terça-feira, janeiro 29, 2013

Esquemas piramidais e luta de classes

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 29 de Janeiro de 2013
Crónica 4/2013

O maravilhoso “regresso aos mercados” não é senão mais um pedido de empréstimo que vai aumentar o endividamento

“Dívida! MÁ! MÁ!!! Dívida PFFFF! MÁ dívida, MÁ!!”
Deve-se dizer isto várias vezes com ar de grande nojo e repulsa, esfregando a dívida no focinho do cão e agitando-a de forma irritante de forma que ele associe para sempre a dívida a algo profundamente odioso. Não deixe o cão morder a dívida para que a frustração do animal aumente a sua agressividade. Ao fim de algumas semanas o efeito deve ser visível.


“Financiamento! BOM! BOM! Oh, financiamento lindo! BONITO! BONITO! Olha o regresso aos mercados, tão lindo!! BONITO! BONITO!” O processo deve ser idêntico ao anterior mas simétrico. Enquanto se mostra o financiamento, deve-se acarinhar o cão e mostrar uma intensa alegria. Deixe o cão brincar um pouco com o regresso aos mercados enquanto lhe coça a barriga e lhe acaricia a cabeça atrás das orelhas. Faça festinhas no regresso aos mercados e repita “AMIGO! AMIGO!”. Durante a brincadeira, dê uns biscoitos ao cão.


É assim que o Governo, os partidos da maioria, os media que repetem o que estes dizem (o que significa praticamente toda a televisão e a esmagadora maioria da restante imprensa) e uma parte considerável do PS nos têm tratado - e a estratégia tem resultado. Endividamento é mau! Regresso aos mercados é bom! E nós abanamos a cauda, sem perceber bem porquê e repetimos o mantra.


Mas, se pararmos para pensar um bocadinho, constatamos que este maravilhoso “regresso aos mercados”, que este vitorioso “acesso ao financiamento” não é senão mais um pedido de empréstimo... o que vai necessariamente aumentar o endividamento. E, o que é mais preocupante, que vai provavelmente substituir dúvida antiga, a juro mais baixo, por dívida actual, a juro mais alto.


Qual é a vantagem então deste “regresso aos mercados” e por que é que tanta gente embandeira em arco? A vantagem é, antes de mais, uma vitória de propaganda. Seria uma excelente notícia se os mercados, apesar da sua sacanice intrínseca e do seu conhecido disfuncionamento, considerassem que Portugal oferecia condições de segurança para fazer investimentos. Isso quereria dizer que se esperava que a economia portuguesa tivesse um crescimento espectacular e isso seria bom. Mas, na realidade, nada permite alimentar a ideia de que os mercados pensem isto. O “regresso aos mercados” foi possível, como sabemos, porque o BCE garantiu em última instância a dívida contraída e, apesar disso, vamos ter de pagar por este maravilhoso regresso aos mercados juros superiores aos que nos cobra o maléfico FMI. Ou seja: os mercados desconfiam.

Em teoria, é evidente que é melhor poder pedir dinheiro emprestado a várias entidades do que a uma só. Se o mercado funcionasse, isso quereria dizer que poderíamos regatear e obter melhores condições nos empréstimos. Mas como “os mercados” sabem que precisamos de ir “aos mercados” para fingir que está tudo bem, só conseguimos comprar dinheiro mais caro.


O que o Governo conseguiu fazer com o regresso aos mercados foi empurrar a dívida para a frente com a barriga (sim, aquilo que acusa o governo Sócrates e o PS em geral de ter feito) e espera poder fazê-lo ainda mais vendendo dívida a mais longo prazo nas futuras emissões. Trata-se - como uma grande parte do jogo da finança nos últimos anos - de uma espécie de esquema piramidal: contrair dívida futura para pagar dívida de hoje, ficar a dever cada vez mais e esperar um milagre um dia para poder pagar tudo. O regresso aos mercados é uma boa notícia para o Governo, mas apenas porque lhe permite realizar o seu programa ideológico: eternizar o programa de “austeridade”, de “ajustamento”, de empobrecimento, de escravização da população portuguesa em favor dos credores. A verdade insofismável é que devemos cada vez mais, a nossa economia está cada vez mais enfraquecida, as pessoas cada vez mais pobres, a sociedade cada vez mais desigual.


