terça-feira, abril 30, 2013

Será que podemos confiar na alternativa do PS?

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 30 de Abril de 2013
Crónica 16/2013

As facções do PS estão disponíveis para esquecer diferenças desde que isso as leve ao poder

Alguém faz uma ideia, com um mínimo de consistência, do que seria um Governo do Partido Socialista? Alguém sabe quais seriam as suas apostas estratégicas, o que faria às actuais medidas de “austeridade”, quais seriam as suas medidas para gerir a dívida, como garantiria o financiamento à economia? Alguém imagina quais seriam as primeiras medidas de um governo PS? Que “reformas estruturais” levaria a cabo, como e quando? Alguém sabe o que faria com as PPP? Que apoios sociais seriam reactivados ou alargados? Que papel seria dado ao Estado no estímulo da Economia? Alguém imagina como tentaria renegociar o “memorando de entendimento”, com que argumentos, com que objectivos, com que tenacidade, com que aliados? Alguém sabe que reformas tentaria levar a cabo na União Europeia (e na eurolândia) e através de que alianças? Alguém sabe se proporia um aumento do salário mínimo, de quanto e quando? Que tipo de relação manteria com os outros partidos? Que relações teria com a banca? O que faria na Educação, na Saúde, na Segurança Social? Seria um Governo à Sócrates? Mais austeritário, mais dialogante? Mais à esquerda, mais à direita?

O PS diria que tem respondido cabalmente a todas estas perguntas nos últimos meses, que tem no seu site propostas concretas para sair da crise, que o seu secretário-geral apresentou no último Congresso medidas que foram entusiasticamente ratificadas... e, no entanto, as questões mantêm-se, porque muitas das promessas do PS são declarações eleitorais sem substância (“reduzir o desemprego jovem para metade até 2020”), muitas não têm quantificação que permita conhecer o seu impacto real, outras foram sendo suavizadas ao longo do tempo (a “reposição do IVA de 13% na restauração” aparece hoje como uma discreta “redução do IVA da restauração”), a esmagadora maioria das medidas não possui um campeão credível no próprio seio do partido e, acima de tudo isto, ninguém sabe se o PS não viria invocar a insupeitada gravidade da situação interna, os compromissos internacionais ou a necessidade de consenso nacional para esquecer ou alterar as suas promessas.

O PS tem, como disse Sérgio Sousa Pinto no congresso de Santa Maria da Feira, um problema de credibilidade.

É difícil ter alguma ideia do que faria um governo do PS quando este critica a troika mas lhe jura amor eterno, quando se proclama como alternativa ao actual governo mas reage com coqueteria perante os secretos gestos de sedução do CDS. E é difícil imaginar uma vontade séria de resolver os profundos problemas do país quando vemos um congresso que prefere esconder as divisões reais e fugir ao debate de ideias para não prejudicar a possibilidade de aceder ao poder. A infelicíssima frase de António Costa, “juntos somos imbatíveis”, significa apenas, traduzida em bom português, que as facções do PS estão disponíveis para esquecer diferenças de opinião desde que isso as leve ao poder. Poder para fazer o quê? Isso parece ser indiferente. Mas não seria possível encontrar uma plataforma de acção política, progressista, credível, anti-austeritária e eleitoralmente ganhadora, que reunisse todas as facções? Possivelmente sim, mas o PS de Seguro, de António Costa e de Francisco Assis não quis correr o risco da discussão pública e do compromisso que ela acarretaria. E isso é um péssimo sinal.

Num momento como o actual, onde os portugueses são ameaçados pela pobreza, onde o futuro de tudo o que construíram está em risco, incluindo a sua família, a independência nacional e a União Europeia, num momento onde até a democracia e a paz se vêem ameaçadas, os portugueses precisam de política a sério e não de marketing, precisam de lideranças capazes de falar verdade e de correr riscos, de propostas políticas claras e não de negociatas clandestinas, de justiça social e não de defesa dos privilégios, de democracia e não de oligarquias, de iniciativa na Europa e não de servilismo. A escolha é clara, mas o PS continua a manter o gosto por ter um pé em cada barco. Só que hoje nenhum dos barcos sabe para onde vai e exige-se imaginação para inventar soluções e capacidade para correr riscos - algo a que o PS se tornou figadalmente alérgico.


