importante dizer é que quando falamos de risco falamos de tipos de riscos muito diferentes, que afectam de forma diferente e em grau diferente grupos diferentes de pessoas. Há riscos pessoais, há riscos colectivos, há riscos evitáveis, há riscos inevitáveis.
Há riscos que são inevitáveis, mas que podemos gerir de alguma maneira. Não podemos evitar todas as epidemias, mas uma epidemia pode ser controlada de alguma forma, por exemplo, Um sismo não pode ser evitado de forma alguma nem pode (por enquanto) ser previsto. Mas uma epidemia pode ser esperada e até certo ponto pode ser prevenida.
Temos, portanto, uma gradação que vai desde os riscos pessoais aos colectivos, dos riscos de muito baixa probabilidade aos de muito alta probabilidade, desde aqueles que causam poucos danos aos que causam muitos danos. Há aqui uma panóplia grande e acho que é importante ter essa noção.
Considero muito importante que haja uma Educação para o Risco nas escolas. Eu gostaria que os meus filhos beneficiassem dessa Educação para o Risco. Mas sou totalmente avesso a qualquer alteração dos currículos ou enriquecimento dos currículos com “um capítulo sobre risco”. Acho que isso seria um absoluto disparate. Isso tem de ser uma tarefa das escolas e uma preocupação do corpo docente e, de alguma forma, tem de ser incluído na prática e na cultura das escolas.
Voltando um pouco atrás, aos vários tipos de risco, gostava de chamar a atenção para o facto de que hoje em dia ouvimos falar de risco quase sempre de uma forma negativa. São as catástrofes naturais, as epidemias, os riscos tecnológicos. Mas, por outro lado, também ouvimos falar de um certo tipo de risco como uma coisa positiva. Uma das coisas que ouvimos muito, e que faz parte de um certo tipo de discurso, é que temos de educar os nossos jovens para serem capazes de assumir riscos. Eu acho que, de facto, isso é muito importante e subscrevo essa preocupação - desde que essa defesa da assunção do risco, essa aprendizagem do risco, não se inclua num determinado tipo de discurso muito marcado ideologicamente e que, em geral, não subscrevo. Mas acho que temos de educar os nossos jovens para assumirem riscos. E não estou a falar apenas de riscos do ponto de vista do empreendedorismo económico - que é o tipo de discurso a que isto costuma estar associado e ao qual eu me referia. Penso que temos de educar os nossos jovens para assumirem riscos, para viverem aventuras, para fazerem explorações, para tentarem experiências, para fazerem coisas perigosas. Mas não é só isso: temos também de ensinar aos jovens ou fazer de alguma forma com que os jovens assumam os riscos do envolvimento político, cívico, do envolvimento sentimental.
É muito importante que um certo tipo de risco e um certo grau de risco seja aceite como uma coisa natural e boa, o que torna as coisas ainda mais complicadas. Nesta panóplia toda há até uma série de riscos que são bons.
Mas o que será então essa Educação para o Risco? Eu penso que uma Educação para o Risco é, sem dúvida nenhuma, uma educação que fornece um determinado tipo de informação. Estamos todos de acordo quanto a isso, ainda que depois não estejamos de acordo quanto às formas de o fazer. Há alguma informação que é preciso ser dada, que é preciso ser recolhida, sistematizada e dada.
E isto é mais importante do que parece, porque o problema é mais complexo do que parece. Nós partimos sempre do princípio de que existe informação e de que existe boa informação disponível. Como profissional de comunicação, que sempre fui, penso que não existe informação e que não existe boa informação. É esta quase sempre a situação. Não existe em quantidade e não existe em qualidade. Basta ver a confiança que merece aos cidadãos uma grande parte da informação que recebemos do Governo, por exemplo, para compreender que temos um problema a resolver. Porque neste caso a questão da confiança é crucial.
Existe um enorme grau de desconfiança relativamente a informação absolutamente fundamental para nós tomarmos decisões sobre as nossas vidas. Eu quero saber se nós vamos sair do euro ou não, eu quero saber se estamos na bancarrota ou não, e não tenho forma de o saber. Portanto, eu gostaria de contrariar esta ideia de que existe informação idónea disponível e que basta tratar da sua distribuição. Penso que não existe, que essa informação idónea deve ser construída e que a confiança que faz com que essa informação seja aceite pelos cidadãos deve também ser construída.
Mas, para além desta informação que é importante transmitir aos jovens, para viverem com o risco e para saberem encarar o risco, avaliar o risco, desafiar o risco, gerir o risco, há uma formação que tem de ser da ordem do fazer.
O vereador da Câmara Municipal de Lisboa deu um exemplo, a propósito de um risco pessoal, que é uma coisa básica: ensinar as crianças a nadar. Eu sempre achei que os meus filhos tinham de aprender a ler e de aprender a nadar. É uma questão de sobrevivência básica, as nossas crianças deviam todas saber nadar, para além de uma série de outras coisas, mas que são saberes da ordem do saber fazer, e não apenas do saber saber.
Penso, por isso, que é importante que a escola tenha uma filosofia, uma atitude, uma cultura de acção. O risco é uma coisa que só se conhece na prática, que só se conhece verdadeiramente quando se experimenta.
Acho que seria importante que as escolas assumissem, como parte de uma atitude de educação para o risco, uma atitude de fazer coisas. Acho que um dos riscos que é fundamental que seja assumido e aprendido é o risco de falhar. Nós penalizamos excessivamente o fracasso, o erro, ao mesmo tempo que dizemos que queremos inovação. Não há inovação se penalizarmos as pessoas por falharem. Não há inovação se penalizarmos as pessoas por não assumirem riscos. Portanto, na realidade, nós queremos que as pessoas assumam muito poucochinhos riscos...
Eu gostaria de ver as escolas a participar, mesmo ficando em último, em toda a espécie de concursos, em toda a espécie de desafios e em toda a espécie de competições.
Acho que essa cultura de acção, quer seja nas Olimpíadas da Matemática, quer seja a ajudar a fazer o jardim da praceta, é extraordinariamente pedagógica. Descobrem-se os limites do conhecimento, a imprevisibilidade de uma série de saberes.
Penso que as questões que a Maria Eduarda Gonçalves levantou são muito importantes, as questões da incerteza e da imprevisibilidade, mas acho, também, que não se aprendem apenas com leituras ou debates na aula. Considero os debates necessários e utilíssimos, o confronto de diferentes saberes, não com um perito, mas com dois peritos com opiniões diferentes. Acho que se aprende nesse confronto, nessa discussão, mas acho, sobretudo, que se aprende fazendo coisas.
Uma nota final: um dos âmbitos que penso ser fundamental para esta educação para o risco é a prática de desportos.
Outro que me parece essencial é a prática oficinal, a educação profissional. Trabalhar numa oficina, trabalhar com um torno, com ferramentas. Não é possível ensinar um miúdo a trabalhar com um formão, com um maço e com um torno, sem transmitir essa noção de risco, de risco calculado, de risco de acidente e sem transmitir essa noção básica na gestão do risco que é a administração de primeiros-socorros.


