terça-feira, fevereiro 28, 2012

O léxico autorizado

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 28 de Fevereiro de 2012
Crónica 9/2012

Não se trata apenas de dar uma proeminência excessiva ao discurso do poder. Trata-se de algo mais subtil.

Lemos e escrevemos palavras. Falamos com palavras. Pensamos com palavras. Discutimos com palavras. Ensinamos e aprendemos com palavras. Fazemos notícias com palavras. As palavras são a nossa matéria-prima e, pelo menos aqueles que fazem das palavras o seu ofício, como os políticos e os jornalistas (para dar apenas dois exemplos menores), dedicam-lhes alguma atenção.

Curiosamente, porém, os jornalistas parecem, em geral, considerar que o elemento básico da sua produção é a frase, a proposição, sem dúvida devido a uma compreensível influência racionalista. Preocupam-se com o que a frase diz (eu sei que às vezes não parece, mas estamos a falar dos melhores exemplos, do jornalismo canónico), com o valor lógico das proposições que constroem, com a sua conformidade com os factos.
Se pedirmos a um jornalista para verificar se o título “Ajuda financeira chega no dia 20 de Janeiro” é correcto ele irá investigar se a data está certa e, uma vez confirmado esse facto, garantirá que o título está correcto. O valor lógico da proposição é “verdadeiro”. O título passa o teste.

Os outros elementos da proposição - “ajuda financeira”, “chega” - são considerados dados, nomes e acções neutras. É evidente que não é assim. Cada uma das palavras que usamos possui uma carga semântica que evoca esta ou aquela ramificação de significados, esta ou aquela resposta humoral; uma história de uso, que evoca esta ou aquela memória; uma etimologia que acorda esta ou aquela ressonância e que lhe cria uma árvore genealógica de narrativas específica, etc..

Os verbos são, igualmente, o diabo (o diabo está nos pormenores). Não é o mesmo “dizer” e “afirmar”. Curiosamente, os dirigentes raramente “dizem”. “Afirmam”, “sublinham”, “garantem”, “anunciam”, tudo coisas positivas de quem tem poder, clarividência, certezas e benesses para dar.

Uma grande parte da política passa por criar e tentar impor na arena social, na imprensa, no debate político, determinadas visões do mundo - determinadas narrativas - como bem sabem os mestres da propaganda. Mas essas narrativas são construídas por palavras e, quando determinados termos se impõem, há narrativas que se organizam quase naturalmente à sua volta.

Tomemos a “ajuda”. “Ajuda” é uma coisa boa. Todos gostamos de ajudar, todos gostamos de ser ajudados. Não é fácil criar uma narrativa onde o mau da fita é alguém que “ajuda”. Quem ajuda é, forçosamente, nosso amigo.

E como apareceu a expressão “ajuda financeira”? De facto, aquilo que designamos por “ajuda financeira” é, simplesmente, um empréstimo. E empréstimo é não só uma expressão mais correcta como mais neutra. Sabemos isso porque há empréstimos que nos aliviam e outros que nos entalam. É possível criar narrativas diferentes à volta da expressão “empréstimo”. Posso dizer “aquele empréstimo permitiu-lhe salvar a empresa” ou “o que o levou à falência foi aquele empréstimo”. Posso dizer que o “empréstimo negociado com a troika tem um juro usurário”, mas já não o posso dizer se lhe chamar “ajuda”. As palavras não deixam.

Um “resgate” também é uma coisa boa. Salva-nos. Não é possível dizer nada mau de quem nos resgata. E haverá coisa melhor que um “programa de assistência económica e financeira”? E será possível ser contra o rigor e a disciplina? Ou contra a “racionalização das empresas públicas de transportes”? E será que um “ajustamento estrutural” pode fazer outra coisa que não seja dar-nos mais solidez? Quem é que pode não gostar que as estruturas estejam ajustadas?

E quando se chama “maturidade cívica dos portugueses” à ausência de contestação e “tumultos” aos protestos será possível a uma pessoa sensata defender ou participar nos últimos? A expressão “flexibilidade laboral” é igualmente inatacável. Quem é contra a flexibilidade? Não saberão que a rigidez só leva a fracturas e que a flexibilidade permite adaptarmo-nos ao meio? “Austeridade” é um pouquinho mais difícil, mas também tem um lado bom. Não é como “empobrecimento” ou “descida do nível de vida” que é só mau.
E quando nos dizem que “precisamos de união e não de clivagens” não é evidente que a união é boa e que as clivagens são más? Não é evidente que um discurso que afirme que a união nacional pode ser má e as clivagens boas se tem de empenhar num combate desigual, montanha acima?


Não se trata apenas de, no discurso mediático, se dar uma proeminência excessiva ao discurso do poder, como quando, como mero exemplo entre mil, se arranca uma notícia sobre o “acordo de concertação” com o lead “Governo garante que estão salvaguardados os direitos dos trabalhadores” - factualmente correcto mas claramente parcial. Trata-se de algo infinitamente mais subtil. Tão subtil que há mesmo jornalistas que, ingenuamente, garantem que não existe. Trata-se de manipular os media obrigando-os, discretamente, a usar apenas o léxico autorizado, que contém implícita a narrativa do poder.

Quando Cavaco diz que não se deve usar a expressão “negociação” do memorando da troika (e muito menos “renegociação) e que vai haver apenas algumas “alterações”, está a exercer esse poder. É que “negociação” poderia dar a ideia de que existe alguma latitude negocial - de um e de outro lado - e Cavaco e o Governo não querem admitir nenhum cenário que não seja a mais absoluta obediência aos ditames dos credores. Há demasiada liberdade em “negociação”. E Cavaco não hesitará, com o seu ar de mestre-escola austero, em admoestar quem ousar falar de “negociação” ou “renegociação” - já para não falar da banida “reestruturação” - como admoesta quem ousa fazer perguntas sobre as suas pensões. (jvmalheiros@gmail.com)

terça-feira, fevereiro 21, 2012

Esta cidade não é para peões

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 21 de Fevereiro de 2012
Crónica 8/2012



Uma condição essencial para ser presidente da Câmara deveria ser andar só a pé durante a campanha eleitoral