Seguro espera que os eleitores votem no PS depois de terem experimentado o PSD, como alguém muda de marca de água, por tédio ou por curiosidade, só porque se cansaram da outra. Espera que votem PS quer este faça alianças à direita ou à esquerda, só porque o PS se chama PS, mas esquece-se de que, para um número crescente de cidadãos, a política deixou de ser uma escolha indiferente para ser uma questão de vida ou de morte. Os portugueses estão mais exigentes porque estão mais necessitados.

O PS é hoje fundamental para uma solução governativa de esquerda, mas é necessário que o PS escolha as suas causas e que esteja disposto a lutar por elas, que se comprometa e que corra riscos. O crescimento anémico das intenções de voto no PS no actual contexto, onde seria de esperar que a oposição sofresse um boom, é uma prova disso. Um partido que apenas quer jogar pelo seguro, está condenado a desaparecer. (jvmalheiros@gmail.com)

terça-feira, abril 23, 2013

De onde vem esta moda de trabalhar de borla para o Governo?

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 23 de Abril de 2013
Crónica 15/2013

Que responsabilidade assume uma pessoa que trabalha de borla para o Governo?

O jovem empresário Miguel Gonçalves, a escolha de Miguel Relvas para “embaixador” do programa Impulso Jovem, que se tornou famoso pela retórica tele-evangelista, aceitou este trabalho sem auferir qualquer remuneração. Numa entrevista dada ao jornal i, Gonçalves diz que preferiu “não ser pago para manter a sua absoluta e integral independência”.

Mas, muito antes disso e de forma muito mais gravosa, já os membros da Comissão para a Reforma do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas, criada pelo Governo na dependência da secretaria de Estado dos Assuntos Fiscais e presidida pelo advogado António Lobo Xavier, tinham renunciado “a qualquer tipo de remuneração pelos trabalhos realizados no âmbito desta comissão".

Nas suas variantes, o que estas pessoas pretendem com a sua aparente generosidade é mostrar que são pessoas honestas e que não vão trabalhar para o Governo por ganância pessoal. No entanto, o resultado é de eficácia duvidosa, já que é lícito que, na ausência de um salário, os portugueses fantasiem sobre os benefícios que estas pessoas pensam obter com a sua contribuição, por muito injustas que sejam essas conjecturas.
A moda surpreende, desde logo, porque a esmagadora maioria dos portugueses não poderia aceitar um trabalho sem remuneração - e, se uma crónica semanal pode representar apenas umas horas de trabalho (José Sócrates também não quis ser pago pela RTP), é evidente que a reforma do IRC ou a promoção de um programa de emprego jovem deve aproximar-se de uma ocupação a tempo integral. Mas choca ainda mais do que surpreende porque, por trás desta atitude aparentemente moral e louvável, espreitam conceitos profundamente perniciosos e anti-sociais. Antes de mais, a ideia de que é normal que o trabalho das pessoas não seja pago e de que existe no simples facto de fazer um favor ao poder uma remuneração suficiente. É evidente que a ideia agrada ao Governo, que já admitiu que gostaria de baixar o salário mínimo, que considera que os salários portugueses são demasiado altos e a causa de todos os males que nos atingem e que fez do empobrecimento generalizado o objectivo da sua política financeira. Mas um mínimo de pudor aconselharia a não apresentar como exemplar o facto de que há quem esteja ansioso por trabalhar de borla para o Governo.

Outra ideia perniciosa é a de que é normal que o Estado recorra, para a realização de algo que é uma sua função essencial, ao trabalho voluntário de outrem e de que a “sociedade civil” está disponível para o fazer de cara alegre. De facto, basta ouvir o saltitante ministro da Solidariedade e da Segurança Social, Pedro Mota Soares, para perceber como a estratégia da transferência das responsabilidades de solidariedade do Estado para as mãos das organizações de caridade privadas e a substituição da justiça pela esmola são traves-mestras da política governamental, no âmbito da sua campanha de destruição do Estado.