DEBATE
José Vítor Malheiros - Duas notas finais. A primeira é a propósito do risco dos outros. O risco, como eu disse há pouco, é visto de muitas maneiras. E, muitas vezes, em sociedades como a sociedade americana, é encarado como uma forma de seleção. Há as pessoas que assumem riscos e que conseguem vencer desafios e há pessoas que são esmagadas pelo risco e ficam para trás, são ultrapassadas.
Acho que é muito importante, quando se fala de Educação para o Risco, termos a consciência de que há o risco dos outros. Não se trata apenas do nosso risco pessoal. A noção de risco não deve ser apenas uma noção individual e pessoal mas deve incluir uma noção de risco social, do risco pessoal dos outros.
O que eu quero dizer é que a educação para o risco deve ser, e há todas as razões para que o seja, uma educação para a cidadania, porque a partilha de riscos, a gestão colectiva dos riscos (quer pessoais, quer colectivos) e a assunção colectiva de responsabilidades, são excelentes “truques” para encararmos o risco e minimizarmos as suas consequências, pessoais e sociais.
Portanto, essa assunção coletiva do risco, essa assunção que eu diria mutualista do risco, (seja qual for a forma que socialmente se adopte, mais empresarial ou menos empresarial, é sempre uma forma mutualista de assunção do risco), pode ser, e na minha opinião deve ser, uma escola de cidadania. O risco é uma escola de partilha e pode ser uma escola de solidariedade.
O último ponto é para dizer que os cidadãos adquirem consciência de muitos riscos, e a sua perceção do risco é muito modelada, pelo tratamento que os media fazem dos riscos, sejam eles quais forem. Acho, por isso, que seria fundamental contar com a colaboração dos media na Educação para o Risco que se faz na escola.
É frequente falar-se em tentar conseguir o apoio dos media para fazer isto ou aquilo e apela-se muito à sua boa vontade, como se algo pudesse acontecer apenas devido à boa vontade dos media. Não é assim. Não se trata de pedir aos media para fazerem uma coisa. É preciso trabalhar um bocadinho antes. É preciso discutir com os media o que é que se quer fazer, é preciso fazer formação dos media, é preciso que os próprios media ganhem consciência das mensagens que veiculam e da forma como elas atingem o público e depois, só depois, pode-se discutir com os media as consequências do seu trabalho e, eventualmente, tentar melhorar a sua mensagem. Pode-se, por outro lado, usar a capacidade de intermediação dos media para estimular e organizar debates. Acho que isso seria uma contribuição importante e, eventualmente, fazer parte das recomendações.