Gosto de andar a pé. Pequenas passeatas ou grandes caminhadas, na cidade ou no campo, trajectos de todos os dias ou deambulações de fim de semana. O meu andar a pé não é trekking nem hiking. É só andar a pé. Às vezes mais depressa, às vezes lentamente, às vezes parado. O meu andar a pé também não é de maratonas. Posso fazer cinco ou oito ou dez quilómetros por dia (ao fim de semana). Raramente mais. Gosto de fazer a pé os trajectos que faço em transportes públicos. Saber a que se parece a superfície por baixo da qual anda o metro. Como são as lojas desta avenida onde o autocarro salta de paragem em paragem. Qual é a distância, em passos, que vai desta estação de metro àquele jardim. Do jardim ao café. Saber se há alguma drogaria naquele bairro. Se a retrosaria ainda existe. Durante a semana os meus passeios raramente saem de Lisboa, o que não quer dizer que sejam todos urbanos. Ou sequer suburbanos. São frequentemente todo-o-terreno, um percurso de combatente, quase um parcours de parkour. E onde menos se espera. Não é preciso andar à superfície da linha vermelha do metro (que vai para a Estação Oriente, no Parque das Nações) para entrarmos num cenário pós-apocalíptico.


Estão a ver Entrecampos? Na fronteira entre a Avenida da República e o Campo Grande? Uma zona nobre e central da cidade. Há uma avenida que sai directa de Entrecampos em direcção a Sete Rios, onde está o Jardim Zoológico. Pouco mais de dois quilómetros, sempre em frente, entre dois jardins. O caminho? Praticamente intransitável. Intransitável para peões, entenda-se. É uma terra de ninguém, que exige atravessar vias rápidas sem passadeiras, caminhar ao longo de passeios inexistentes, aguentar os carros que passam a cem à hora a um metro de distância. Se digo a algum lisboeta que fiz esse trajecto a pé dizem-me “Ah, mas isso não é para andar a pé...” “Por que não?” “Porque não foi feito para isso”, dizem-me. “Por que não?” “Porque foi feito para carros.” É verdade. Toda a cidade foi feita para carros. Com raras excepções, a cidade que fizemos nos últimos cinquenta anos foi feita para carros. Às vezes, há uma pequena mancha pensada para pessoas. Mas para lá chegar é preciso ir de carro. Ou, no melhor dos casos, de metro. A pé? Não, não foi pensado para isso.


Tente ir a pé da Avenida do Rio de Janeiro a Benfica. Dois bairros residenciais. Aqui já estamos no nível dos sete quilómetros. O caminho mais directo passa pela Avenida Lusíada, mas não se deixem enganar por este “Avenida”. É preciso atravessar uma terra de ninguém, atravessar vias rápidas sem passadeiras, saltar uns separadores, conviver com o lixo e a desolação. Sempre sem sair do “tecido urbano”. Mas não se pense que se trata de um via reservada a automóveis, como a Segunda Circular ou algo semelhante. Estamos na cidade. Há prédios pelo caminho, sítios onde vivem e trabalham pessoas mas onde toda a gente chega de carro. Há outros trajectos possíveis? Há, muito mais compridos, que desincentivam o andar a pé. Os caminhos directos, as “avenidas”, são para os carros. Lisboa está cortada de vias rápidas que às vezes se chamam “avenidas” mas que dividem a cidade em bantustões, sítios de onde só se pode sair de casa de carro, onde as crianças não podem brincar com o amigo que mora do outro lado da rua porque o outro lado da rua ou fica a dez minutos de carro ou exige arriscar a vida num atravessamento pedonal. Temos vias rápidas a cruzar as principais praças da cidade, o Areeiro, o Marquês de Pombal, Sete Rios, a Praça de Espanha, o Campo Grande e a Avenida da República transformadas em auto-estradas. Mas cada via rápida corta a cidade em duas zonas quase incomunicáveis.



Duas vias rápidas e temos quatro bantustões. Com três já podemos ter sete colonatos independentes. E isto no centro da cidade. Como é que os decisores da autarquia - das autarquias - não percebem isso? Andam de carro. Já tive discussões com “especialistas de mobilidade” lisboetas que não sabem que na Fontes Pereira de Melo, no coração da “cidade moderna”, há um pedaço sem passeio, roubado quando da construção do Imaviz, onde uma pessoa de cadeira de rodas tem forçosamente de ir para a estrada. Nunca andaram ali a pé.
Uma condição essencial para ser presidente da Câmara de uma qualquer cidade deveria ser andar só a pé durante a campanha eleitoral. Ou a pé e de bicicleta. Visto que conhecer as necessidades do trânsito automóvel já eles conhecem. Não uma tarde, a convite de uma associação de cidadãos com deficiências, com as TV à volta e todos os trajectos estudados previamente pelos assessores. Toda a campanha. Uma cidade não é assim tão grande.
Tornar as cidades amigáveis para os carros parece ser o principal objectivo dos autarcas. Cidades como no filme Cars, onde os protagonistas são carros, os amigalhaços são camiões e as raparigas giras são carros sport. É claro que os eleitores que estão dentro do carro agradecem e os que estão fora dos carros são cidadãos de segunda, mas a falta desta vivência da cidade, a pé, torna os contactos entre as pessoas mais raros, mais distantes. E a relação couraçada que os automobilistas têm entre si dificilmente se pode considerar uma relação de vizinhança. É, como gostam os neoliberais, uma relação de constante competição.


É de vias rápidas que se faz a dissolução da sociedade, da cidade, das vizinhanças, dos bairros, das relações, da solidariedade, das pessoas. Um dia vamos perceber que conseguimos chegar muito depressa a todos os sítios onde não queremos ir. Metidos em cápsulas herméticas de transporte, navegando entre o sofá da televisão e o cubículo do trabalho, com auscultadores nos ouvidos para ouvir música ou escolher a gravação da voz sintética do call center, que nos indica o melhor caminho para a solidão. (jvmalheiros@gmail.com)

segunda-feira, fevereiro 20, 2012

Our daily heaven - Version 2.0

Versão reduzida

Texto incluído no catálogo da exposição "Cartas Celestes: Cruzamentos, largos, bifurcações", de Rosário Rebello de Andrade.

