terça-feira, abril 24, 2012

Da fome, do desperdício e da tristeza

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 24 de Abril de 2012
Crónica 17/2012

A letra do hino da campanha Zero Desperdício é (para ser benevolente) profundamente infeliz


Na semana passada, a difusão na Internet de um vídeo do hino da campanha Zero Desperdício, no qual participaram alguns dos mais talentosos músicos da nossa praça, levantou uma compreensível onda de protestos. A letra do hino, da autoria de Tim, é (para ser benevolente) profundamente infeliz, dizendo, a certa altura, “o que eu não aproveito ao almoço e ao jantar / a ti deve dar jeito, temos que nos encontrar”. Devo dizer que, quando li uma parte da letra que alguém pôs a circular na Web, tive a certeza de que se tratava de uma sátira. Quando vi, pareceu-me uma das coisas mais tristes que já me foi dado ver. É chocante a ausência de consideração pela dignidade das pessoas destinatárias da campanha, é chocante a naturalidade com que se encara o facto de umas pessoas viverem das sobras de outras, é chocante a maneira como esta desigualdade é travestida de solidariedade, é chocante o facto de os participantes na campanha não terem sentido nada disto.
Os erros acontecem e é possível que ninguém se tivesse dado conta de que o hino tinha esta leitura. Mas, nesse caso, alguma sensibilidade teria aconselhado a imediata retirada do vídeo e um pedido de desculpas mal a reacção surgiu. É triste que isso não tenha acontecido.
Mas a campanha Zero Desperdício merece outras considerações.
Vale a pena reflectir sobre a expressão “desperdício alimentar”, cujo combate é apresentado pela campanha como o seu objectivo número um. “Pôr fim ao desperdício” é apresentado como a missão da campanha e “Portugal não se pode dar ao lixo” é o seu slogan.
Repare-se que o problema identificado não é a “fome” ou a “carência alimentar” nem a missão “dar de comer a quem tem fome” ou algo do género. A actividade desenvolvida também não é apresentada primordialmente como uma acção de “solidariedade” nem sequer de “ajuda” ou “assistência” (expressões não isentas de carga negativa, pelo paternalismo e desigualdade que lhes está associado, mas certamente defensáveis). Repare-se na diferença entre este “pôr fim ao desperdício” e o nome do Banco de Ajuda Alimentar, claramente apresentado como assistencial, e cuja razão de ser, assumida sem ambiguidades, é melhorar as condições de vida dos destinatários da sua ajuda. Repare-se na diferença entre este “pôr fim ao desperdício” e os famosos Restos du Coeur, criados pelo humorista francês Coluche e cuja designação é, em si, um grito solidário (estes “Restos” são a abreviatura de “Restaurantes” e não os restos do almoço e do jantar).
Toda a campanha do Zero Desperdício coloca, pelo contrário, a tónica “do lado da oferta”. Toda a iniciativa é “supply-side economics”. Tudo é apresentado como se fosse o facto de haver desperdício de alimentos que justifica a campanha e as acções dos dadores e não o facto de haver pessoas com fome. Mais: o facto de haver desperdícios parece até positivo, já que permite que os pobres beneficiem das sobras, num exemplo perfeito de “trickle-down economics”. O racional da campanha parece ser e poderia ser: “Já que esta comida ia para o lixo, vamos dá-la aos pobres”. É evidente que o desperdício de alimentos é intolerável, mas o que motiva a acção solidária não pode deixar de ser o combate à fome e a pobreza e às suas causas - e este objectivo, um claro imperativo ético, não pode ser deixado diplomaticamente de lado, para não ofender os poderes por chamar a atenção para a política de empobrecimento a que o país está a ser submetido. Há um dever de denúncia que é inalienável e indeclinável.
É evidente que o “combate ao desperdício” - objectivo razoável em termos gerais, mas moralmente neutro - se insere bem no discurso ideológico caro ao Governo e à direita e se alinha com os apelos à produtividade e à competitividade, enquanto que o “combate à pobreza” tem tonalidades que o Governo, o Presidente da República, os partidos da direita e os grandes patrões não apreciam. Cheira a socialismo, a comunismo, a direitos humanos, aquelas coisas que a direita portuguesa abomina. Mas aquilo a que a simples solidariedade humana nos obriga é a partilhar, de forma a acabar com a fome, independentemente de haver ou não desperdício.
É possível que os autores da campanha “Zero desperdício” tenham decidido não realçar nos seus documentos as expressões “fome” nem“combate à pobreza” (pelas suas tonalidades de esquerda) e falar apenas de “redução do desperdício” (pelas suas tonalidades de direita). Pode ter sido uma astuta decisão de marketing político, uma decisão pragmática de quem sabe que o PSD e o CDS têm a maioria em Portugal. Mas, se o foi, a decisão aceita o pressuposto de que algo tão básico como o combate à fome, tão central nos direitos humanos, deve ser posto de lado devido à sua pretensa tintagem política e deve ser substituído por algo mais aceitável nos salões, algo que cheire a promoção da eficiência empresarial. O que seria triste. (jvmalheiros@gmail.com)