[1] UMIC – Agência para a Sociedade do Conhecimento

terça-feira, junho 14, 2011

Dez como os dedos das mãos? Doze como os Apóstolos?

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 14 de Junho de 2011
Crónica 24/2011

Pedro Passos Coelho quis propor um Governo com menos “parasitas”

Qual é a importância do número de ministros de um Governo para a sua eficiência e para a sua eficácia? Aparentemente, é muito pouca. Quer em Portugal quer noutros países ninguém se atreve a estabelecer uma relação causal entre a quantidade de ministros e a qualidade do Governo, ainda que o facto tenha sido estudado e discutido. Essa relutância em estabelecer uma relação é racional, pois seria difícil realizar um diagnóstico diferencial para averiguar se a qualidade de um “bom Governo” (algo já de si altamente subjectivo) depende do número de titulares das pastas ou de quaisquer outros factores. Basta considerar a quantidade de variáveis a que a acção de um Executivo está sujeita para compreender que a tarefa é impossível.

Pode dizer-se que um pequeno Governo pode ser mais coeso e que isso é bom. Mas também se pode defender  que um Governo mais diverso na sua composição pode gerar soluções mais imaginativas e estar mais atento ao que se passa fora do círculo do poder. E pode igualmente defender-se que a “coesão” de um Governo depende mais das qualidades do seu líder que do número de elementos que o integram.

É verdade que há investigadores que defendem que um Governo “pequeno” é mais eficaz que um “grande”, mas “pequeno” refere-se geralmente a 20 ministros e “grande” a 50 ou mais. E o número que aparece com mais frequência quando se tenta garantir a operacionalidade de um grupo é de facto 20 – e não 10 ou 50. Considera-se em geral que é possível manter uma discussão rica num grupo de 20, mas que isso já não é possível num grupo de 50. Isso não significa que uma organização não possa ter 50 dirigentes de topo ou mais. Há milhares que têm. Significa é que, para certas discussões, é preciso reunir um núcleo duro mais reduzido.

Além disto, deve ter-se presente que a “dimensão do Governo” é, em grande medida, um número inexistente ou difícil de determinar, pois existem “membros do Executivo” que não têm assento no “Conselho de Ministros” (em Portugal temos os secretários de Estado) mas que possuem um papel executivo. No Reino Unido há mais de cem membros do Governo mas apenas cerca de vinte reúnem no “Cabinet”.

Quando Pedro Passos Coelho começou a defender o seu número mágico de dez ministros – em nome da eficácia e da austeridade – não o fez por ter chegado à conclusão que era esse o melhor número para dirigir o país. Se fosse essa a razão, teria certamente partilhado connosco o seu raciocínio. Perante um eleitorado cujos mais baixos instintos gritam que os políticos existem para roubar e para viver luxuosamente à conta dos contribuintes (“carros com motorista”, “assessores às dúzias”) PPC quis propor um Governo com menos “parasitas”. Que a táctica surtiu efeito já se viu. O que é lamentável é que os números mágicos do PSD (10) e do CDS (12) não resultem de qualquer avaliação das necessidades de gestão do Estado e que PPC não tenha preferido explicar a povo que os políticos (a classe de que faz parte) não são parasitas e que o seu trabalho é (no melhor dos casos) fundamental.