The first question is a classic one. So classic that it is one of the questions we hear most frequently in the movies: Where am I? What is this place?

Or, to be more precise, since what matters here is not where the body is, but where the eyes are: Where am I looking from? What am I looking at? What do I see?

The second question is philosophical. Why is there this instead of nothing? Why am I here and not there? Who is there? Who might be there? Who might be looking at me? What does the gaze of the one who is looking at me tell me? What is the relationship between me and what I see?

The third question is scientific. What are those lights? Why do they have different colors? Do they move or are they fixed? What patterns do I see in those dots? How far are they? How can I get closer?

None of these questions is new. For centuries, we have felt them and asked them as we looked at the starry night sky. That sky schoolbooks tell us about but which is not there anymore over the cities. For centuries, that sky has inspired poems, geometries, terrors, devotions, oaths, dreams and sleepless nights.

But soon, we feel that this sky is strange, that these galaxies are somewhat organized, intelligent, geometrical. This sky was made with ruler and compass. What sky is this? Where did our everyday sky go?

The absence of chaos in these galaxies is spooky. Is some extraterrestrial civilization looking at us? What are those strange constellations that cover this sky as if they were zodiacal signs? There is something mythological, rather than mythical, in their design. Who made these galaxies?

The subtitles help us understand. That world is, in fact, our own. That’s where we are. We are there, here, looking up, looking at a mirror that puts us in the sky. We are those constellations. We are down here looking up there and up there looking down and we think we see the same thing. "As above, so below; as below, so above." Impossible not to think of the hermetic principles.

There’s nothing as far away and as alien as a galaxy, and nothing as close and familiar as a city. Here, those two worlds collide and coincide, meet one another, and familiarity becomes distance, distance becomes familiar. The cold and sidereal barrenness fuses with the frantic and hot urban space. And when we again manage to imagine the microscopic chaos that inhabits these galaxies, the people, the cars, the neon lights, the crimes, the failed encounters, we are able to breathe again. There is, after all, no intelligence behind the organization of the Universe. These images that we project onto the sky were made by us. They are human after all. The straight lines are still only human. No god can draw like us.

When we finally see the cities, when we recognize the alignment of avenues, the first thing that comes to mind are the maps of the urbanist Richard Florida. But these lights we see are not city lights, they are not the economy, not the arts. They are not even the city. They are city signs. They are dots created by lines crossing each other. Reflexions in a mirror. Markings made with a pencil on a sheet of paper. They are a cartography of the city. A cartography that puts them up in the sky.


There is a cold sadness in these cities. The barren distance that separates us from these cities, where we live, is filled with an icy ether which may prove impossible to cross. We can sense an archaeological approach in these images. These mirror images show us our cities travelling through space, they show us our cities as they could be seen, when they no longer existed, if there were someone to look at them. They are Celestial Cities, as Beijing’s Forbidden City or Damascus dreamed to be, as we are told were the cities of the Golden Age, that time that never was, when all of us were happy. There is an alternative story in the maps of these cities, but we’ll never know how it would be.


These images are a possible future for cities. One day, an astronomer from the future, in a distant civilization, will be able to see, projected in the mirror of his telescope, the old image of our cities, long dead, light-less, and he will see an inverted image that will look like these. When he sees this image, the cities will have long disappeared.


These paintings are an obvious proof of the illegal practice of astronomy, just as the observations and drawings of the German lithographer Wilhelm Tempel (1821-1889), self-made comet discoverer that all through his life had to justify before a corporatist and classist scientific community his lack of academic training. Max Ersnt made a book about him, “Maximiliana or the Illegal Practice of Astronomy”, considered to be one of the most beautiful books of the 20th century and a work of reference for asemic writing, where he himself graphically commits the same crime, which invades in fact all of his work, filled with stars and suns.

It is also asemic writing we’re dealing with here, in these Celestial Maps. Someone is saying something here. We do not know what, or to whom, but something is being said. These cities talk, in their regular and cold calligraphy, like an airport talks to an airplane, a page to a pen, a spectrum to an astrophysicist. Something is written and something is inscribed in this background black matter.

Oddly, these maps give us back a sky that the city lights robbed us of, and oddly they lack light. The dots here are mere crossings, they’re not lamps. The stars in these maps are squares, encounters, not dazzling lights. That is why they lack concentrations, why they don’t have centers, why they are so distributed. That’s why space is treated democratically. There are no strange attractors absorbing everything around. They may be imposing, mysterious and seductive, but none of these celestial cities is imperial. And they are put alongside their cemeteries, the quintessential metaphor for the silence of sidereal space, as if to whisper in their ears that they are mortal.

José Vítor Malheiros
February 2012

Our daily heaven - Version 1.0

Texto escrito para inclusão no catálogo da exposição "Cartas Celestes: Cruzamentos, largos, bifurcações", de Rosário Rebello de Andrade, que seria depois reduzido, por imperativos de espaço.
Museu da Electricidade, Lisboa, de 29 de Março a 17 de Junho de 2012
http://www.fundacaoedp.pt/exposicoes/cartas-celestes-cruzamentos-largos-bifurcacao/58


The first question is a classic one. So classic that it is one of the questions we hear most frequently in the movies: Where am I? What is this place?

Or, to be more precise, since what matters here is not where the body is, but where the eyes are: Where am I looking from? What am I looking at? What do I see?

The second question is philosophical. Why is there this instead of nothing? Why am I here and not there? Who is there? Who might be there? Who might be looking at me? What does the gaze of the one who is looking at me tell me? What does my gaze reflect back to me? What is the relationship between me and what I see?

The third question is scientific. What are those lights? Why do they have different colors? Why do they have different sizes? Do they move or are they fixed? What patterns do I see in those dots? How far are they? How can I get closer?


None of these questions is new. For centuries, we have felt them and asked them as we looked at the starry night sky. That sky schoolbooks tell us about but which is not there anymore over the cities. For centuries, that sky has inspired poems, geometries, terrors, devotions, oaths, dreams and sleepless nights.

