terça-feira, julho 31, 2012

Sombra

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 31 de Julho de 2012
Crónica 30/2012


A sombra era o sítio onde estava mais escuro, mas nunca tinha percebido bem o que era, nem porque era preciso ir para lá.
Quando eu era pequeno era normal ler na instrução primária textos de louvor. Louvor às mais diversas coisas. Vinham nos livros de leitura, em folhinhas avulsas, nos livros a sério que havia na biblioteca da escola, nos livrinhos da Catequese. Havia textos de propaganda política que louvavam a Pátria, o Chefe, a Mocidade ou a Igreja. Textos de fervor nacionalista que louvavam a História, a gesta heróica dos Lusitanos, os Descobrimentos. Textos de exaltação moral que louvavam as virtudes cardinais ou teologais, às vezes com bonitas histórias exemplares. E havia os textos romântico-económicos, de louvor à Natureza e às riquezas naturais, dos animais domésticos aos rios, do mar às searas. Um desses textos - e não sei se me recordo de um texto em particular ou se amalgamo vários num só - era sobre “a árvore”.
“A árvore” era uma manancial de benesses e fartava-se de nos dar coisas: dava-nos a nobre madeira, com a qual se faziam móveis e alfaias diversas (não se falava de celulose nem de papel nessa altura); dava-nos a lenha, com que nos aquecíamos nas longas noites de inverno; dava-nos o azeite, com que nos alumiávamos na noite escura (o azeite era mais para alumiar que para pôr na salada, ainda que uma candeia fosse para mim algo com uma exclusiva existência literária); dava-nos a cortiça benfazeja, com a qual se faziam rolhas para as garrafas e tarros para transportar comida e uma quantidade de outros objectos; dava-nos os seus frutos suculentos e refrescantes, que nos saciavam a sede e apaziguavam a fome; dava-nos a sua seiva generosa, com a qual se faziam colas e borracha e rebuçados para a tosse; dava-nos a beleza incomparável dos seus ramos em flor e, no final, em jeito de clímax, oferecia-nos a sua sombra aprazível, espraiando-a debaixo dos seus ramos e convidando-nos ao doce descanso no calor das tardes de Verão.
Eu percebia que o autor do texto tinha querido estender-se ao máximo para dizer bem da árvore e que tinha ido buscar tudo aquilo de que se tinha podido lembrar e mais um par de botas. E eu achava que a madeira e a fruta até eram coisas boas, que se percebia que estivessem na lista. E até percebia que se falasse das flores, ainda que me parecesse uma coisa um bocado efeminada. Mas a sombra? A sombra? Dizer que as árvores eram boas porque davam sombra? Para mim era como elogiar a suavidade ao tacto do manto celeste ou a música perfeita dos sólidos geométricos.
O que era a sombra? A sombra não era nada e se era preciso elogiar a sombra para dizer bem das árvores era a prova de que as árvores, afinal, não davam assim tantas coisas como isso. Mas é claro que, se a ocasião se apresentasse, numa redacção, por exemplo, eu não deixava de fazer a lista completa das contribuições da árvore para a nossa felicidade, sem esquecer a malfadada sombra, não fosse a professora pôr-me “incompleto” ou acrescentar a vermelho um daqueles irritantes comentários cheios de enormes pontos de exclamação e interrogação: “E a sombra??!! Esqueceste-te da SOMBRA!!??”
Quando eu era pequeno, não sabia o que era a sombra. Quando estávamos na praia, às vezes a minha mãe dizia-me para eu ir para a sombra, que era o sítio onde estava mais escuro, mas nunca tinha percebido bem o que era, nem porque era preciso ir para lá, nem por que razão era boa, nem sabia que existia pessoas que genuinamente gostavam dela e a procuravam. A única vantagem que eu via em ir para a sombra era poder ir brincar com os meus amigos para aquele espaço secreto entre as barracas de praia e o paredão de pedra, onde estávamos protegidos dos olhares dos adultos.
A preocupação dos adultos pela sombra era algo tão misterioso para mim como o facto de o meu pai nunca atender o telefone quando estava a jantar. Qual era o problema de interromper o jantar? Qual era o problema de se levantar e ir falar ao telefone? Não percebia como é que isso lhe podia desagradar tanto. Era tão giro falar ao telefone.
Não me lembro quando comecei genuinamente a apreciar a sombra mas foi já bem entrado na idade adulta. E, previsivelmente, com o passar dos anos, o meu gosto pela sombra foi aumentando.
Há dias dei por mim a desviar-me do meu caminho para aproveitar uns dez metros da sombra que um enorme pinheiro lançava no passeio da Rua Marquês de Fronteira e a abrandar o passo para prolongar o gozo da frescura do ar, no meio dos 38 graus inclementes desse dia de Julho. E lembrei-me daquela misteriosa sombra dos meus textos da instrução primária e pensei quantos anos tiveram de passar até que eu conseguisse perceber perfeitamente, finalmente, o que queria dizer algo tão simples e tão importante como isto. (jvmalheiros@gmail.com)