A estrutura-base do Governo poderia ser uma daquelas questões a merecer um acordo parlamentar alargado, para evitar esta dança inútil e demagógica a cada formação do Governo. Mas, se se percebe que diferentes prioridades politicas podem sugerir alterações pontuais na estrutura do Governo, isso é particularmente difícil de aceitar numa altura em que nos deveríamos focar em questões de maior substância que alterar centenas (milhares?) de leis orgânicas, republicar centenas (milhares?) de diplomas e mudar milhões de logótipos em toda a espécie de documentação e nas placas dos organismos públicos e criar  um labirinto de dependências orgânicas que não pode deixar de prejudicar a governação. (jvmalheiros@gmail.com)

quarta-feira, junho 08, 2011

O protocolo e a democracia

Nota publicada no Facebook
by
José Vítor Malheiros on Wednesday, June 8, 2011 at 11:22am
(http://www.facebook.com/notes/jos%C3%A9-v%C3%ADtor-malheiros/o-protocolo-e-a-democracia/217776208242997)

É evidente que a situação do país é grave, que há acções que é preciso desencadear com urgência e que a formação e tomada de posse do próximo Governo devem ser tão expeditos quanto possível.
É razoável e de enaltecer que o Presidente da República tenha imediatamente chamado Passos Coelho a Belém e seria normal que lhe transmitisse formalmente essa urgência.
O que não é normal é que o tenha incumbido desde já "de desenvolver de imediato diligências com vista a propor uma solução governativa que disponha de apoio parlamentar maioritário e consistente" pois os resultados oficiais das eleições ainda não são conhecidos. Essa acção é tanto mais condenável quanto é absolutamente inútil, pois é de esperar que Passos Coelho já tivesse percebido nessa altura que tinha de preparar uma "solução governativa" com urgência.
Que se demore tanto tempo a saber os resultados definitivos de uma eleição e a publicá-los é lamentável, mas com isso o Presidente da República já se podia ter preocupado antes (há seis meses, há um ano, há dois ou mesmo há cinco anos, em vez de deixar o caso para o último minuto) e ter contribuído para a adopção de medidas legislativas que permitissem acelerar o processo. (Que razão há para que os votos da emigração - onde é possível votar por antecipação! - demorem tanto tempo a ser contados?)
A democracia não é uma formalidade mas não sobrevive sem formalidades e o respeito da lei é uma delas. Seria lamentável que a pretexto da "urgência" e da "situação grave do país" o Presidente da República começasse a cortar umas curvas legais (e, se ele o faz, por que não  fará o Governo? E todos nós?). Por que não deixar de discutir as leis no Parlamento? Afinal já se sabe que a nova maioria as vai aprovar.
Em democracia todos os votos contam. E todos contam igualmente. E o último voto conta o mesmo que o primeiro. E todos têm de ser contados. Não basta sabermos quem ganhou. Os trâmites processuais existem por alguma razão - e, se não existe razão, devem ser alterados ou suprimidos.
Que o PR decida ouvir todos os partidos num só dia é aceitável. Que todos os prazos sejam apertados ao mínimo exequível é aceitável. Que Passos Coelho seja convidado a formar Governo ao meio-dia e que apresente o seu Governo ao PR às 12h05 é possível, legítimo (e é mesmo de esperar). Que seja convidado antes de tempo não é. Não é uma questão de protocolo, é uma exigência democrática.
http://www.presidencia.pt/?idc=10&idi=54393

terça-feira, junho 07, 2011

Silly things

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 7 de Junho de 2011
Crónica 23/2011

Os “partidos da governação” parecem entender que a campanha eleitoral não é lugar para falar de política