But soon, we feel that this sky is strange, that these galaxies are somewhat organic, organized, intelligent, geometrical. We see design here; this sky was made with ruler and compass. What sky is this? What foreign place is this? Where did our everyday sky go?
It is paradoxical that, for the ancients, organizing the sky into constellations was the most comforting way to put some order in it – imbuing the heavenly confusion with the relative rationality of the Olympus and a meaningful narrative – but that, for us, the intelligence we sense in these celestial maps is so unsettling. The absence of chaos in these galaxies is spooky. Is some extraterrestrial civilization looking at us? What are those strange constellations that cover this sky as if they were zodiacal signs? There is something mythological, rather than mythical, in their design. Who made these galaxies?

The subtitles help us understand. That world is, in fact, our own. That’s where we are. We are there, here, looking up, looking at a mirror that puts us in the sky. We are there, in those constellations. We are those constellations. That’s where we live, that’s where we move, that’s where we dream we are going. We are down here looking up there and up there looking down and we think we see the same thing. "As above, so below; as below, so above." Impossible not to think of the hermetic principles.
There’s nothing as far away and as alien as a galaxy, and nothing as close and familiar as a city. Here, those two worlds collide and coincide, meet one another, and familiarity becomes distance, distance becomes familiar. The cold and sidereal barrenness fuses with the frantic and hot urban space. And when we again manage to imagine the microscopic chaos that inhabits these galaxies, the people, the cars, the neon lights, the crimes, the failed encounters, we are able to breathe again. There is, after all, no intelligence behind the organization of the Universe. These images that we project onto the sky were made by us. They are human after all. The straight lines are still only human. No god can draw like us.

When we finally see the cities, when we recognize the alignment of avenues, the first thing that comes to mind, almost immediately, are the maps of the urbanist Richard Florida. But in this case the cities are not lit up by the virtual reality of statistics. There are no urban or regional rankings here, there is no competition between constellations for attracting more talent than their neighbor, this is not about creativity or innovation, and if there is some bohemian life in these cities, it is beyond the resolution of our telescope. Each constellation is a world in itself, indifferent to the rest.
And these lights we see are not city lights, they are not the economy, not the creativity, not the agitation, not the markets, not the arts. They are not even the city. They are city signs. They are dots created by lines crossing each other. Reflexions in a mirror. Markings made with a pencil on a sheet of paper. They are a cartography of the city. A possible cartography.  A cartography that puts them up in the sky. A cartography in the manner of Hubble.

There is a cold sadness in these cities. The barren distance that separates us from these cities, where we live, is filled with an icy ether which may prove impossible to cross. We can sense an archaeological approach in these images. These mirror images show us our cities travelling through space – and the images of our cities do in fact travel in space, at the speed of light, as all images do –, they show us our cities as they could be seen, when they no longer existed, if there were someone to look at them. They are Celestial Cities, as Beijing’s Forbidden City or Damascus dreamed to be, as we are told were the cities of the Golden Age, that time that never was, when all of us were happy. There is an alternative story in the maps of these cities, but we’ll never know how it would be.
These images are a possible future for cities. One day, an astronomer from the future, in a distant civilization, will be able to see, projected in the mirror of his telescope, the old image of our cities, long dead, light-less, and he will see an inverted image that will look like these. And he may see, in the crossings, in the squares, some signs of encounters. When he sees this image, the cities will have long disappeared.

These paintings are an obvious proof of the illegal practice of astronomy, just as the observations and drawings of the German lithographer Wilhelm Tempel (1821-1889), self-made comet discoverer that all through his life had to justify before a corporatist and classist scientific community his lack of academic training. Tempel’s discoveries were usually met with the establishment’s disdain until confirmed by an “official” astronomer. Max Ersnt made a book about him, “Maximiliana or the Illegal Practice of Astronomy”, considered to be one of the most beautiful books of the 20th century and a work of reference for asemic writing, where he himself graphically commits the same crime, which invades in fact all of his work, filled with stars and suns.
It is also asemic writing we’re dealing with here, in these Celestial Maps. Someone is saying something here. We do not know what, or to whom, but something is being said. The cities talk, in their regular and cold calligraphy, like an airport talks to an airplane, a page to a pen, a spectrum to an astrophysicist. Something is written and something is inscribed, necessarily, in this background black matter.

Oddly, these maps give us back a sky that the city lights robbed us of, and oddly they lack light. The dots here are mere crossings, they’re not lamps. The stars in these maps are squares, encounters, coincidences, not dazzling lights. That is why they lack concentrations, why they don’t have centers, why they are so distributed. That’s why space is treated democratically. There are no strange attractors absorbing everything around. They may be imposing, mysterious and seductive, but none of these celestial cities is imperial. And they are put alongside their cemeteries, the quintessential metaphor for the silence of sidereal space, as if to whisper in their ears that they are mortal.

José Vítor Malheiros
February 2012

O céu nosso de cada dia - Versão 2.0

Versão reduzida

Texto incluído no catálogo da exposição "Cartas Celestes: Cruzamentos, largos, bifurcações", de Rosário Rebello de Andrade.

A primeira pergunta é clássica. Tão clássica que é uma das perguntas que mais vezes ouvimos no cinema: Onde estou? Que lugar é este?

Ou, sendo mais preciso, porque o que importa aqui não é o lugar do corpo mas o lugar do olhar: De onde olho? Para onde olho? O que vejo?

A segunda pergunta é filosófica. Porque há aquilo e não o nada? Porque estou aqui e não ali? Quem está ali? Quem poderá olhar-me? Que me diz o olhar de quem me olha? Que relação existe entre mim e o que vejo?

A terceira pergunta é científica. O que são estas luzes? Por que têm cores diferentes? Movem-se ou estão fixas? Que padrões distingo nestes pontos? A que distância estão? Como posso aproximar-me?

Não há nenhuma novidade nestas perguntas. Há séculos que as sentimos e que as fazemos quando olhamos o céu estrelado. Aquele céu de que nos falam nos livros de escola e que já não existe nas cidades. Há séculos que esse céu alimenta poemas, geometrias, terrores, devoções, juras, sonhos e insónias.