terça-feira, julho 24, 2012

E se em Setembro fosse diferente?

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 24 de Julho de 2012
Crónica 29/2012


Vivemos sob a ditadura do sistema financeiro, sob a bota de um poder absoluto, anti-democrático e sem controlo. Que parte é que ainda não percebemos?
As pessoas andam caladas. Na rua, nos centros comerciais, nos transportes públicos, nos cafés e restaurantes. Até nas manifestações é difícil pôr uma multidão a escandir uma palavra de ordem e, quando o fazem, dura pouco. Custa-lhes falar. Ou será só impressão minha? Mesmo tendo em conta a redução do número de pessoas em certos locais da cidade devido às férias, tenho a sensação de que as pessoas cada vez falam menos, mais baixo, com menos energia. Acho que estão deprimidas, tristes com a vida, desiludidas umas com as outras e envergonhadas consigo. Haverá uma relação entre o barulho que se faz e a felicidade que se sente? Acho que sim. Basta ver um grupo de crianças a brincar num jardim e um grupo de bancários a pegar ao trabalho. Mas não é só a tristeza que é silenciosa. O medo também é. O medo faz-nos querer passar despercebidos. Os cafés do tempo do medo eram cafés de silêncios, de murmúrios, de olhares furtivos, de sombras curvadas em cinzento. E as pessoas estão outra vez com medo.

Vejo isto e penso nas manifestações espanholas. Espanha sempre foi um país ruidoso, onde se falou alto, demasiado alto, apaixonadamente. Várias vezes, em reuniões com amigos espanhóis, tive de explicar a alguém que assistia que não, não estávamos zangados, estávamos só a falar, a discutir literatura ou a trocar histórias.

Mas por cá, é diferente. As pessoas estão descontentes mas guardam o descontentamento para si, engolem a amargura e continuam a cavar a terra dura em silêncio, como velhos camponeses. Serão ainda os 48 anos? Irá durar muito mais? Será genético? Será geográfico? Se em Espanha as multidões fervem, aqui as pessoas parecem em banho-maria, sempre abaixo do ponto de ebulição.

O que é mais espantoso é que as pessoas andem deprimidas, tristes com a vida, desiludidas umas com as outras e envergonhadas consigo mesmo em vez de estarem furiosas com aqueles que as humilham e as roubam, em vez de se indignarem e revoltarem contra os que as mantêm mergulhadas na miséria, contra os que lhes mentem e continuam a mentir, contra os que os vivem no luxo comprado com o fruto das pilhagens aos mais pobres.

