segunda-feira, setembro 26, 2011

O tsunami digital ainda mal começou (Anuário Janus 2011)

Artigo escrito para o "Anuário Janus 2011" (janusonline.pt)


Edição do jornal Público e do Observare - Observatório de Relações Exteriores da Universidade Autónoma de Lisboa

Se houvesse alguma dúvida sobre a importância crescente da economia digital e sobre o papel central que os media digitais já ocupam na vida dos cidadãos, bastaria consultar os indicadores de crescimento dos últimos anos e dos últimos meses - anos de crise financeira no mundo ocidental e meses de todas as desesperanças para os portugueses - para compreender que a deslocação para o mundo digital é uma vaga de fundo imparável.
Apesar da crise, da ansiedade perante o futuro, do receio de recessão, os media digitais continuam a mostrar uma evolução invejável e vão continuar nesse caminho até 2014. Essa é uma das conclusões do relatório “World Digital Media Trends 2010” da World Association of Newspapers and News Publishers (WAN-IFRA), que constitui uma das referências na área. Entretanto, enquanto o digital cresceu, os media tradicionais (jornais em papel, TV) continuaram a perder terreno ou a estagnar - e as médias mundiais não são piores porque o crescimento destes meios na Ásia e na América Latina compensa em parte o seu decréscimo nos EUA e na Europa.
A União Internacional de Telecomunicações anunciou que, antes do final do ano de 2010, seria atingida a marca dos dois mil milhões de utilizadores da Internet, o dobro do que havia em 2005, um terço da população mundial. E esta maré de gente está a voltar-se em massa para os consumos digitais. Desses dois mil milhões há 1200 milhões que estão nos países em desenvolvimento, mas o número esconde uma profunda desigualdade: enquanto nos países desenvolvidos 71% da população tem acesso à Web, isso só acontece com 21% da população dos países em desenvolvimento e menos de 10% dos africanos (UIT, 2010). Mas quando não é travada por debilidades estruturais profundas, a migração para o digital mostra um ímpeto ilustrado pelas taxas de crescimento da Internet nos países do Leste europeu: de 2000 a 2010 a Internet na Rússia cresceu 1800%, na Ucrânia 7500%, na República Checa 570% (Internet World Stats, 2010). A violência do nivelamento é indicador do baixo ponto de partida mas a enxurrada é também um sinal da sofreguidão das empresas, dos cidadãos e das instituições pelo online.

A maturidade do mercado online

É no mercado dos media, com um valor global de 1.320.000 milhões de dólares em 2009, que se encontram os exemplos mais gritantes da migração para o digital. No período de 2005 a 2014, as maiores taxas de crescimento vão pertencer à publicidade online (11,4% de crescimento por ano), aos jogos de computador (10,6%) e ao acesso à Internet (9%). Os jornais em papel, que representavam um mercado de 179.000 milhões em 2005, deverão descer para 160.000 milhões em 2014 - o que vai significar uma perda do primeiro lugar neste mercado, que vai passar a ser ocupado pelo acesso à Internet. A TV também sobe, tanto as assinaturas como a publicidade, mas há cada vez mais TV a ser vista através do computador ou do telemóvel e cada vez menos a ser vista no televisor, uma evolução que é visível principalmente nas camadas mais jovens (“Beyond Content”, IBM Institute for Business Value, 2010).
Se considerarmos apenas o mercado mundial da publicidade, a TV vai continuar a ocupar o primeiro lugar por mais uns anos, mas o segundo lugar, que pertencia aos jornais, vai passar a ser ocupado pela Internet (que passa de 25.800 milhões de dólares de vendas em 2005 para 103.000 milhões em 2014).
Globalmente, de 2008 para 2013, a fatia do mercado mundial do entretenimento e do marketing que vai ser digital vai passar de 21% para 31% (WAN-IFRA). Lembram-se daqueles que menosprezavam as elevadas taxas de crescimento dos mercados digitais por incidirem sobre números muito baixos? O ano de 2010 fica na história como o ano em que essas vozes se calaram. É possível continuar a  desfiar números destes ao longo de milhares de páginas e o sentido é sempre o mesmo. Não há uma área onde o online não cresça, quase sempre com taxas de dois dígitos. E a tendência continua até onde a vista alcança.