terça-feira, abril 17, 2012

Critérios de fachada legalista servindo objectivamente a corrupção

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 17 de Abril de 2012
Crónica 16/2012

Devemos alargar aos ricos ociosos e aos corruptos as obrigações que o fisco já
exige a todos os trabalhadores

O diploma que pretendia criminalizar o "enriquecimento ilícito", recentemente chumbado pelo Tribunal Constitucional, tinha algo que não batia certo.
É que o "enriquecimento ilícito", se é ilícito, já está criminalizado. Ou seja: estabelecer que o enriquecimento ilícito é um crime corresponde, afinal, a dizer que enriquecer em resultado de ter cometido um crime é... um crime. Mas como cometer um crime é um crime, passe a tautologia, a nova figura não viria acrescentar nada de novo. Quando muito, poder-se-ia considerar que o enriquecimento como consequência da prática de um crime constituiria uma agravante do crime - condenando com maior rigor os criminosos mais hábeis.

Só que o novo crime  não pretendia nada disto, mas sim encontrar forma de acusar pessoas que tivessem enriquecido de forma que se supunha ilícita sem que fosse necessário identificar e provar o crime que estaria na origem do enriquecimento, bastando provar o enriquecimento.

É claro que isto levanta o problema do ónus da prova que, num Estado de direito, tem de estar do lado da acusação. É evidente que seria moralmente (e constitucionalmente) inaceitável abordar uma pessoa, acusá-la de ter enriquecido de forma ilícita e obrigá-la a provar a falsidade da acusação e a demonstrar que não cometeu crime algum. Isto seria a famosa "inversão do ónus da prova", um princípio que, a ser aceite, abriria a porta a muitos abusos. Se eu for acusado de um crime, cabe ao Estado provar a minha culpa e não a mim provar a minha inocência. É o direito de todos os cidadãos serem considerados inocentes até prova em contrário, a também famosa presunção de inocência, outro princípio basilar do regulamento jurídico das democracias.

Posto isto, a verdade é que o que está em causa é, de facto, encontrar uma forma de identificar e responsabilizar as pessoas que enriqueceram de forma ilegal - mesmo quando não há esperança de que essas ilegalidades venham a ser provadas - já que existe o sentimento de que estas situações são frequentes. Como se resolve o dilema?
Existe actualmente na sociedade a forte convicção de que a corrupção - e, em particular, a grande corrupção, associada aos governantes, aos partidos, aos autarcas, às grandes empresas, ao capital financeiro e aos grandes contratos que unem uns e outros - goza de uma absoluta impunidade. Tal como existe o sentimento de uma descarada dualidade de critérios na administração da justiça, sempre forte com os fracos e os pobres e sempre tímida com os ricos e poderosos. Estes sentimentos geram não só uma animosidade particular contra os suspeitos, como destroem a confiança que deveria existir no sistema político e nos seus agentes, na Justiça e nos seus agentes, na actividade económica como fonte de riqueza e até na própria democracia.
Não podemos deixar de achar estranho que uma pessoa que amealha uma fortuna de dez milhões de euros em dois anos, apesar de ter apenas um ordenado de 1800 euros, não tenha quaisquer explicações a dar à sociedade, enquanto o dono de um restaurante pode ser multado por não ter registado nas suas receitas um almoço de sete euros. Não é estranho que os sete euros tenham de ser declarados porque são fruto do trabalho, mas os dez milhōes, eventualmente fruto de crimes, não tenham? Não há aqui uma estranha dualidade de critérios de fachada legalista servindo objectivamente a corrupção?
É também estranho que tenhamos de provar que um apartamento ou um carro nos pertence e que tenhamos de identificar a pessoa a quem o comprámos, que tenhamos não só de declarar todos os euros que ganhámos mas quem nos pagou esses euros e quando e porquê e que o senhor dos dez milhōes de euros não tenha de dar quaisquer explicações a ninguém.