Como é que é possível que uma manifestação de desempregados em Lisboa tenha 500 pessoas? Como é possível que as pessoas não se indignem quando lhes roubam a saúde e a educação dos filhos? Como é possível que não reajam quando lhes dizem que o fruto do seu trabalho durante a próxima geração deve ir para os bancos e que tudo o que conquistaram lhes será confiscado?
Como é possível que não se revoltem ao ouvir o ministro “da Solidariedade” Pedro Mota Soares falar das fraudes do RSI mas abster-se de condenar a gigantesca fraude que é o sistema financeiro? Como é possível que não se revoltem perante a fraude que é a existência dos paraísos fiscais - como a Madeira e muito outros, na própria União Europeia - onde os ricos escondem o seu dinheiro para fugir ao fisco? Como é possível que não se revoltem perante o escândalo das PPP que sangram o Estado para encher o bolso de meia dúzia de empresas de primos do regime? Como é possível que não se revoltem perante o escândalo das privatizações cozinhadas entre os amigos e conhecidos do Governo? Perante uma justiça que parece existir apenas para reprimir os mais pobres e permitir os abusos dos mais ricos? Como é possível que não se revoltem perante as agências de rating e os bancos que traficam as taxas de juro em benefício dos grandes especuladores e em detrimento da economia real, dos trabalhadores e dos Estados? Como é possível que não se revoltem quando, fechando os olhos a estas fraudes, o Governo tem a lata de lhes dizer que viveram acima das suas possibilidades e que é necessário que paguem as dívidas que alguém contraiu em nome deles? Quando lhes dizem que essas dívidas, contraídas para pagar juros de dívidas que ninguém sabe como nasceram, devem ser pagas “custe o que custar”?
Vivemos uma gigantesca fraude, uma pseudo-democracia que é na realidade uma ditadura do sistema financeiro, onde um poder absoluto, anti-democrático e sem controlo domina a União Europeia, impõe e depõe Governos, fabrica as leis que quer e desrespeita as que não quer, compra políticos, controla a máquina do Estado em seu benefício, se apropria dos bens que pertencem a toda a sociedade através de privatizações e escraviza populações inteiras condenando-as a penas perpétuas de trabalhos forçados para pagar dívidas a juros agiotas.
A situação que vivemos não é apenas financeiramente insustentável, não é apenas economicamente insensata, não é apenas ambientalmente irresponsável. É também eticamente inadmissível, é também politicamente intolerável, é indecente e desumana. Por isso, o que acham de usar este Agosto para retemperar forças e de regressar em Setembro dispostos a perder a vergonha, a recuperar a voz e a reclamar os vossos direitos? São os meus votos para as vossas férias. (jvmalheiros@gmail.com)

terça-feira, julho 17, 2012

Equivalências e ainda Relvas (PIM!)

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 17 de Julho de 2012
Crónica 28/2012


Relvas (PIM!) não é apenas uma vergonha para o seu amigo Passos Coelho, para o PSD ou para o Governo