Um mercado definido por novos protagonistas

O panorama mediático que esta migração digital desenha não é fácil de aceitar para os jornais em papel que perdem leitores, vendas e publicidade em favor do online e que se lançam numa vertente suicida de redução de custos. E não é fácil de perceber para ninguém.
A revolução do online destruiu modelos de negócio bem estabelecidos - como o dos jornais em papel - e ainda não se sabe que modelos os vão substituir. E muitas empresas não sabem se conseguirão sobreviver ao novo ecossistema. Mas é inegável que os media digitais fervilham de inovação e estão a marcar o ritmo do mundo.
Uma das características desta mudança vertiginosa é que ela é, em grande medida, de base tecnológica, mas tem a ver, antes de mais, com a forma como essa tecnologia é apropriada pelos consumidores. Os SMS ou a explosão das redes sociais são exemplos óbvios.
Um dos factores mais inesperados é que a mudança tem sido liderada por novos actores, que não pertenciam aos media tradicionais e que se apoderaram de um papel que os media supunham seu para sempre. Os fabricantes de equipamentos (computadores, tablet PC, telemóveis, smartphones, e-readers) são uma das forças motrizes, influenciando a acção dos produtores de conteúdo clássicos e absorvendo uma parte de leão das receitas (veja-se o caso do IPhone, Kindle ou IPad). Outro exemplo: o consumo de media passa hoje em grande medida por sites que não são produtores tradicionais de media mas que passaram a ser as fontes preferidas dos consumidores de notícias. Nos EUA, a maioria dos consumidores (57%) diz preferir a Internet para ler as notícias, mas destes apenas 8% escolhem jornais online para o fazer. A maioria dos restantes prefere um agregador de notícias como o Google ou o Yahoo.

Todas as faixas etárias estão online

Apesar da confusão, porém, há tendências claras.
Uma das coisas que é clara é que a migração digital está a acelerar, porque os utilizadores mais velhos também estão a migrar e mais depressa do que se esperava. O online não é só dos jovens com menos de 25, como supunha o preconceito - ainda que esses tenham aí uma posição de liderança. Um dos problemas é que os media tradicionais vão ter de deixar de contar com as receitas dos clientes mais conservadores que esperavam que pudessem alimentar o negócio nos moldes de antigamente ainda durante uns anos.
Outra tendência forte é a adesão ao telemóvel e outros dispositivos wireless para acesso à Web. No final de 2010 havia 5300 milhões de telefones celulares no mundo e destes 940 milhões tinham acesso à Internet. Os europeus já passam mais tempo a navegar na Web através de dispositivos móveis (6,4 horas por semana) que a ler jornais (4,8 horas) ou revistas (4,1 horas). Há neste momento 121 milhões de utilizadores com acesso a banda larga wireless na Europa e 71 milhões que acedem à Internet através do seu telemóvel pelo menos durante uma hora por dia. Na Turquia há até mais pessoas a aceder à Internet através do seu móvel que do seu PC: 21% contra 20% (European Interactive Advertising Association, 2010).
O êxito de dispositivos como o IPad, concebidos especialmente para o consumo móvel de media online (a Apple vendeu 7,5 milhões de IPads de Abril a Setembro de 2010) vem reforçar a convicção de que estes produtos se irão tornar de facto produtos de massa, com um enorme efeito dinamizador no mercado. Ainda que o seu preço relativamente elevado seja um obstáculo, praticamente “toda a gente” (73% dos que conhecem o aparelho) afirma que gostaria de comprar um nos próximos três anos (The Boston Consulting Group, 2010).