Como se resolve o dilema? Alterando um pouco os objectivos. Se considerarmos que a ilicitude está no enriquecimento, vai ser sempre preciso prová-lo - o que, em particular nos casos de corrupção, parece difícil. Mas podemos mudar o crime, enquadrando-o no âmbito fiscal e decretar a obrigatoriedade de declarar a fonte de todo e qualquer rendimento (ou de o fazer acima de certo patamar) e de a provar documentalmente. Ou seja: alargar aos ricos e corruptos o que o fisco já me exige a mim e a todos os trabalhadores. No fundo, é isto que queremos. A obrigatoriedade de declaração criará a ilicitude da não declaração - ou da declaração incompleta ou errónea. Estes são crimes que será fácil ao Estado provar (ou, pelo menos, investigar), sem inversão do ónus da prova e sem abandonar a presunção de inocência. E as penas poderão ir até ao confisco do bem em questão. Claro que a nova lei não vai resolver todos os problemas - mas nenhuma resolve. Trata-se afinal de conseguir sancionar o “enriquecimento ilícito” não através da figura do “enriquecimento injustificado” mas através de uma simples “obrigatoriedade de declaração de todos os rendimentos e sua origem”. (jvmalheiros@gmail.com)

terça-feira, abril 10, 2012

Recordes e mentiras

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 10 de Abril de 2012
Crónica 15/2012


Num mundo de mentiras tão repetidas que parecem verdades, é preciso, pelo menos, denunciar uma de cada vez.

Número de desempregados bate recordes. Número de desempregados jovens bate recordes. Número de falências bate recordes. O número de estudantes sem bolsas e a fuga de cérebros batem recordes. A emigração e o regresso de imigrantes aos seus países de origem batem recordes. O número de sem-abrigo e o número de pessoas que pedem ajuda alimentar batem recordes. O número de famílias que não conseguem pagar as suas hipotecas aos bancos e que não conseguem pagar escolas privadas bate recordes. O número de suicídios bate recordes. O aumento das taxas moderadoras e os cortes nos subsídios de desemprego e no rendimento social de inserção batem recordes. Os cortes na participação nos medicamentos batem recordes. O número de desempregados sem direito a subsídio e o número de doentes com cancro que abandonam tratamentos por falta de dinheiro batem recordes.

Estes são alguns dos recordes que o país bateu nos últimos dias. Apenas nos últimos dias e fazendo uma pesquisa superficial na imprensa. Não são todos. São apenas alguns dos que são mais fáceis de medir. Entre os outros recordes, mais subjectivos, que estão a ser batidos de dia para dia, está a perda de confiança dos portugueses no Governo, nos políticos em geral, na política e até na democracia. A perda de confiança nas instituições em geral, da Justiça às instituições europeias, da imprensa às escolas. A perda de confiança nos outros e em si mesmos.

Batemos todos os dias recordes de culpa, de medo e vergonha. Sentimentos de culpa inculcados por responsáveis sem vergonha, que continuam a repetir a ladainha de que “os portugueses viveram acima das suas possibilidades” e de que somos os culpados de todos os males que nos afligem. Medo de perder o emprego, de não ter dinheiro para pagar a hipoteca, o infantário, a electricidade, o gás, a água. Medo de ficar doente e de passar a receber metade do ordenado, sem poder ir ao médico nem comprar medicamentos. Medo de engravidar e de que o contrato não seja renovado. Medo de condenar a família à miséria. De viver à custa dos pais. De viver à custa dos filhos. De acabar a viver na rua. De repente, como acontecia nos filmes dos anos 50, uma tosse pode ser o sinal da catástrofe que se abate sobre uma família. É proibido adoecer.

