terça-feira, setembro 13, 2011

Alegremente a caminho da Nova Grande Alemanha

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 13 de Setembro de 2011
Crónica 37/2011

As declarações de Oettinger são o passo que se segue aos estereótipos racistas que a chanceler Merkel lança sobre os preguiçosos países do Sul
 
O comissário europeu da Energia, o democrata-cristão alemão Günther Oettinger, propôs na sexta-feira passada que fosse colocada a meia haste nos edifícios comunitários a bandeira dos países que não cumprem as regras financeiras da União Europeia, os “pecadores do défice”. A proposta, que o próprio considerou “pouco convencional”, seria “apenas simbólica, mas fortemente dissuasora”. Na mesma entrevista ao jornal Bild onde defendeu esta ideia, Oettinger defendeu igualmente que se procedesse a uma substituição por “técnicos qualificados” de outros países da UE dos funcionários dos países incumpridores que têm demonstrado ser “administradores obviamente ineficazes” no que toca à colecta de impostos, à venda de activos do Estado ou à redução da despesa. A proposta da bandeira foi mais citada pelos media, mas a outra não é menos significativa. As propostas de Oettinger têm o mérito de ser claras e de fugir ao hipócrita europês habitual. Todos percebemos o que ele quer dizer mesmo que não se perceba nada de finanças nem da União Europeia, como Jesus Cristo.

Oettinger, porém, não defende a expulsão da Grécia do euro. O político alemão acha que “isso iria dividir a Europa e seria um sinal desastroso”. Oettinger quer que a Europa siga os ditames da Alemanha mas juntinha. Quer apenas humilhar os países que desobedecem à Alemanha e poder nomear os seus regentes de forma que estes administrem os seus estados de uma forma que agrade aos alemães.

As declarações de Oettinger podiam ter sido feitas durante uma prova de vinhos do Reno particularmente irresistíveis, mas parece que não. Também podia ser que o dirigente da União Democrata-Cristã da Alemanha tivesse dado a sua entrevista em inglês - língua da qual tem um domínio profundamente original (vejam tinyurl.com/yck7gwh porque vale mesmo a pena) – mas não. A entrevista foi dada em alemão, a um jornal alemão. Não é crível que Oettinger tivesse avançado as suas originalidades se elas não representassem a visão do partido dirigente na Alemanha e da senhora Merkel. As propostas de Oettinger são o que se chama na política um balão de ensaio. Um teste para avaliar o terreno que se pisa e ver até onde se pode ir sem risco.

Se houvesse alguma noção de decência democrática na Comissão Europeia ou se Durão Barroso fosse mais que um mestre-de-cerimónias, os restantes estados da EU (e, em particular, da zona euro) deveriam distanciar-se destas inaceitáveis declarações colonialistas e convidar a Alemanha a substituir o senhor Oettinger. Mas as declarações de Oettinger são apenas o passo que se segue aos estereótipos racistas que a chanceler Merkel lança sobre os preguiçosos países do Sul e a União Europeia em bloco tem-se vindo a habituar a este lento declive de servilismo.

Já sabemos que a Alemanha tem uma economia eficiente, uma indústria competitiva e uma enorme disciplina financeira. Já sabemos que não perdem tempo a rir e que estão decididos a ultrapassar o sentimento de culpa que os acabrunhou no final do século XX e de cuja origem já não se lembram muito bem. O que não é compreensível nem aceitável é que, a par do seu desenvolvimento industrial e perante uma história que deveria ter sido rica de ensinamentos, a direita alemã continue a evidenciar uma tão profunda displicência moral e um tão grande afastamento de qualquer noção de solidariedade internacional – que não é incompatível com a exigência e o rigor. A indústria e as finanças não servem de nada se não estiverem ao serviço de um projecto político que promova a paz, o progresso e a justiça social. E estes não são alcançáveis a nível nacional. É essa a razão de ser da UE. A Alemanha já atravessou vários períodos de enorme desenvolvimento industrial e de grande acumulação de ouro nos seus cofres. Nem todos são recomendáveis. Por que temos esta incómoda sensação de que a Alemanha, apesar de todas as suas profissões de fé, não percebe isso? (jvmalheiros@gmail.com)

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