Mas há outras razões para que a suposta poupança feita com estas “ofertas” seja uma péssima ideia para o Estado. Qual é a responsabilidade que uma pessoa que se oferece para trabalhar de borla para o Estado assume? Qual é a obrigação que tem? Estará obrigada a refazer ou  corrigir o seu trabalho caso existam erros ou lacunas ou novos requisitos? Que contrato a obriga?

É evidente que se espera de quem integra uma comissão de reforma do fisco uma enorme disponibilidade e assunção de responsabilidades. Mas é evidente que nem essa disponibilidade nem essa assunção de responsabilidades existirá por parte de uma comissão de voluntários a trabalhar de borla.

Mas há ainda outra razão mais grave. No caso da referida comissão do IRC, há membros - começando pelo seu presidente, como aliás foi atempadamente notado por Ana Drago, do Bloco de Esquerda - que trabalham profissionalmente como consultores fiscais e que, nessa qualidade, estão naturalmente ao serviço de grandes empresas. Que o Governo aceite sem problemas que estas pessoas sejam pagas por essas empresas enquanto trabalham de borla para o Estado e que não tenha dúvidas de que defenderão com uma firmeza férrea os interesses do Estado na reforma fiscal é um admirável acto de fé. E revela uma desmedida confiança na capacidade dos membros da comissão dirimirem os eventuais conflitos de interesse que surjam na sua consciência.


No domínio do trabalho político gracioso há nos Estados Unidos uma tradição secular: profissionais de reconhecido mérito e sem necessidades materiais oferecem, uma vez abandonada a sua actividade profissional, alguns meses ou anos de trabalho ao Estado - como embaixadores plenipotenciários, enviados especiais, presidindo a comissões, etc. - em troca de uma remuneração simbólica. Chamam-lhes os “dollar a year men”. Mas essa contribuição deve ser dada quando já não possam existir conflitos de interesse e não com a esperança de capitalizar a posteriori os conhecimentos e a influência obtida nesses lugares. Podia ser uma ideia. (jvmalheiros@gmail.com)

terça-feira, abril 16, 2013

A academia subserviente, obediente, medrosa e reaccionária

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 16 de Abril de 2013
Crónica 14/2013

É lamentável que o CRUP continue a não saber interpretar as suas responsabilidades

A semana passada foi marcada por um raro gesto de dignidade cívica, no meio da maré fétida que invadiu a actividade política e a vida das instituições públicas. Sintomaticamente, o gesto foi rapidamente submergido pela avalanche dos despejos quotidianos dos servidores obedientes do Governo, mas a sua existência merece ser notada.

O reitor da Universidade de Lisboa, António Sampaio da Nóvoa, num comunicado publicado no site da reitoria, reagiu ao despacho de Vítor Gaspar onde este congelou a actividade do Estado como retaliação contra o chumbo pelo Tribunal Constitucional das medidas inconstitucionais contidas no Orçamento de Estado para 2013. Que Vítor Gaspar não tem bom perder já se sabe, que tem reduzidos escrúpulos é evidente, que considera que o Estado deve ser mínimo e apenas deve funcionar quando é necessário extorquir dinheiro aos contribuintes para pagar aos especuladores financeiros sabemo-lo bem demais. Que fosse capaz de levar a sua vendetta contra os portugueses tão longe apenas para mostrar o seu poder e a extensão da sua raiva, não se sabia. Ficou a saber-se agora.

A escassez de reacções institucionais a esta suspensão irracional - que constitui um enorme desperdício de recursos, pois impede que inúmeras estruturas estatais levem a cabo o trabalho que lhes está cometido e condena-as a trabalhar a meio-gás - pode ter parecido surpreendente, mas essa contenção é compreensível, já que as estruturas afectadas se encontram na dependência do Estado e, por isso, estão impedidas de discutir as decisões políticas que as afectam. Por outro lado, os serviços que vêem agora o seu financiamento cortado sabem bem que qualquer atitude crítica será utilizada em seu desfavor na primeira oportunidade. Assim, se excluirmos as pontuais censuras dos comentadores, as críticas oriundas dos serviços públicos que os media veicularam adoptaram na generalidade um tom de grande brandura, contrastante com os desabafos que os dirigentes e funcionários dos serviços afectados vociferavam em privado.
Sampaio da Nóvoa, porém, achou que esta gota tinha feito transbordar o copo e que era forçoso denunciá-la publicamente. No seu comunicado, considerou a medida “cega e contrária aos interesses do país” e “um gesto insensato e inaceitável, que não resolve qualquer problema e que põe em causa, seriamente, o futuro de Portugal e das suas instituições” e, didacticamente, explicou que “é justamente nestas situações [de crise] que se exige clareza nas políticas e nas orientações, cortando o máximo possível em todas as despesas, mas procurando, até ao limite, que as instituições continuem a funcionar sem grandes perturbações”.