O regresso aos mercados também permite aos bancos a mesma fuga para a frente - contrair dívida a pagar cada vez mais tarde e usar o crédito caro para escravizar mais umas quantas empresas e acentuar o seu carácter rentista. Claro que, pelo caminho, é possível que umas quantas empresas consigam financiamento necessário que até agora lhes estava vedado - e isso é bom. Mas é difícil ver nesta operação vantagens para a população em geral.


E isto é uma das conclusões evidentes de toda esta salganhada em que nos meteram. Governo e partidos do Governo e media continuam a falar destas operações como se fossem boas para “o país” e para “os portugueses”, escamoteando que os interesses dos bancos ou dos patrões não são de forma alguma os mesmos dos trabalhadores e da população em geral. Votado ao ostracismo o conceito de luta de classes, apenas mencionado com rubor, os políticos persistem em esconder o facto insofismável que existem interesses opostos nas diferentes classes - como a crescente desigualdade criada pela crise mostra à evidência. O desemprego crescente que afecta uma grande parte da população tem como contrapartida o aumento da venda de Lamborghinis noutra camada restrita da população. O regresso aos mercados não é igual para todos. (jvmalheiros@gmail.com)

terça-feira, janeiro 22, 2013

Valsa macabra no salão dos espelhos

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 22 de Janeiro de 2013
Crónica 3/2013


Uma discussão de dois dias, à porta fechada, com acesso por convite e uma imprensa submetida a exame prévio

Começou por ser a “refundação do memorando de entendimento”. A expressão não quer dizer absolutamente nada (não se refunda um documento) mas foi lançada pelo primeiro-ministro num discurso partidário e corresponde ao perfil do sujeito: letras escassas, empenho em utilizar expressões pomposas que possam dar aparência de profundidade de pensamento e uma predilecção por frases que permitam diferentes interpretações para defesa futura, enunciadas com uns maxilares tão cerrados que receio que comecem a causar-lhe problemas nos molares. O mundo político e a sociedade em geral lançou-se em peso na exegese do discurso petropassicunículo e concluiu que a) o homem queria dizer “refundação do Estado” mas não lhe tinha chegado a língua b) o homem queria dizer “refundação do Estado” mas queria poder dizer que não tinha dito c) o homem queria dizer “reforma do Estado” mas achou que isso não lhe dava um ar de estadista porque os estadistas são gajos que fundam e refundam e não apenas gajos que reformam d) o homem queria mesmo dizer “refundação do memorando” e só ele e Deus Nosso Senhor sabiam o que isso queria dizer.


A expressão não merecia o esforço de análise. O que PPC queria dizer, como aliás era claro no mesmo discurso, era cortar drasticamente os gastos do Estado, sem olhar a meios, custe o que custar, mas apenas nas áreas sociais e nunca nos benefícios dados ao 1% do topo, para agradar aos credores e eternizar a dependência de Portugal em relação ao sistema financeiro. Considerando PPC que o Memorando de Entendimento assinado com a troika de credores é a Nova Constituição do Novo Estado, foi natural a confusão entre “memorando” e “Estado”. A intenção de PPC era deixar bem claro que não pretendia em caso algum discutir ou renegociar o memorando mas sim reforçá-lo, aumentá-lo, eternizá-lo. “Refundação” foi a palavra que lhe pareceu mais patrícia, depois de ter considerado “aprofundação” e “reforcionamento”, sobre as quais teve dúvidas que o Google não conseguiu esclarecer.


Rapidamente, porém, a “refundação do memorando” passou a “reforma do Estado” e “reforma do Estado Social”, sendo prometido que haveria sobre esta questão um amplo debate nacional, envolvendo toda a sociedade, sem ideias preconcebidas, onde todas as sugestões seriam bem-vindas, com total transparência e participação dos cidadãos, de forma a construir um amplo consenso nacional.


E foi exactamente assim que o Governo fez, cumprindo escrupulosamente as promessas repetidas pelo PM e pelos dirigentes da maioria, através de uma reunião organizada no Palácio Foz por uma ex-dirigente do PSD (o facto de se tratar de uma dirigente “ex” é, em si, prova da independência de todo o processo).