1. As escolas servem para adquirir competências de diversos tipos. Essas competências são diferentes conforme o nível de ensino e conforme a área científica específica em que a escola actua. Penso que as competências mais importantes que se adquirem na escola - do ensino básico ao superior - não são as competências técnicas específicas mas as competências genéricas. As funções mais importantes da escola são ensinar a ler, a escrever, a raciocinar, a falar e a discutir (ouvir, argumentar) - e isto não apenas no ensino básico, mas nos diferentes níveis de ensino, ainda que com crescentes profundidade e exigência. E claro que, para além destas competências genéricas básicas, há competências genéricas de mais alto nível: saber procurar e validar informação, saber estudar, analisar um problema, emitir e testar hipóteses, desenvolver um espírito crítico e aberto, trabalhar em equipa, apresentar uma ideia. E há, para além destas competências, valores que se espera que a escola transmita pelo exemplo e pela sua cultura: a curiosidade, o amor à verdade, a liberdade criativa, o rigor intelectual, a perseverança, a isenção, a equidade, a colaboração.
Claro que esperamos ainda que uma faculdade de medicina ensine os seus alunos a fazer uma apendicectomia e que uma escola de informática ensine a programar, mas tudo isto, por importante que seja, é apenas a última camada de um processo de onde não podem estar ausentes as etapas anteriores.
Uma parte dos saberes académicos que absorvemos ao longo da nossa vida são livrescos e podem ser encontrados em textos. Mas os mais importantes são aprendidos na prática, no próprio estudo, na investigação, nas discussões, nessa mistura de textos e de críticas, de exegese e de iconoclastia, de noites de estudo e de conversas de café, de tradição e de revolução, de atrevimento e de experiência que caracteriza as melhores universidades. Outros ainda são saberes práticos propriamente ditos que exigem laboratório e oficina - são gestos que apenas se podem aprender fazendo e que apenas se podem melhorar através do exercício, quer se trate de uma apendicectomia ou da execução de um plié.
E existem, para além de tudo isto, outros saberes, práticos ou não, que adquirimos na nossa vida extra-académica, profissional ou não.
O papel das escolas, seja qual for o seu tipo, é promover a aprendizagem. Não apenas ensinar, mas ensinar a aprender. E claro que as escolas devem também certificar competências, porque a sociedade precisa de receber garantias de que os estudantes que concluíram um dado ciclo de aprendizagem possuem certas competência e podem assumir determinadas responsabilidades.
Não só não me choca nada como me parece natural que a Universidade reconheça competências que um estudante adquiriu fora da academia - seja na sua vida profissional, seja  na prática de um hobby.
Só que, não sendo as competências que a universidade oferece exclusivamente do domínio do “saber fazer”, não pode bastar ao candidato à equivalência mostrar o que sabe fazer ou o que fez - é também preciso mostrar o que sabe. Ou seja: é justo que uma escola de tapeçaria dê um diploma de artesão de tapetes de Arraiolos a alguém que mostre o seu saber fazendo um tapete à frente de um júri. Mas, se se tratar de uma disciplina de História da Tapeçaria, o mesmo saber prático já não deve merecer a mesma equivalência - porque o saber que se pretende que o estudante obtenha não é da mesma ordem.
Existe num curso universitário um saber que se obtém que não pode ser certificado pelo facto de se ter exercido um cargo. Ainda que esse mesmo saber possa ser comprovado por algum tipo de produção teórica ou trabalho prático. De facto, se um professor pode aprovar um aluno numa cadeira com base na produção de um trabalho de dez páginas, não há razão para não fazer a mesma coisa a alguém que, por exemplo, tenha escrito um livro na mesma área científica - ainda que não tenha frequentado nenhuma aula.
Posto isto, o caso de Relvas (PIM!) e da Lusófona é o exemplo de tudo o que um estudante e uma universidade não podem ser. Penso que poucos princípios bastam para que uma equivalência possa ser dada com lisura, mas entre eles deve constar a) a necessidade que seja o professor titular da cadeira a avaliar se o aluno possui as competências que todos os outros têm de demonstrar, b) o trabalho concreto avaliado c) a justificação, pelo mesmo professor, da avaliação feita
2. Relvas (PIM!) não é apenas uma vergonha para o seu amigo Passos Coelho, para o PSD ou para o Governo - o que me deixaria sem cuidado.
Relvas (PIM!) é um embaraço para os políticos e para a democracia que permite tais figurões. Esta é a única razão por que seria conveniente que alguém o raspasse rapidamente da sola do sapato antes que faça maiores estragos. (jvmalheiros@gmail.com)

terça-feira, julho 10, 2012

Estará o Tribunal Constitucional a apelar à revolta armada?

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 10 de Julho de 2012
Crónica 27/2012

Gostávamos de imaginar que havia algures, no sistema judicial, uma reserva de direito que se preocupava de facto com a justiça 