1. O assunto já foi abordado por muitos protagonistas políticos e por muitos comentadores ao longo das duas últimas semanas: a quase ausência de discussão política substantiva ao longo da campanha. Não é que as nossas campanhas eleitorais sejam caracterizadas por um sério debate político, mas é que desta vez faltou mesmo o enunciado pelos vários partidos da meia dúzia de medidas emblemáticas que prometessem tentar levar à prática e esse discurso foi substituído pela repetição de vagas declarações de intenção. É verdade que os dois partidos mais à esquerda (PCP e BE) foram mais concretos que os três partidos mais votados (PSD, PS e CDS) mas, mesmo aí, a situação tinha um ar de total artifício – devido à inexistência de contraditório por parte dos partidos à sua direita, devido ao pacto de não-agressão entre aqueles dois partidos e por ser evidente que nenhum deles estava de facto preocupado com a viabilidade ou consequências reais dessas medidas, que sabia que nunca seria chamado a pôr em prática. Assim, as propostas dos maiores partidos estiveram durante a campanha, por uma razão ou por outra, cobertas por um manto diáfano de fantasia que deu a esta campanha um ar particularmente irreal e que foi aliás comentado pelos correspondentes da imprensa estrangeira.

É evidente que o acordo com a troika é a razão deste facto – nenhum partido quis lembrar as medidas impopulares já decididas, nenhum podia distinguir-se dos outros com medidas populares e empolgantes – mas o que é mais chocante é que, antes da campanha, estes temas até estavam, pior ou melhor, a ser discutidos, quando o início da campanha eleitoral veio inaugurar uma verdadeira silly season, um intervalo no debate político.

Tudo se passou, estranhamente, como se fosse entendido por todos que a campanha eleitoral não é lugar para falar destas coisas, como se existisse uma liturgia da futilidade que deve ser seguida nas caravanas dos partidos, uma etiqueta que fosse indelicado desrespeitar, como se falar de política durante uma campanha eleitoral fosse tão deslocado como discutir negócios durante um velório.

Este acordo não escrito de preservação do folclore eleitoral envolve partidos e media. Durante estas duas semanas, os jornalistas são parte integrante neste circo de fait-divers onde uma sardinha assada, um ovo que é atirado, uma discussão de feirantes ou o aparte de um autarca podem ganhar honras de lead e onde algo mais substantivo se guarda para tratar mais tarde, para depois da contagem dos votos.

2. O cidadão Aníbal Cavaco Silva publicou no sábado às 10h33 da manhã na sua página do Facebook um post exortando os eleitores a votar. Nesse texto, diz, a dada altura: “Quem não votar perde legitimidade para depois criticar as políticas do Governo”.

Acontece que esta página, apesar de estar identificada apenas como pertencendo a “Aníbal Cavaco Silva, Public Figure” e de não ser a página da Presidência da República (essa é outra) parece ser a do Presidente da República – pois “Aníbal Cavaco Silva, Public Figure” diz aqui que vai fazer uma “comunicação ao país”.

Ora, não sendo o voto obrigatório em Portugal, e sendo a abstenção um comportamento político legítimo, é difícil compreender como pode alguém perder a legitimidade para dizer ou criticar seja o que for – e muito menos o Governo – por não ter ido votar. A frase seria admissível na pena de qualquer cidadão mas, na do PR é, essa sim, totalmente ilegítima, pois constitui uma tentativa de limitação da liberdade de expressão e, especificamente, do direito de criticar o próximo Governo. (jvmalheiros@gmail.com)

segunda-feira, junho 06, 2011

Um Parlamento divorciado do povo?

por José Vítor Malheiros
Comentário publicado no jornal Público de 6 de Junho de 2011

(Eleições Legislativas 2011)

A maior novidade que sai das eleições de ontem não é apenas o almejado "uma maioria, um Governo, um presidente" com que a direita sonha desde sempre. As eleições de ontem marcam a maior vitória com que a direita poderia alguma vez sonhar porque não só institucionalizam a captura destas posições pela direita, como compõem um Parlamento de onde a oposição ao Governo estará resumida a uma vintena de lugares, já que o PS estará em larga medida manietado pela sua assinatura do acordo com a troika - e esse é o programa com que o PSD e o CDS sonham.
Se se desse o caso de esta composição reflectir fielmente o comportamento da sociedade portuguesa durante os próximos quatro anos, não haveria nada de estranho na coisa. Mas pode muito bem acontecer que a prática do futuro Governo suscite uma contestação que exceda em muito o que se poderia esperar desta composição parlamentar. Esse facto, aliado à mais elevada abstenção de sempre em legislativas, desenha um Parlamento que poderá ser o mais distante de sempre das aspirações e da vontade do povo. O que é uma péssima notícia para a democracia, por muito que alguém repita que as eleições são sempre uma festa.