As únicas diferenças consistiram no facto de a) não ter havido tempo para um debate amplo porque era preciso acabar a discussão em Fevereiro, que está aí à porta b) não ter havido possibilidade de um debate nacional, que seria demasiado complicado organizar atendendo ao pouco tempo disponível e c) não ter havido tempo para debate porque um debate demora imenso tempo e nunca se sabe o que é que vai dar.


Mas, pelo menos, o amplo debate nacional envolveu uma parte da sociedade civil, tendo sido convidadas algumas dezenas de pessoas amigas do Governo para ir debater as ideias do Governo segundo as regras definidas pelo Governo.


Quanto a ideias preconcebidas o debate esteve delas totalmente isento, com a excepção da conclusão que era preciso encolher o Estado e pô-lo ao serviço do serviço da dívida  e cortar desde já 4.000 milhões de euros na despesa - mas aqui tratou-se de mero realismo.
Pelo menos, a reunião esteve aberta a todas as correntes de opinião, excepto aquelas que, por se situarem fora da esfera de influência dos actuais dirigentes do PSD, não valia a pena considerar. A reunião era aliás totalmente aberta a quem quisesse participar, desde que tivesse sido previamente convidado pela organização.


A transparência foi outra característica deste amplo debate nacional, se exceptuarmos o facto de a imprensa ter sido impedida de o relatar livremente, de não ter havido a transmissão directa das discussões que já se tornou habitual nas reuniões académicas e políticas e do facto de ter sido imposta unilateralmente uma regra que efectivamente impôs o exame prévio à imprensa. 


(Mensagem privada para enviar pelo Facebook esta noite: “Cara Sofia Galvão: A Chatham House Rule pode ser usada em certas circunstâncias, mas não nestas. Nem tudo é matéria de amimparecemq, sei lá. Há coisas que é conveniente saber. Cumprimentos. jvm”)
Ainda que pouco se saiba do que lá se passou, sabemos que o evento foi um êxito. Carlos Moedas apareceu repetidamente na televisão, resplandescente no meio nos dourados e dos espelhos. Pedro Passos Coelho e o próprio Moedas foram filmados e citados, tudo sempre com a devida autorização prévia. Estava tudo lindíssimo e eles estavam ambos elegantíssimos. Naquele décor setecentista, lembraram-me imenso a Maria Antonieta, com o seu fatinho de pastora. (jvmalheiros@gmail.com)

terça-feira, janeiro 15, 2013

O fundo

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 15 de Janeiro de 2013
Crónica 2/2013


O FMI não é apenas um credor de Portugal. É também uma potência ocupante do país.

O relatório é mau. Carlos Moedas achou-o “muito bem feito”. Pedro Passos Coelho achou-o também “muito bem feito”, tal como tinha feito o “seu” secretário de Estado (algumas testemunhas dizem que os olhos de Moedas se cobriram de uma névoa enternecida quando o primeiro-ministro lhe chamou “meu”). António Lobo Xavier achou-o de “enorme utilidade”, "bastante comedido e bastante equilibrado". Mas todos sabemos o que isso quer dizer. Quer dizer, apenas, que o relatório diz o que eles queriam dizer e lhes dá o pretexto de dizer com menos risco do que se o dissessem sem esta camada protectora.


O relatório é mau porque tem erros de facto, que têm sido apontados por vários especialistas, o que é lamentável, mas é mau principalmente porque escamoteia os dados que não servem as conclusões onde o FMI quer chegar e porque toma como verdades inquestionáveis os seus próprios preconceitos. É “desonesto”, como disse o reitor da Universidade de Lisboa, António Nóvoa. “É uma aldrabice”, como disse o socialista António Costa. Um relatório que se pretende sério deveria ter um particular escrúpulo na escolha e na validação dos dados onde baseia as suas propostas. Deveria ter procurado diversificar as suas fontes, contactando organizações diversas. Os seus dados deveriam ser inquestionáveis ou pelo menos aceitáveis, ainda que as propostas fossem polémicas. Mas o FMI sabia que, neste caso, não valia a pena o esforço. O que o Governo pretendia quando encomendou este estudo não era um documento com um mínimo de qualidade técnica, mas um documento ideológico que defendesse a destruição do Estado com uma sobrecapa que dissesse FMI. O FMI não deverá ter levantado qualquer objecção. Imagino o técnico do FMI que recebeu a encomenda de Pedro Passos Coelho (“Oxalá todos os Governos nos pedissem isto!” pensou).