Só que depressa reparamos que este céu é estranho, que estas galáxias têm algo de organizado, inteligente, geométrico. Há régua e esquadro neste céu. Que céu é este? Onde está o céu nosso de cada dia?

A ausência de caos destas galáxias arrepia. São civilizações extraterrestres que nos espreitam? O que são estas constelações estranhas que se espalham neste céu como signos no Zodíaco? Há qualquer coisa de mitológico no seu desenho, mais do que mítico. Quem fez estas galáxias?
As legendas ajudam-nos a perceber. Aquele mundo é afinal o nosso. É ali que nós estamos. Estamos ali, aqui, a olhar para cima, para este espelho que nos põe no céu. Somos nós, aquelas constelações. Estamos em baixo olhando para cima e em cima olhando para baixo e pensamos ver a mesma coisa. "O que está em cima é igual ao que está em baixo. O que está em baixo é igual ao que está em cima”. É impossível não evocar o princípio hermético.
Não há nada tão longínquo e tão desconhecido como as galáxias e nada tão próximo e tão familiar como a cidade onde vivemos. Aqui, os dois mundos colidem e coincidem, atravessam-se, a familiaridade torna-se distante, a distância familiar. A desolação sideral e fria do espaço funde-se com o espaço urbano frenético e quente. E quando conseguimos imaginar de novo o caos microscópico que habita estas galáxias, as pessoas, carros, néons, crimes, desencontros, conseguimos respirar de novo. Afinal não há nenhuma inteligência que tenha organizado o universo. Estas imagens que projectámos no céu fomos nós que as fizemos. São afinal humanas. As linhas rectas continuam a ser apenas humanas. Nenhum deus desenha como nós.
Quando vemos enfim as cidades, quando reconhecemos o alinhamento das avenidas, a primeira correspondência é com os mapas do urbanista Richard Florida. Mas estas luzes que vemos não são as luzes da cidade, não são a economia, nem a arte. Nem são a cidade. São sinais da cidade. Pontos criados pelo cruzamento de linhas. Reflexos num espelho. Marcas feitas a lápis num papel. São um levantamento possível. Um levantamento que as coloca no céu.

Há uma tristeza fria nestas cidades. A distância deserta que nos separa destas cidades, onde vivemos, está preenchida por um éter gelado, talvez impossível de percorrer. Adivinha-se uma démarche arqueológica nestas imagens. Estas imagens especulares mostram-nos as nossas cidades como elas poderiam viajar no espaço, como elas poderiam ser vistas quando já não existirem, se houvesse alguém para as olhar. São Cidades Celestiais, como a Cidade Proibida de Pequim ou Damasco sonharam ser, como nos dizem que foram as cidades da Idade do Ouro, aquele tempo que nunca existiu onde todos fomos felizes. Há uma história alternativa nas cartas destas cidades, que nunca saberemos como poderia ter sido.

Estas imagens são um futuro possível das cidades. Um dia, um astrónomo do futuro numa civilização distante poderá ver projectada no espelho do seu telescópio a imagem velha das nossas cidades, já mortas, sem luz, e verá uma imagem invertida que se assemelhará a estas. Quando ele vir essa imagem, as cidades, essas, terão desaparecido há muito.

Estas pinturas são prova evidente de prática ilegal da astronomia, como as observações e os desenhos do alemão Wilhelm Tempel (1821-1889), litógrafo transformado em descobridor de cometas que toda a vida teve de justificar perante uma comunidade científica corporativa e classista a sua falta de formação académica. Max Ernst dedicou-lhe um livro, “Maximiliana ou o exercício ilegal da astronomia”, considerado um dos mais belos livros do século XX e uma obra de referência para a escrita assémica, onde ele próprio comete graficamente o mesmo crime, que invade aliás toda a sua obra, recheada de astros e de sóis.

É também de escrita assémica que se trata aqui, nestas Cartas Celestes, uma acepção facilitada pela polissemia da palavra “carta”. Alguém diz aqui alguma coisa. Não sabemos o quê, nem a quem, mas alguma coisa é dita. Estas cidades falam, na sua caligrafia regular e fria, como um aeroporto fala a um avião, uma pauta a uma pena, um espectro a um astrofísico. Algo se escreve e algo se inscreve, necessariamente, nesta matéria negra de fundo.
É curioso como estas cartas nos devolvem um céu que a luz das cidades nos roubou e como delas essa luz está ausente. Os pontos são aqui apenas encruzilhadas e não lâmpadas. As estrelas destas cartas assinalam cruzamentos, encontros, mas não ofuscamentos. Daí a sua falta de concentração, a fraca centralidade, o seu carácter distribuído. Daí o tratamento democrático do espaço. Não há nenhum atractor estranho que arrebate tudo à sua volta. Podem ser imponentes, misteriosas ou sedutoras, mas nenhuma destas cidades celestes é imperial. E todas são postas em diálogo com os seus cemitérios, metáfora por excelência do hostil e mudo espaço sideral, como que para lhes segredar ao ouvido que são mortais.

José Vítor Malheiros

Fevereiro 2012

O céu nosso de cada dia - Versão 1.0

Texto integral


Texto escrito para inclusão no catálogo da exposição "Cartas Celestes: Cruzamentos, largos, bifurcações", de Rosário Rebello de Andrade, que seria depois reduzido, por imperativos de espaço.
Museu da Electricidade, Lisboa, de 29 de Março a 17 de Junho de 2012
http://www.fundacaoedp.pt/exposicoes/cartas-celestes-cruzamentos-largos-bifurcacao/58


A primeira pergunta é clássica. Tão clássica que é uma das perguntas que mais vezes ouvimos no cinema: Onde estou? Que lugar é este?
Ou, sendo mais preciso, porque o que importa aqui não é o lugar do corpo mas o lugar do olhar: De onde olho? Para onde olho? O que vejo?

A segunda pergunta é filosófica. Porque há aquilo e não o nada? Porque estou aqui e não ali? Quem está ali? Quem poderá estar ali? Quem poderá olhar-me? Que me diz o olhar de quem me olha? O que me devolve o meu olhar? Que relação existe entre mim e o que vejo?
A terceira pergunta é científica. O que são estas luzes? Por que têm cores diferentes? Por que têm tamanhos diferentes? Movem-se ou estão fixas? Que padrões distingo nestes pontos? A que distância estão? Como posso aproximar-me?