Sempre ligados e habituados a escolher

Que consumidores são estes? O que querem? O que estão dispostos a comprar? Para já, podemos dizer que os consumidores estão a ficar habituados a estar sempre ligados (always on) e essa exigência vai ser generalizada. Para além disso, estão cada vez mais habituados a escolher o que querem e quando querem (on demand), como sempre fizeram na Web, e não a ver o que passa na TV. Assistimos a uma nítida deslocação do poder dos produtores para os consumidores, pela simples razão de que a oferta é imensa e converge numa mesma rede que pode ser acedida através de virtualmente qualquer dispositivo. Se uma oferta não estiver alinhada (em conteúdo, preço, acessibilidade) com os desejos, gostos e necessidades do consumidor, este encontra facilmente ao lado quem consiga captar a sua atenção.
A facilidade com que os consumidores substituem um serviço por outro não é estranha ao facto de que hoje consumimos um remix de serviços online, mantendo uma menor fidelidade em relação a cada um deles. Já não lemos um só jornal, nem vemos um só canal de TV nem pertencemos a uma só rede social. Não é por acaso que os motores de pesquisa se tornaram a principal porta de entrada na Web: estamos sempre à procura e sempre dispostos a encontrar melhor. E a facilidade de transferência para outro fornecedor é um dos nossos critérios fundamentais de escolha.

Fazer negócio com conteúdos grátis?

Apesar do crescimento dos media digitais, isso não fez desaparecer os problemas do sector, a meio caminho entre dois mundos. Ainda vivemos a crise dos modelos de negócio do passado e muitos negócios ainda não se encontraram as soluções que funcionam na Web (ver CAIXA).
Estes novos consumidores online - nós! - são em geral muito relutantes em pagar conteúdos, ainda que aceitem fazê-lo quando valorizam o produto - como demonstram os milhões de aplicações pagas vendidas para o IPad, muitas delas envolvendo o acesso a conteúdos de jornais e revistas. Por outro lado, mais de metade dos proprietários de dispositivos móveis de acesso à Internet está receptivo à ideia de ter de ver publicidade se em troca puder beneficiar de acesso grátis aos conteúdos que lhe interessam (The Nielsen Company, 2010). Um outro estudo refere mesmo que mais de metade dos utilizadores se mostra disposto a fornecer dados pessoais que interessam às empresas em troca de acesso gratuito a conteúdos (IBM Institute for Business Value, 2010), confirmando uma despreocupação com a defesa dos dados privados que faz salivar as empresas de marketing mas que preocupa os activistas dos direitos humanos.

Em rede, a caminho e em grupo

Outra tendência recente mas que se reforça a olhos vistos é a explosão do uso das redes sociais através de dispositivos móveis. Já tínhamos dado pela revolução das redes sociais, mas agora elas estão nos telemóveis, nos tablet PC e em todo o lado. Não basta estar sempre ligado, é preciso estar sempre ligado a toda a gente. O Facebook já ultrapassou os 517 milhões de utilizadores e o Twitter os 100 milhões. E há milhares de redes sociais: a chinesa QZone tem 200 milhões de utilizadores; Bebo, 117 milhões ; Orkut, 100 milhões; Friendster, 90 milhões; Hi5, LinkedIn e Badoo 80 milhões cada...
Estudos feitos nos EUA e Grã-Bretanha pela indústria de comunicações móveis mostram que os utilizadores de dispositivos móveis dedicam mais tempo às redes sociais como o Facebook, MySpace ou Twitter do que os utilizadores de PC (GSMA/ComScore, 2010). O fenómeno é demasiado recente para ter sido incorporado pelos media, mas ele pode alterar radicalmente a forma como media e consumidores se relacionam. A capacidade não só de consultar informação mas de a partilhar, criticar e discutir com a sua rede em qualquer momento e em qualquer lugar pode facilitar a colaboração entre consumidores e produtores de media, permitindo, por exemplo, que os utilizadores possam criar eles próprios ou enriquecer serviços de informação microlocal - uma das áreas em que os media apostam para sobreviver no novo contexto. Este tipo de colaboração - a que se dá o nome de crowdsourcing - e que tem sido tentado com grande êxito noutros contextos (veja-se a Wikipedia), pode ser grandemente facilitado pela performance de novos dispositivos como o IPad. O crescimento do vídeo, facilitado pela penetração da banda larga móvel (uma área onde Portugal está particularmente bem colocado, com o segundo melhor valor da UE, depois da Finlândia) e pela ubiquidade das câmaras (todos trazemos câmaras vídeo no bolso) é outra das grandes tendências actuais. E a vulgarização da captação e difusão de vídeos através de redes sociais móveis vai também certamente influenciar de forma sensível a actuação dos media.