Foi por isso que tiveram o escrupuloso cuidado de não contactar alguém que pudesse pôr em causa os seus dados, os seus preconceitos, as suas conclusões.


Sabem a anedota onde se pergunta a um engenheiro, a um matemático e a um gestor quanto é dois mais dois? O engenheiro diz “Quatro.”, o matemático pergunta “Em que base?” e o gestor pede uns dias para pensar, regressa passado uma semana e pergunta “A que resultado é que queriam chegar?”. O FMI e o Governo são os gestores da anedota. São os batoteiros do jogo.


Que o relatório não é sério, já sabemos. Que foi encomendado pelo Governo com uma conclusão prévia, já sabemos. Que o FMI diz ter como exclusiva preocupação a estabilidade financeira mas que é, de facto, uma organização ponta-de-lança do neoliberalismo desenfreado, já sabemos (é verdade que nem todos os economistas do FMI são fanáticos de direita, mas não são eles que definem a estratégia da organização, da mesma forma que a inscrição de Heidegger no Partido Nazi não o transformou num clube de reflexão filosófica). Que as receitas preconizadas pelo FMI defendem a finança e destroem as pessoas, já sabemos. Que o FMI acha a democracia uma praga social a erradicar, já sabemos. Que a maioria das medidas preconizadas no documento já tinham sido avançadas pelos lacaios mais servis do capital da nossa praça (peço desculpa pelo cliché, mas estou a tentar ser rigoroso), já sabemos. Apesar disso, há imensa gente à direita a dizer que não se deve perder esta oportunidade de “discutir” o Estado e as suas funções como se houvesse algo para discutir e como se este documento não estivesse envenenado pela sua génese política e pelo processo da sua produção.


Este documento, muito para além dos erros técnicos que possa conter (que Lobo Xavier considera “detalhes” e que o inefável Ferreira Machado, director da escola de negócios da Nova, considera irrelevantes) possui o pequeno problema de ter sido produzido por uma entidade que é não apenas parte interessada (um dos principais credores de Portugal) como uma potência ocupante do país.


Portugal está a ser não apenas objecto de uma intervenção mas de uma ocupação, por parte de uma entidade colectiva que, sob o pretexto da insolvência do Estado português, sequestrou o Estado democrático e procede à pilhagem sistemática das riquezas das populações, com a conivência entusiástica do PSD e a conivência recalcitrante do CDS.
Trata-se de dois partidos que, numa situação de emergência nacional, de dependência extrema dos credores internacionais, decidiram nem sequer tentar defender os interesses nacionais - em Portugal, na União Europeia ou noutros fóruns - e alinharam de armas e bagagens do lado do ocupante, colocando acima de tudo a satisfação das exigências desse ocupante, acima da lei e dos direitos, mesmo que para tal fosse necessário sacrificar a vida das populações, os serviços públicos construídos nas últimas décadas e a própria democracia. Chama-se a isto colaboracionismo.


O PSD e o CDS são colaboracionistas activos, ao serviço da execução da política da potência ocupante e da liquidação do Estado português. (jvmalheiros@gmail.com)

terça-feira, janeiro 08, 2013

Presente mais que imperfeito com futuro condicional


por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 8 de Janeiro de 2013
Crónica 1/2013

Quando Vítor Gaspar desaparecer numa nuvem de fumo verde vamos perceber enfim que ele é o Joker do Batman, o psicopata apaixonado por charadas

“Me dijeron que en el reino del revés
nadie baila con los pies.
Que un ladrón es vigilante y otro es juez
y que dos y dos son tres.
“El Reino del Revés”
María Elena Walsh
Na política portuguesa o futuro deixou de existir. Claro que existirá quando lá chegarmos, mas deixou de existir como futuro, como lugar para onde nos podemos projectar, como um tempo que sucede ao presente, como um tempo para onde podemos fazer planos, sonhar e ter esperança. Estamos aprisionados no presente, no interior de um daqueles pisa-papéis de vidro maciço, com bolinhas coloridas a flutuar à nossa volta, de olhos bem abertos mas com a mesma impossibilidade de olhar para o dia de amanhã que temos de olhar o Big Bang nos olhos.