Não há nenhuma novidade nestas perguntas. Há séculos que as sentimos e que as fazemos quando olhamos o céu nocturno estrelado. Aquele céu de que nos falam nos livros de escola e que já não existe nas cidades. Há séculos que esse céu alimenta poemas, geometrias, terrores, devoções, juras, sonhos e insónias.

Só que depressa reparamos que este céu é estranho, que estas galáxias têm algo de orgânico, organizado, inteligente, geométrico. Há desenho aqui, há régua e esquadro neste céu. Que céu é este? Que lugar irreconhecível é este? Onde está o céu nosso de cada dia?


É paradoxal que, para os antigos, a organização em constelações fosse a forma mais repousante de organizar o céu - fornecendo à confusão do firmamento a relativa racionalidade do Olimpo e uma narrativa com sentido -, e que, para nós, a inteligência que intuímos nestas cartas celestes seja tão perturbadora. A ausência de caos destas galáxias é arrepiante. São civilizações extraterrestres que nos espreitam? O que são estas constelações estranhas que se espalham neste céu como signos na faixa do Zodíaco? Há qualquer coisa de mitológico no seu desenho, mais do que mítico. Quem fez estas galáxias?

As legendas ajudam-nos a perceber. Aquele mundo é afinal o nosso. É ali que nós estamos. Estamos ali, aqui, a olhar para cima, para este espelho que nos põe no céu. Estamos ali, naquelas constelações. Somos nós, aquelas constelações. É ali que vivemos, que viajamos, que sonhamos ir.


Estamos em baixo olhando para cima e em cima olhando para baixo e pensamos ver a mesma coisa. "O que está em cima é igual ao que está em baixo. O que está em baixo é igual ao que está em cima”. É impossível não evocar o princípio hermético.
Não há nada tão longínquo e tão desconhecido como as galáxias e nada tão próximo e tão familiar como a cidade onde vivemos. Aqui, os dois mundos colidem e coincidem, atravessam-se, a familiaridade torna-se distante, a distância familiar. A desolação sideral e fria do espaço funde-se com o espaço urbano frenético e quente. E quando conseguimos imaginar de novo o caos microscópico que habita estas galáxias, as pessoas, carros, néons, crimes, desencontros, conseguimos respirar de novo. Afinal não há nenhuma inteligência que tenha organizado o universo. Estas imagens que projectámos no céu fomos nós que as fizemos. São afinal humanas. As linhas rectas continuam a ser apenas humanas. Nenhum deus desenha como nós.

Quando vemos enfim as cidades, quando reconhecemos o alinhamento das avenidas, a primeira correspondência, quase imediata, é com os mapas do urbanista Richard Florida. Mas aqui não vemos as cidades iluminadas pela realidade virtual das estatísticas. Aqui não há rankings de cidades ou regiões, não há concorrência entre constelações, nenhuma tenta atrair mais talentos que a sua vizinha, não se trata de criatividade ou de inovação e, se existe boémia nestas cidades, está para além da resolução do nosso telescópio. Cada constelação vale por si, é um mundo por si, indiferente aos outros.

E estas luzes que vemos não são as luzes da cidade, não são a economia, nem a criação, nem a agitação, nem os mercados, nem a arte. Nem são a cidade. São sinais da cidade. Pontos criados pelo cruzamento de linhas. Reflexos num espelho. Marcas feitas a lápis num papel. São um levantamento das cidades. Um levantamento possível. Um levantamento que as coloca no céu. Um levantamento à maneira de Hubble.

Há uma tristeza fria nestas cidades. A distância deserta que nos separa destas cidades, onde vivemos, está preenchida por um éter gelado, talvez impossível de percorrer. Adivinha-se uma démarche arqueológica nestas imagens. Estas imagens especulares mostram-nos as nossas cidades como elas poderiam viajar no espaço - as imagens das nossas cidades viajam de facto no espaço, à velocidade da luz, como todas as imagens -, como elas poderiam ser vistas quando já não existirem, se houvesse alguém para as olhar. São Cidades Celestiais, como a Cidade Proibida de Pequim ou Damasco sonharam ser, como nos dizem que foram as cidades da Idade do Ouro, aquele tempo que nunca existiu onde todos fomos felizes. Há uma história alternativa nas cartas destas cidades, que nunca saberemos como poderia ter sido.

Estas imagens são um futuro possível das cidades. Um dia, um astrónomo do futuro numa civilização distante poderá ver projectada no espelho do seu telescópio a imagem velha das nossas cidades, já mortas, sem luz, e verá uma imagem invertida que se assemelhará a estas. E talvez veja nas encruzilhadas, nas praças, sinais de algum encontro. Quando ele vir essa imagem, as cidades, essas, terão desaparecido há muito.

Estas pinturas são prova evidente de prática ilegal da astronomia, como o foram as observações e os desenhos do alemão Wilhelm Tempel (1821-1889), litógrafo transformado em descobridor de cometas que toda a vida teve de justificar perante uma comunidade científica corporativa e classista a sua falta de formação académica. As descobertas de Tempel costumavam enfrentar o desdém do establishment até serem confirmadas por um astrónomo “oficial”. Max Ernst dedicou-lhe um livro, “Maximiliana ou o exercício ilegal da astronomia”, considerado um dos mais belos livros do século XX e uma obra de referência para a escrita assémica, onde ele próprio comete graficamente o mesmo crime, que invade aliás toda a sua obra, recheada de astros e de sóis.

É também de escrita assémica que se trata aqui, nestas Cartas Celestes, uma acepção facilitada pela polissemia da palavra “carta”. Alguém diz aqui alguma coisa. Não sabemos o quê, nem a quem, mas alguma coisa é dita. Estas cidades falam, na sua caligrafia regular e fria, como um aeroporto fala a um avião, uma pauta a uma pena, um espectro a um astrofísico. Algo se escreve e algo se inscreve, necessariamente, nesta matéria negra de fundo.