O que se perde no meio de todos os ganhos

Se fosse possível sumarizar as tendências nos media digitais, poderíamos dizer que o mercado se parece encaminhar para conseguir fornecer diferentes conteúdos (da informação ao entretenimento e à publicidade) a diferentes pessoas (diferentes idades, interesses), organizadas em redes de múltiplos tipos, situadas em diferentes locais e momentos, através de diversas plataformas e mediante diferentes formas de pagamento. Todos os caminhos parecem possíveis e surgem novos tipos de transacções todas as semanas, sendo evidente que os consumidores possuem um papel mais determinante que nunca na definição dos produtos e serviços que compram.
O que falta saber, no meio desta pletora de ofertas, moduladas para todas as circunstâncias, é o preço que os cidadãos estarão dispostos a pagar por elas e se não haverá algum bem essencial - como a independência do jornalismo - que acabe por não encontrar lugar em nenhum modelo de negócio.



CAIXA: Os modelos de negócio

Há um problema central nos media digitais que se chama “modelo de negócio”. O problema tem afectado em particular os jornais - que se lançaram na Web com serviços gratuitos - mas afecta também outras áreas como a TV, a música ou o vídeo.
Há anos que se debatem duas teses: a) é possível financiar um jornal com um modelo baseado em publicidade, semelhante ao usado pela TV e pela rádio b) os leitores acabarão por se dispor a pagar por conteúdo de qualidade através de assinaturas, micropagamentos ou outra forma. O debate mantém-se há anos e é alimentado por inúmeras experiências, com resultados ambíguos dos dois lados da barreira. Um dos problemas é que os utilizadores da Web não estão habituados a pagar, encontram facilmente alternativas gratuitas de qualidade para os serviços gratuitos que passam a ser vendidos, não hesitam em piratear o que não querem pagar e também não suportam a massa de publicidade que suportavam na TV. Na prática, um leitor de jornais online gera 18 vezes menos receita (em assinaturas e publicidade) que um leitor de jornais de papel e um espectador de TV online gera três vezes menos receita que um espectador de TV tradicional (“Beyond Content”, IBM Institute for Business Value, 2010). Como fazer, com estes números, para manter de pé empresas cujo funcionamento sempre foi caro? Uma proposta avançada para reeencontrar as receitas é o “modelo mosaico”, onde os jornais online tentam apostar em tudo o que mexe que possa dar dinheiro, desde doações de leitores a clubes de vinhos (“New Revenue Models for Newspaper Companies”, WAN-IFRA, 2010). Que o velho modelo de negócio “quiosque+publicidade” está morto, não suscita dúvidas. Que é pouco provável que se encontre um novo modelo fits all também parece suscitar consenso. O modelo de negócio dos jornais do futuro será certamente não um mas muitos, adaptados a diferentes públicos e obrigando as novas empresas a uma constante adaptação a nova tecnologia e aos novos hábitos dos leitores. O problema é que, no “modelo mosaico” que muitos jornais estão a explorar, se cruza muitas vezes a fronteira entre informação e publicidade, em nome da facturação. O que pode pôr em causa a única razão por que os jornais merecem sobreviver.
José Vítor Malheiros

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