Não sei se o acórdão do Tribunal Constitucional relativo à suspensão dos subsídios de férias e de Natal para a Função Pública tem paralelo na história recente da jurisprudência, mas é provável que tenha. O direito, que tanto prezamos quando imaginamos o que ele deve e pode ser, tem-nos brindado com as maiores aberrações da história, da escravatura ao apartheid e da lapidação das mulheres violadas ao extermínio étnico. E, sem chegar a esses extremos, a administração da justiça em Portugal presenteia-nos todos os dias com histórias de ignomínia capazes de fazer corar de vergonha um proxeneta. São os pequenos crimes (roubo de um chocolate, de um shampoo) punidos com severidade. São as crianças maltratadas e institucionalizadas que são “reinseridas na família biológica” para poderem ser maltratadas de novo, em nome de um biologismo que poderíamos classificar como típico de um neanderthal, se não tivessem sido recentemente descobertas provas de um temperamento artístico nos neanderhtais que revelam uma elevação espiritual difícil de encontrar nas decisões dos tribunais. São os poderosos que se escapam sistematicamente das malhas da justiça, sempre na maior legalidade, sempre em nome das garantias fundamentais que são todos os dias negadas à maioria da população. São os pequenos contribuintes que vêem os seus bens penhorados e as suas casas confiscadas devido a pequenas dívidas ao fisco, enquanto os grandes devedores vêem as suas dívidas perdoadas ou assumidas por um banco que será resgatado graças aos impostos pagos pelos mesmos pequenos contribuintes. A lista é infindável, mas há suficientes exemplos a saírem nos jornais para nos lembrar que existe uma justiça para os ricos e poderosos e outra para os que vivem do seu trabalho e não estão nas graças dos partidos do chamado "arco do poder". Por isso, parece-me provável que existam muitas sentenças e muitos acórdãos do calibre deste que agora saiu das cabeças dos mais poderosos magistrados da nação.
É verdade que gostávamos de imaginar que havia algures, no sistema judicial, uma reserva de direito que se preocupava de facto com a justiça, uma reserva de direito preocupado com princípios tão antigos como a equidade, a liberdade, a separação de poderes, a decência, a dignidade, a coerência e a verdade e, ingenuamente, muitos de nós imaginámos que ela pudesse existir no Tribunal Constitucional. Mas parece que não é assim.
Penso que é possível encontrar bons e honestos argumentos para defender a constitucionalidade dos cortes dos subsídios aos funcionários públicos ou o seu contrário - por muito que a medida me pareça não apenas profundamente injusta mas também ditada  por uma lógica de destruição voluntária de direitos dos trabalhadores, que o actual Governo tem vindo a prosseguir de forma sistemática. Mas penso que, se se admitir a (falsa) "inevitabilidade" de cortar nos salários, é possível encontrar argumentos para defender este corte que o Governo fez ou, inversamente, para o considerar inconstitucional, como o TC fez, por discriminar negativamente os trabalhadores do Estado. A minha crítica ao TC não diz respeito a este facto.
O que não é possível é o TC considerar o corte inconstitucional mas admiti-lo mesmo assim até ao fim do ano, numa "suspensão da Constituição" na linha da suspensão da democracia que Ferreira Leite sugeriu e que o Governo tem vindo a pôr em prática. Com esta decisão, insustentável do ponto de vista do direito e da lógica, o TC não mete apenas a Constituição na gaveta, mas alinha no combate político em prol do Governo e ao lado do PSD e do CDS. Se se quisesse demonstrar a parcialidade do TC (o mesmo é dizer a sua inutilidade), não se podia fazer melhor.
Mas também é possível que isto não seja assim. Outra leitura possível é que o TC tenha plena consciência de que a situação bateu no fundo, que a descredibilização das chamadas "instituicões democráticas" é total, que a legitimidade do Governo é insustentável, que as eleições já não conseguem traduzir a vontade do povo nem os partidos querem interpretá-la e assumi-la.
Talvez o TC tenha querido mostrar ao povo como é infundada a sua fé no sistema, como é disparatada a sua esperança de que alguma instância estatal assuma a defesa da justiça e da comunidade. Talvez o TC tenha querido enviar um sinal ao povo, demonstrar-lhe que não existe nenhum obstáculo entre o presente e a barbárie, que a lei não é uma defesa contra a arbitrariedade. Talvez o TC tenha querido mostrar que as "instituicões democráticas" não conseguem defender os direitos dos cidadãos e que a revolta armada  é a única solução. Talvez o acórdão pretenda apenas mostrar aos cidadãos que a via da legalidade democrática como forma de gerar alternativas políticas está esgotada. Se for assim, o acórdão tem lógica. Poderemos discordar dele, mas a coerência entre o objectivo e o instrumento será total. (jvmalheiros@gmail.com)

terça-feira, julho 03, 2012

Na fila do supermercado

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 3 de Julho de 2012
Crónica 26/2012

Uma fila de supermercado é uma colecção de histórias e há umas que parecem mais prometedoras do que outras