Vergonha de não ter dinheiro para ir ao café com os colegas, de ter o gás cortado por falta de pagamento, de ter a mensalidade do condomínio atrasada, de não poder comprar ao filho o brinquedo que ele diz que as outras crianças todas têm, de não poder comprar o casaco nos saldos, de não poder ir ao cabeleireiro. Vergonha de deixarmos este país e esta Europa e este mundo aos nossos filhos.

Batemos recordes de humilhação. Desconsiderações que se engolem no emprego, remoques que se suportam dos chefes, horas de trabalho não remuneradas roubadas à família, ao descanso, à saúde, submissão aos capatazes que murmuram ameaças veladas. Represálias que se sofrem em silêncio devido a críticas, a reivindicações, a solidariedades, a posições políticas que se tomam e que se começam a lamentar.

Batemos recordes de desespero e de indignação mas a indignação é cada vez mais fruste e o desespero mais individual. Deixámo-nos levar pela vaga de individualismo consumista e estúpido para nos descobrirmos sozinhos na fila do centro de desemprego.

Admiramo-nos de que não haja mais indignação, mais revolta, espantamo-nos com a apatia que vemos nas ruas, escrevemos desabafos no Facebook, assinamos abaixo-assinados e participamos em manifestações e greves mas sentimos que estamos também a bater recordes de resignação, de desistência e de tristeza. Há uma mulher no autocarro ao meu lado que diz que “vivemos acima das nossas possibilidades”. Há um velho que acrescenta que “os pobres sempre foram pobres e sempre hão-de ser”. Quando digo que não tem de ser assim olham-me como se fosse um louco. Um agitador.

Como é possível que tantos continuem a acreditar nas mentiras de tão poucos, que tantos continuem dispostos a vender os seus primogénitos para enriquecer os mais ricos dos ricos? Como é possível prescindir do futuro, da liberdade, da democracia, como temos andado a fazer? Apetece-nos emigrar para o Brasil, para a Tunísia, para algum sítio onde ainda pareça possível melhorar alguma coisa, mas a peçonha invadiu o mundo. Nos EUA, na Irlanda ou em Portugal repete-se que o Serviço Nacional de Saúde não é sustentável, que só há dinheiro para tratar os ricos, que não sobra nada para os pobres.

Como se pode viver? Num mundo de mentiras tão repetidas que parecem verdades, é preciso, pelo menos, denunciar uma de cada vez, para não perder o norte por completo. Por exemplo: é mentira que a inscrição na Constituição de um limite ao défice seja uma “regra de ouro”. Essa é uma expressão de propaganda, manipuladora. É uma mentira disfarçada de aforismo sábio. Uma mentira insidiosa. Os jornalistas, ingénuos, repetem-na, seduzidos pela sua concisão. Mas não devem. (jvmalheiros@gmail.com)

terça-feira, abril 03, 2012

Roubar aos pobres para dar aos pobres


por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 3 de Abril de 2012
Crónica 14/2012

Estado quer detectar sinais exteriores de riqueza. Operação vai centrar-se nos beneficiários do RSI. 


O Governo anunciou que vai começar a fazer um esforço sistemático e rigoroso de detecção de todas as manifestações de sinais exteriores de riqueza e vai verificar se essas pessoas não terão feito declarações fraudulentas ao Estado e se não estarão a beneficiar de situações de privilégio injustificado.


Parece uma medida corajosa e justa não parece? Parece, mas seria bom de mais. O Governo anunciou realmente essa preocupação e diz-se determinado a agir, só que essa preocupação não se destina a combater a fraude fiscal, nem a apanhar e punir aqueles empresários, gestores e profissionais liberais com grandes rendimentos que pouco ou nada pagam aos fisco, nem tão pouco a identificar casos de corrupção, mas a identificar os beneficiários do Rendimento Social de Inserção (RSI) que não cumprem as regras.
Não se trata de uma piada de 1º de Abril. O ministro da Solidariedade e Segurança Social, Pedro Mota Soares, já há tempo que vem falando nisto, sempre com o ar de cruzado fervoroso que o caracteriza.