É curioso como estas cartas nos devolvem um céu que a luz das cidades nos roubou e como delas essa luz está ausente. Os pontos são aqui apenas encruzilhadas e não lâmpadas. As estrelas destas cartas assinalam cruzamentos, encontros, coincidências, mas não ofuscamentos. Daí a sua falta de concentração, a fraca centralidade, o seu carácter distribuído. Daí o tratamento democrático do espaço. Não há nenhum atractor estranho que arrebate tudo à sua volta. Podem ser imponentes, misteriosas ou sedutoras, mas nenhuma destas cidades celestes é imperial. E todas são postas em diálogo com os seus cemitérios, metáfora por excelência do hostil e mudo espaço sideral, como que para lhes segredar ao ouvido que são mortais.

José Vítor Malheiros
Fevereiro 2012

terça-feira, fevereiro 14, 2012

Lá vamos, que o sonho é lindo!

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 14 de Fevereiro de 2012
Crónica 7/2012

Para o primeiro-ministro, o país é como uma escola e a escola é um modelo do que o país devia ser

1. O discurso que o primeiro-ministro Pedro Passos Coelho proferiu na semana passada, na cerimónia do 40º aniversário de uma empresa privada do sector educativo à qual esteve ligado profissionalmente, não teve como único efeito colocar a palavra “piegas” no léxico político. A sua intervenção, transmitida em directo na televisão como se se tratasse de um discurso de Estado, teve ainda o mérito de projectar o nome da Pedago a nível nacional, assim como o do seu fundador e os “do Ricardo e do Miguel”, pessoas cuja notoriedade o primeiro-ministro julgou suficiente para não ter de as identificar de forma mais precisa.
O directo de 25 minutos na televisão nacional, com amplas referências elogiosas à empresa e evocações dos obstáculos maldosamente colocados à sua frente pelo Estado que teve de ultrapassar (não ocorreu a Passos Coelho que estava ali a representar precisamente o Estado), teve um impacto considerável na projecção do grupo: o Google encontra mais de duzentas referências à Pedago nas notícias publicadas em Portugal nos últimos dias e todas elas se referem a esta presença do PM.
Não tenho sobre a Pedago nenhuma opinião, nem nenhum sentimento, nem sequer qualquer informação que não tenha lido nos jornais. Admito que seja uma excelente empresa e que aquilo que me recordo de ter lido sobre cursos que leccionou e certidões que passou sem estar para isso autorizada seja apenas um pormenor administrativo sem importância e já ultrapassado. Admito que o primeiro-ministro admire o fundador da empresa, que tenha gostado de lá trabalhar, que a considere um exemplo de empreendedorismo e que trate com familiariedade “o Ricardo e o Miguel”. O que me parece menos aceitável é que o primeiro-ministro tenha decidido transformar este seu sentimento pessoal numa descabida homenagem de Estado com direito a propaganda televisiva.
Passos Coelho desculpou-se por não ter podido assistir ao anterior aniversário da Pedago e explicou que não seria o facto de ser PM que o afastaria do deste ano. É lamentável. O facto de ser PM deveria impedi-lo de misturar relações pessoais e profissionais com a sua posição institucional. E a existência de uma relação profissional prévia da sua pessoa com aquela empresa deveria aconselhar-lhe alguma contenção na promoção que fez da sua actividade e no aval que lhe conferiu com este discurso.
Da próxima vez que o PM quiser assistir ao aniversário de uma empresa onde trabalhou e elogiá-la com o calor que certamente merece, seria preferível que tratasse o evento como um acto da sua vida privada. Um aniversário de uma prima, por exemplo, e não como um evento de Estado patrocinado pelo Governo.

2. Mas a substância do discurso de Pedro Passos Coelho também merece um comentário. Para o PM, o país é como uma escola e a escola é um modelo do que o país devia ser. Uma escola exigente, à antiga, uma escola que não existe para educar mas para ensinar, com um mestre-escola à frente, uma cartilha debaixo do braço e os alunos de bibe atrás. Da janela do alto, o director espreita. O mestre-escola exorta os alunos: “Estão a olhar para nós, dêem o vosso melhor”. Na alegoria de PPC os cidadãos são os alunos e os bravos dirigentes do PSD são os seus professores. Os alunos (nós) estamos habituados a preguiçar e a ser tratados com benevolência (“os alunos, coitadinhos, sofrem tanto para aprender”) mas o Governo, com firmeza e exigência, com justiça mas com a intransigência de um pai disciplinador, vai habituar-nos a trabalhar e vai ajudar-nos a cumprir o nosso destino, sem tergiversações. Há outros personagens neste sonho freudiano: há uns que querem ficar agarrados ao passado, que se andam sempre a lamentar, que não fazem mas fazem de conta que fazem; outros que nos querem atirar ao chão e há, finalmente, uma figura paterna, na sombra, a quem temos de mostrar que somos responsáveis, que somos trabalhadores, empreendedores. "Se queremos que olhem para nós com respeito, temos de olhar para nós próprios com respeito". Há por todo o lado olhares severos que nos julgam, que julgam Pedro Passos Coelho. Há em todo o discurso de Pedro Passos Coelho um adolescente nas suas primeiras calças compridas, apostado em mostrar que já é crescido, que se vai portar bem, que vai tomar conta dos irmãos, que vai suportar os rigores da responsabilidade, que não vai ser piegas, que não vai ceder, que vai seguir à risca o seu modelo, que vai ser um pai severo perseverante.
Pacheco Pereira já chamou a atenção para a dicotomia que PPC estabelece entre os “preguiçosos auto-centrados” e os “descomplexados competitivos”, a sua versão de id e super-ego a caminho do Übermensch - o homem sem dívidas e sem dúvidas. Podiam ser trotskistas e estalinistas, judeus e arianos, comunistas e nacionalistas, intelectuais burgueses e operários, o raciocínio é sempre o mesmo. Pedro Passos Coelho não tem muitos graus de liberdade no seu pensamento e os tipos humanos que conhece não dariam grande riqueza a um romance, mas de algo tem a certeza: o caminho do futuro é o da obediência, sem pieguices, sem lamentos, sob a liderança do Governo, que fará a vida da estudantada um inferno, sem complacências, para o seu bem (quantas pessoas conhecem com menos de 70 anos que falem de “estudantada”?).
Um ponto positivo sobre o homem que se senta na cadeira de S. Bento: se Passos Coelho aponta um único caminho, sem estados de alma, sem grande consideração pelas queixas e contestações, piegas todas, não me parece que o faça por querer esmagar as alternativas. Penso que sinceramente não as vê. Todo o seu ser se concentra em mostrar que merece aquelas calças compridas. (jvmalheiros@gmail.com)

terça-feira, fevereiro 07, 2012

A política em processo de privatização

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 7 de Fevereiro de 2012
Crónica 6/2012


