terça-feira, dezembro 11, 2012

Da meritocracia considerada como uma das belas-artes

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 11 de Dezembro de 2012
Crónica 49/2012

Há quem pense que o mérito é um critério tão bom que apenas devem gozar de direitos humanos as pessoas que os mereçam

A palavra é bonita: mérito. Ter mérito. Merecer. Há uma ideia de justiça, de bondosa racionalidade associada ao mérito, de exigência e de justa recompensa. Ou não fôssemos nós um país tradicionalmente cristão, onde nos ensinam que a vida deve ser um longo caminho para merecer a bem-aventurança celestial. Ter mérito é bom. Ter mérito é merecer e todos queremos merecer. Merecer é ser digno de alguma coisa. Conquistar o direito a alguma coisa. Tornar-se merecedor. E todos queremos ser dignos, conquistar direitos, tornar-nos merecedores. Ter mérito também é ter uma aptidão especial que se soube desenvolver com perseverança, um talento que conseguimos desenvolver para nos tornarmos melhores que os outros, para ganhar, para vencer. E todos queremos ser melhores, ter aptidões e talentos e vencer. Há uma ideia de competição no mérito, mas uma justa competição, feita de esforço somado a habilidade natural, feita de regras consensualmente aceites, de confrontos leais, de vitórias dignas, de recompensas merecidas. As medalhas são sempre de mérito.
A meritocracia tem uma história longa (ainda que a expressão tenha pouco mais de cinquenta anos) e uma história nobre. O conceito da meritocracia nasceu em oposição aos privilégios herdados da aristocracia e ao direito divino, aos direitos de sangue da família e da raça, ao favoritismo e ao nepotismo, aos poderes passados de pais para filhos, à exclusão de qualquer tipo de mérito ou justiça na distribuição da riqueza e de poder, à perpetuação de uma casta no exercício do poder. E foi uma coisa boa.
A primeira organização onde surgiu a preocupação em premiar o mérito, a competência, para escolher os seus dirigentes e não os privilégios de família ou a riqueza foi a administração públicaet pour cause. Sem uma escolha baseada no mérito, as castas dirigentes entregavam a administração das riquezas do Estado aos filhos e sobrinhos ou aos seus correligionários políticos com o resultado que se conhece: o sequestro do Estado por grupos sem escrúpulos (aquilo a que hoje se chama os “partidos do arco do poder”). Foi a meritocracia que impôs os concursos públicos na Administração Pública em substituição das cunhas, ainda que seja possível defender que a única coisa que mudou foi a mecânica da cunha (onde antes se escrevia “Se V.Exa. se quisesse interessar pelo meu sobrinho...” hoje sussura-se “Tu podias fazer um concurso para um rapaz lá da distrital...”).
Em termos simples, a meritocracia quer dizer apenas isto: se uma pessoa tiver qualidades excepcionais, ela poderá alcançar o topo da organização onde trabalha e o topo da sociedade onde vive, seja qual for a sua origem social. Parece bonito e louvável. E hoje, além da Administração Pública, há muitas organizações que se gabam de ser meritocracias, das Forças Armadas à Universidade, e outras tantas que são criticadas por não o serem.
A meritocracia tem um problema: tem implícita a ideia de que nem todos merecem. Há quem mereça e há quem não mereça. Há uma ideia de selecção, de recompensa dos mais aptos. Isto não seria um problema em si se soubéssemos definir e delimitar os campos onde o mérito deve ser um critério. É evidente que nem toda a gente merece ganhar uma medalha de ouro na maratona, nem toda a gente merece ser chefe de uma repartição de finanças e nem toda a gente merece ser coronel dos Comandos. O problema não é esse. O problema é que há quem pense que o mérito é um critério tão bom que ele deve ser estendido a todos os domínios, mesmo aos direitos humanos. Ou seja: há quem mereça ter direitos e quem não os mereça. Está bem que há quem lhes chame Humanos e Universais mas isso é secundário.
É esta a posição do neoliberalismo, que critica por esse facto políticas como o Rendimento Social de Inserção (pobres ignorantes e sem trabalho não merecem nada) e que considera que não só há cidadãos que não merecem emprego (não sabem fazer nada) como, se estiverem desempregados algum tempo, até deixam de merecer subsídio de desemprego, casa, tratamentos médicos ou alimentação e devem apenas ter acesso a tudo isso se alguém lho dispensar como esmola.
E esta é a fronteira onde a bela meritocracia se torna fascista.
A facilidade com que esta fronteira é cruzada pode constatar-se pela frequência com que podemos ouvir reputados professores universitários, com uma formação que sugeriria maior sensatez e um cargo que recomendaria maior humanidade, defender a transformação da sociedade portuguesa numa sociedade meritocrática e defender que o mérito seja o único critério de acesso a qualquer benesse que a sociedade disponibilize ao cidadão. Dar-se-ão conta de que foi esta a argumentação usada pelos nazis para defender a eutanásia dos deficientes, aqueles que tinham “uma vida que não merecia ser vivida”, uma vida sem mérito?
E dar-se-ão conta de como é tristemente cómico vê-los, a todos estes defensores da meritocracia e da excelência académica, beijar o anel de Miguel Relvas sempre que a ocasião se proporciona? (jvmalheiros@gmail.com)

2 comentários:

Anónimo disse...

Este seu texto é brilhante, parabéns.

Helder Sanches disse...

Parece-me uma leitura demasiado extremista. Criticar a meritocracia porque os neoliberais a estendem, por exemplo, ao domínio dos Direitos Humanos é como criticar os medicamentos porque alguém resolve tomar uma overdose enquanto deixa de comer e de beber água.