Na linha do que o CDS sempre pensou e sempre disse - estas posições têm-se pautado pela coerência, ainda que coerência seja o tipo de qualidade que também se pode imputar a um serial killer - Pedro Mota Soares acha que há muita fraude no RSI, aquele subsídio que Paulo Portas considera um "financiamento à preguiça" e que antes considerava o “subsídio dos ciganos”. Mais: Pedro Mota Soares sabe que a fraude no RSI totaliza 70 milhões de euros, mais coisa menos coisa. Sabe que a fraude que há no RSI tem o mesmo valor de que precisou para os aumentos das pensões mínimas, rurais e sociais que entraram em vigor no início do ano. É por isso que o gasto total no RSI deste ano vai passar de 440 milhões de euros para 370 milhões. Foi assim que a pensão mínima passou para 254 euros, a rural para 234 euros e a social para 195 euros. Um aumento de sete euros, “em linha com a inflação”, não vão estes pobres ganhar vícios e começar também eles a mostrar sinais exteriores de riqueza.


Mas esse aumento foi feito graças à fraude no RSI, que constitui uma preocupação central de Pedro Mota Soares. Foi apenas graças à certeza de que podia roubar aos pobres para dar aos pobres que Pedro Mota Soares pôde oferecer este bodo aos pensionistas que, segundo o ministro, “não é uma medida simbólica”.


Só que o ministro não acha que os recipientes do RSI sejam pobres. Numa entrevista dada em Janeiro ao Correio da Manhã o ministro revelava que havia beneficiários do RSI com 100.000 euros no banco mas que recebiam o subsídio.
Pedro Mota Soares apresenta estes casos como se fossem representativos do grupo de beneficiários do RSI, para reforçar a tese do "financiamento à preguiça" e ganhar apoios entre os pensionistas pobres, que lhe agradecem os sete euros suplementares que lhes caem no boné à custa dos falsos pobres com milhares no banco. Os pobres podem assim entreter-se a odiar os mais pobres.
Podemos ter a certeza de uma coisa: as fiscalizações vão de facto encontrar “fraudes” que vão somar 70 milhões. E vão encontrá-las porque tem sido essa a ordem que o ministro tem dado à inspecção, com insistência e publicamente. Os senhores inspectores não têm interesse nenhum em não chegar aos 70 milhões. Não interessa se o RSI é a mais fiscalizada das prestações sociais, não interessa se em 2008 o valor das irregularidades detectadas foi de 11,2 milhões de euros, não interessa se o anterior Governo tinha encontrado 20 por cento de irregularidades em acções de inspecção feitas apenas no sub-conjunto de casos que apresentavam características suspeitas. Este Governo vai encontrar 16 por cento de “fraude” no universo total de beneficiários porque o ministro definiu essa meta e até já gastou o dinheiro. E todos sabemos que encontrar irregularidades é a coisa mais fácil do mundo. Se não se encontrasse a “fraude” onde é que se iriam buscar os sete euros do aumento das pensões? A pessoas sérias, votantes na maioria, bons católicos, com empresas em off-shores e unhas irrepreensíveis?


E não interessa se a maioria das irregularidades são apenas pequenas alterações dos rendimentos ou do número de pessoas do agregado familiar que fazem com que uma família deixe de se encaixar no critério do RSI. Pedro Mota Soares diz “fraude”, quer que se diga “fraude”, quer que se fale das “fraudes”. Quer que se imagine ricaços com 100.000 euros no banco e carros de luxo à porta a receber o RSI. Não terá vergonha? Compaixão? Tem. Mas Pedro Mota Soares sabe que o Céu espera quem sofre. Se muito sofrerem, os beneficiários do RSI ficarão mais perto da Glória e esse pensamento é exaltante. Talvez alguns sejam afastados injustamente e acabem por morrer por falta de dinheiro para uma taxa moderadora, mas não sofreu Cristo? Como é bom ter uma fé que nos permite oferecer o Paraíso a tantos, dando-lhes a oportunidade de oferecer a Deus o seu sofrimento. Com anjos da guarda assim, quem precisa de demónios? (jvmalheiros@gmail.com)