Assumir a responsabilidade, como a etimologia mostra, não é mais do que aceitar responder


Não é novo. Não é raro. É mesmo tão banal que nem merece notícia e nem mereceria reparo se não se desse o caso de ser importante.
Todos os dias vemos declarações de políticos onde eles brincam, satisfeitos como gatos, com as perguntas dos jornalistas, iludindo-as com um brilho nos olhos, e fogem sem responder, com um sorriso nos lábios, a agitar a cauda, deixando jornalistas e espectadores com caras de parvos.
Os jornalistas fazem perguntas (que é uma das coisas importantes para que lhes pagam) e os políticos, eles, desviam-se, agacham-se, contornam-nas, ignoram-nas, riem-se, sorriem, ameaçam, rosnam, não respondem, sem perceberem que eles, os políticos, são pagos, simetricamente aos jornalistas, para responder a perguntas. E que os jornalistas estão lá, à frente dos políticos, para lhes dar a oportunidade de eles falarem connosco, o povo. E que, por isso, é do mais elementar sentido político e sentido democrático - para não dizer da mais elementar cortesia - que eles respondam.
É evidente que há perguntas a que não se pode ou não convém responder, por alguma razão, mas essa deve ser a excepção. A regra deve ser fazer declarações, explicar o sentido do que se disse, assumir o que se declarou, contestar aquilo de que se discorda, elogiar os aliados, criticar os oponentes, seja o que for... mas responder! Prestar contas. Assumir a responsabilidade, como a etimologia mostra, não é mais do que aceitar responder. E os políticos portugueses, de forma geral, são irresponsáveis. Não querem responder, não assumem o que dizem, o que fazem, o que querem. Basta assistir a um debate no Parlamento para ficarmos doentes com a exibição de irresponsabilidade, de falta de resposta. Desde que há Canal Parlamento que suspeito que estas emissões engrossam a percentagem das abstenções nas eleições. É natural: quem é que quer ser responsável por aquilo? O que acontece é que, como todos já sabem que as respostas não servem para responder, quem questiona também se dedica ao exercício retórico de fazer perguntas que não servem para perguntar e o resultado é que o debate não serve para debater e a informação sobre ele não serve para informar. (Tenho um sonho impossível: organizar um debate parlamentar arbitrado por um professor de filosofia ou de política versado em lógica e retórica, segundo regras consensualmente definidas, como se faz nos bons colleges britânicos e americanos.)
É verdade que a falta de resposta pode ter muitas causas. Quando uma matilha de jornalistas se amontoa à porta de um edifício oficial e grita 17 perguntas em simultâneo sobre matérias menores, não espero que o político responda a nenhuma (de facto, em geral, como sabemos, responde àquela que já está combinada previamente, que ele miraculosamente ouviu entre as 17).
Quando Cavaco não responde aos jornalistas, como faz quase sempre, penso que será porque não percebe as perguntas, ainda que disfarce com eficácia usando o seu ar esfíngico e desdenhoso - que suspeito ser uma tentativa de emulação do Júlio César de Astérix.
Quando Pedro Passos Coelho não responde a uma pergunta isso deve-se apenas ao facto de a pergunta não estar prevista no argumentário da Goldman Sachs que equipa o seu software, saltando em geral automaticamente para a resposta seguinte.
Mas quando António José Seguro não responde, não há dúvida: está mesmo a gozar connosco. A verdade é que ele acha que os jornalistas não têm nada de fazer perguntas e que nós não temos nada de ouvir as respostas. Por quem é que a gente se toma? Por que é que o secretário-geral do PS teria de explicar aos portugueses o que pensa do memorando da troika? Ele fez aliás fez questão de frisar: "Na Comissão Nacional eu tive oportunidade de dizer o que penso, não é? É uma Comissão Nacional, é uma reunião de órgãos do partido." "Não é"? Numa reunião de órgãos do partido Seguro tem oportunidade de dizer o que pensa mas aos portugueses acha que não é necessário. Ou talvez ache mesmo que não deve.
E quando Seguro, perante a insistência dos jornalistas sobre as suas declarações em relação à troika, acrescenta que "Évora é uma cidade fantástica", que "tem uma gastronomia óptima" e convida os jornalistas a aproveitar a "pausa" porque não os quer ver com "hipoglicémia", quer simplesmente sublinhar, com a máxima elegância de que é capaz, que aquilo que perguntam não é da sua conta nem da nossa. Se Cavaco não gosta de falar dos seus negócios e se Passos Coelho não gosta de falar de economia, Seguro não gosta de dizer o que pensa fora da Comissão Nacional. Não é?
Mas esta discrição não é só dele. Na semana passada, uma notícia neste jornal referia críticas ao Governo feitas por "proeminentes cavaquistas" que também achavam que o seu nome se poderia oxidar se falassem na praça pública e que preferiram ficar embuçados nos seus dominós desde que lhes garantissem que o seu recado seria divulgado. Não quero discutir a utilidade de uma tal notícia ou o relevo que lhe foi dado, mas podemos constatar a lamentável inutilidade de tais políticos "proeminentes" e o desproporcionado relevo que a nossa política lhes dá.
Não é só a economia: a política, em Portugal, parece estar também em processo de privatização. Algo que se reserva para os gabinetes dos partidos e para os recessos dos bailes de máscaras, mas que não deve sair à rua. E, quando sai, sai apenas com dichotes gastronómicos ou vitríolo anónimo. Nesta política, os cidadãos estão a mais. Estamos aqui a mais. É por isso que nos convidam tão insistentemente a emigrar.(jvmalheiros@gmail.com)