O comunicado do reitor prosseguia explicando os prejuízos objectivos que esta suspensão provocava às universidades e, em particular, à sua investigação, acusava a medida de Gaspar de utilizar “o pior da autoridade para interromper o Estado de Direito e para instaurar um Estado de excepção” e concluía afirmando que a Universidade de Lisboa saberia “estar à altura deste momento e resistir a medidas intoleráveis, sem norte e sem sentido”. “Não há pior política do que a política do pior”, rematava.
Seria de esperar que, depois de um toque a rebate destes, a Universidade portuguesa acordasse, fizesse das tripas coração e, num arroubo de dignidade, de cidadania ou do que fosse, em nome dos seus alunos, ou do país ou do futuro ou do que fosse, reunisse a sua coragem e se juntasse a esta tomada de posição para defender o que resta de esperança. Mas não foi isso que aconteceu. Pela voz de António Rendas, o Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas (CRUP), fez saber que não acompanhava Sampaio da Nóvoa nas suas críticas e que tinha escrito uma carta ao Ministro da Educação para ver se seria possível arranjar uma solução particular para o funcionamento das Universidades. A cartinhazinha de Rendas é o melhor exemplo possível (o pior exemplo, de facto) da forma como a hierarquia da Universidade portuguesa se habituou a funcionar: sempre medrosa, sempre subserviente perante todos os poderes, sempre habituada a jogar a carta da panelinha e do pedido de favor nos gabinetes dos ministros em detrimento de uma posição pública digna e transparente e de uma defesa clara do bem comum.

Perante a degradação da democracia, a degenerescência do Presidente da República, o colaboracionismo do Governo, a promiscuidade do Parlamento, o sectarismo dos partidos, os privilégios da Igreja, a iniquidade da justiça e o descrédito dos media, penso que a universidade é uma das raras instituições com uma réstia de respeitabilidade na sociedade portuguesa e felizmente que existem no seu seio intelectuais de coragem que não alinham pela voz do dono. Mas é lamentável que o CRUP continue a não saber interpretar as suas responsabilidades institucionais e os seus deveres de cidadania e continue a simbolizar o que de pior existe na instituição universitária: o privilégio e a promiscuidade com o poder. (jvmalheiros@gmail.com)

terça-feira, abril 09, 2013

Passos Coelho e Vítor Gaspar prosseguem com o plano A

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 9 de Abril de 2013
Crónica 13/2013

Se no fim não houver Portugal nem portugueses não faz mal. O que é preciso é pagar.

1. Conhecem aquelas empresas de “consultoria de gestão” que, quando são chamadas para aconselhar uma empresa em dificuldades, com receitas de nove milhões de euros e despesas de dez milhões, sugerem um despedimento de vinte por cento do pessoal, o que faz a última linha do balanço regressar ao azulna folha de Excel e depois cobram 500.000 euros pelo conselho como se tivessem resolvido alguma coisa? Todas têm algo em comum: são empresas experientes no Excel, por vezes hábeis no PowerPoint, e todas têm uma indiferença absoluta pela empresa que os contratou, pela qualidade dos seus produtos, pela satisfação dos seus clientes, pelo bem-estar dos seus trabalhadores, pela sociedade onde a empresa actua e pela dignidade das pessoas em geral. O que irá acontecer no longo prazo à empresa também lhes é absolutamente indiferente. Se algo correr mal, se a empresa se desagregar, se a sua reputação for destruída, se falir, dirão sempre que a responsabilidade foi da execução dos outros. A sua folhinha de Excel estava perfeita.