Escolho a fila do supermercado de acordo com os critérios consabidos. A mais curta, mas não apenas a mais curta em pessoas. Depende da quantidade de compras que as pessoas tenham nos cestos e nos carrinhos. É preciso escolher a fila com menor número de compras. Mas não apenas em número absoluto, porque o dono do restaurante com o carrinho cheio de caixas de minis pode despachar-se rapidamente (“São 32 embalagens de dez”.) A variedade das compras também conta. E a determinação dos compradores - um factor muitas vezes ignorado. Há quem esteja na bicha com o firme propósito de se despachar rapidamente e sair dali para fora. E há quem esteja na bicha mas olhe ainda em volta, para trás, consulte a lista de compras, passeie os olhos pelas prateleiras com saudades. São os shopping lovers. São os que nos podem dizer com um sorriso, depois de ter despejado o carrinho no tapete rolante mesmo à nossa frente “Importa-se só queu vá ali buscar uma coisa no estantinho?” A palavra balbuciar foi inventada para estas circunstâncias. Balbuciamos qualquer coisa ininteligível que nós próprios não sabemos o que é. Talvez seja “Claro que não me importo, faça favor. Não tenho pressa nenhuma.” ou “Mas por que raio é que não se lembrou disso antes de se vir pôr na bicha?” mas que soa como “hahhm..” E, claro, fugir das famílias. As famílias podem ser perigosas e é preciso detectá-las. São como as passagens de nível onde um comboio pode sempre esconder outro. Aquela mulher só com um shampoo na mão e um ar alucinado pode no último minuto ser abalroada pelo resto da família com dois carrinhos cheios. É preciso intuição. Não vale a pena dizer nada. A mulher do shampoo estava a “guardar o lugar”. Nem é pelos dois carrinhos de compras. É pelo potencial de altercação familiar. Tudo o que se comprou, o que alguém se esqueceu de comprar e o que alguém não comprou na semana passada quando estava mais barato pode ser o enredo de um choque conjugal surdo. As crianças também. Pode ser quotidiano a mais para uma ida ao supermercado. Tenho nos meus cadernos notas para vários romances que foram conseguidas só a ouvir as famílias à minha frente na fila do supermercado. Ah, e claro, é preciso ver se não existe já um incidente em curso na caixa. Se a senhora da caixa parece descontraída e olha para as unhas e o cliente à sua frente olha para o ar, é porque estão à espera da supervisora para ela enfiar uma chave e teclar um código na caixa registadora e anular uma operação com os gestos treinados de um instrutor dos Comandos que mostra como se monta e desmonta uma AK47. É melhor escolher uma caixa onde a “caixa” pareça desvairada, passando mecanicamente pacotes pelo laser vermelho ting! e pesando fruta num ápice ting! e alisando códigos de barra com a unha ting! enquanto mete tudo em sacos, faz trocos, dobra talões, entrega cartões e passa recibos. Se a “caixa” tiver uma cara inexpressiva e o olhar no vácuo é provável que esteja numa boa bicha.

E depois há o gosto pessoal, claro. Um carrinho de supermercado é um livro aberto, uma janela escancarada sobre a vida alheia à frente dos nossos olhos, um convite ao voyeurismo, como uma corda com roupa a secar ou o livro que a pessoa lê à nossa frente no metro. Sei como é o olhar de condenação dos outros quando se tem no carrinho vinte garrafas de vinho e um litro de leite. Ou o olhar crítico que as mães responsáveis nos lançam quando só temos hamburguers, pacotes de batatas fritas, bolachas de chocolate e pastilhas elásticas (neste caso aconselho atirar para o carrinho um saco de maças Granny Smith para suavizar a imagem).

Uma fila de supermercado é uma colecção de histórias e há umas que parecem mais prometedoras do que outras. Mas nem todas são agradáveis. Nos últimos meses as filas de supermercado contam histórias tristes.

A fila que escolhi hoje é pequena. À minha frente está uma mulher de uns trinta ou quarenta anos, elegante, com um olhar vivaz e um sorriso inteligente (não, não é um critério, mas pode acontecer, pronto) que leva meia dúzia de compras na mão (critério). Está vestida com um tailleur saia-e-casaco e sapatos pretos de salto, formais, certamente por necessidade profissional. Pousa as compras no tapete e murmura qualquer coisa à empregada. Percebo que lhe pede para ir fazendo subtotais, à medida que vai registando as compras. Há vários iogurtes mas estão separados, em vez de estarem num conjunto de quatro, como na prateleira. A caixa passa várias compras e quando o subtotal atinge 3 euros e 73 cêntimos a cliente diz “está bem assim”. No tapete fica um iogurte natural e um pacote de bolachas da marca do supermercado que a caixa põe de lado num gesto rápido, numa pilha heteróclita onde há outros restos de compras. A mulher elegante paga os 3,73 euros com Multibanco.

Esta história é sobre uma mulher elegante de trinta ou quarenta anos, com um sorriso inteligente, que trabalha num sítio onde lhe exigem que se vista com alguma formalidade e que só tem quatro euros no banco. (jvmalheiros@gmail.com)