O horizonte do acontecimento para além do qual nada é sequer remotamente perscrutável é hoje à meia-noite. É todos os dias à meia-noite.

Claro que há coisas que imaginamos que vão acontecer, como uma decisão do Tribunal Constitucional sobre o Orçamento, mas nada do que imaginamos que irá acontecer tem a mínima relação com as leis da Física ou do Direito ou com os princípios da Política ou da Ética. Nada é minimamente previsível, nada decorre do que queremos hoje e nada se inscreve na racionalidade. Nada desse futuro do outro lado do espelho decorre da vontade do povo ou do interesse da maioria ou dos programas eleitorais e, por isso, todos os exercícios de previsão com base na lógica e na democracia se mostram inúteis. Tudo o que possamos imaginar é acto de fé, superstição, especulação metafísica ou ficção científica. Regressámos à Idade Média, ao tempo em que tudo podia acontecer porque não havia nenhum princípio científico a respeitar, onde tudo era ignorância e magia. O Tribunal Constitucional pode levar uma semana ou seis meses a falar que ninguém se surpreenderá. E quando o Tribunal Constitucional falar pode dizer tudo e o seu contrário, incluindo que o OE é inconstitucional mas que pode seguir o seu curso, a bem da Nação. O Direito não permite essa decisão? A Política não a aconselha? Talvez, mas a História sabe que ela já aconteceu e a História repete-se.

Nesse futuro imperscrutável o FMI pode dizer que a austeridade não funciona mas é para continuar porque sim. O PR pode dizer que a austeridade nos matará a todos mas é para continuar para evitar uma crise política. O PS pode dizer que esta austeridade é insuportável e que um dia vai fazer uma birra, olá se vai!...

Nesse futuro insondável e irracional nem a lei da gravitação universal permite fazer previsões. O poder político já não atrai, mas repele. O Governo não quer o poder e a oposição também não, o PR ainda menos. Ou talvez não, não se percebe. E o Parlamento só passa espectáculos de circo, com Luís Montenegro, esplendoroso no seu dólmen vermelho e dragonas douradas, gordo como uma rã que quer ser tão gorda como um boi, a rir de satisfação em cima do seu elefante, enquanto Assunção Esteves, alheada do mundo, linda com a sua sombrinha nova, faz piruetas sobre o arame.

Nesse mundo futuro é impossível perceber se os impostos vão deixar dinheiro suficiente às famílias para elas comerem e poderem continuar a pagar impostos ou se Vítor Gaspar é mesmo o escorpião da fábula e nos vai obrigar a beber até à última gota a curva de Laffer (não é Laughter?) desatando a rir no fim, quando desaparecer numa nuvem de fumo verde e todos percebermos enfim que ele é o Joker do Batman, o psicopata apaixonado por charadas.

Neste futuro imperscrutável há umas escassíssimas certezas, que qualquer cartomante de feira pode garantir: os off-shores vão continuar a mandar, o PSD e o CDS a obedecer, Seguro não saberá o que pensar e Relvas vai-se safar. Tudo o resto é nebuloso. Mas sabemos que os impostos que pagamos hoje não têm nada a ver com os serviços que o Estado fornece no futuro e que a formação que um jovem adquire hoje não lhe garante nada no futuro.

Nesse futuro insondável tudo será como no Reino del Revés de uma canção da minha infância, com a diferença de que viveremos lá. Ou, pelo menos, morreremos lá.

Tal como depois da Revolução Francesa o futuro era logo ali (“lundi matin”, na expressão luminosa de George Steiner), na Revolução Portuguesa neoliberal o futuro é “nunca mais”. No Reino del Revés onde estamos a entrar, o ministério da Saúde diz-nos para não adoecer para não gastarmos dinheiro, Vítor Gaspar corre de cassetete na mão atrás dos feirantes para que passem facturas enquanto enfia rolos de dinheiro nos bolsos dos banqueiros e accionistas do Banif, do BPN, do BCP, do BPI, de todos os bancos.

A única vantagem deste cenário é que, como o futuro não tem nada a ver com o presente, não há nenhuma razão para sermos bem-comportados e esperarmos uma recompensa pelos sacrifícios. O futuro já está decidido pelo Joker e o Joker faz sempre batota. Resta-nos, para não perder a dignidade, perder a paciência. (jvmalheiros@gmail.com)