Estes consultores nunca têm dúvidas e raramente hesitam. Na sua folhinha de Excel é fácil chegar aos lucros. Basta fazer delete de uma coluna, reduzir 10 por cento na outra coluna, aumentar 20 por cento os valores de uma outra e o resultado aparece. Sempre.

Pedro Passos Coelho e Vítor Gaspar são os nossos exemplos caseiros destes tecnocratas de cálculo rápido e escrúpulo escasso. O Tribunal Constitucional chumba algumas medidas do orçamento? Aproveita-se a oportunidade para explicar que isto do Estado de Direito é uma chatice que só prejudica, mas não há problema: corta-se uma percentagemzinha nas colunas da Segurança Social, da Saúde e da Educação e na coluna das empresas públicas põe-se a receita da sua venda. Não há problema. Era o que já estávamos a fazer. Olha, já bateu certo! Cá está: os 1300 milhões do orçamento deste ano, mais os 4.000 milhões que a gente já tinha dito, mais os 1600 milhões que afinal também era preciso porque não eram bem 4.000 milhões... Eu não disse que não era preciso plano B?

Gaspar tinha razão. O plano foi sempre e continua a ser o Estado mínimo, a destruição do Estado Social e a sua substituição pela caridade privada, a alienação do património público, a privatização dos serviços públicos, o empobrecimento da população, a criação de um exército de desempregados disponíveis para aceitar remunerações de miséria. E pagar a dívida e os juros. É para isso que o Governo cá está. E se no fim não houver Portugal nem portugueses não faz mal. É o plano A. Continua a ser o plano A. Sempre foi o plano A.

2. António José Seguro garante estar disponível, pronto e desejoso de governar Portugal, ainda que apenas após eleições. Mas quando interrogado sobre a forma como resolveria o problema do orçamento de 2013 responde que o problema não é seu e que quem criou o problema que o resolva. Alguém pode explicar a Seguro (sei lá, um tio ou um vizinho ou assim) que governar significa ter de resolver todos os problemas do país, incluindo os que o Governo anterior deixou? Ou Seguro, quando for primeiro-ministro, tenciona chamar Passos Coelho para tratar dos dossiers que tenham ficado pendentes?

(Já agora: alguém faz ideia de quem seria o Governo de António José Seguro? Só para termos uma noção.)

3. Na sua comunicação ao país, Pedro Passos Coelho nunca colocou sobre a mesa a possibilidade de uma renegociação da dívida ou dos termos do memorando assinado com a troika, nunca esboçou qualquer atitude de maior firmeza negocial com os credores, nunca sugeriu a mínima intenção de jogar uma cartada que fosse em defesa do país e dos portugueses - quando tudo justificaria que o fizesse, por imperativo de Estado, por razões de táctica política na relação com os restantes países da União Europeia, por razões humanitárias e até por razões de dignidade pessoal. Apesar de ser evidente que a dívida é impossível de pagar, que os esforços nesse sentido apenas pioram a situação financeira e destroem a economia, que os juros sacrificam os portugueses e colocam em causa o futuro do país. Para Passos Coelho, as únicas prioridades são o pagamento da dívida, custe o que custar. Um pagamento que nunca estará concluído e que condena o país a uma escravatura eterna. Para Passos Coelho, os credores mandam, os usurários merecem respeito e os mercados são os únicos senhores. Nunca um primeiro-ministro se mostrou tão servil perante um poder estrangeiro (porque é também de relações entre países que se trata), tão zeloso na sua posição de lacaio dos mais fortes e tão indiferente perante o sofrimento dos mais fracos. Nunca nesta república um primeiro-ministro, que jurou cumprir a Constituição e defender a soberania nacional, desrespeitou de forma tão descarada o seu juramento solene e aviltou desta forma a honra do país que devia servir.

terça-feira, abril 02, 2013

RTP lança novo reality show: Sócrates contra o Governo

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 2 de Abril de 2013
Crónica 12/2013

Sócrates veio defender a sua versão porque não há ninguém no PS para contrariar a narrativa dominante

A reentrada de José Sócrates na cena política portuguesa sofre da mesma indefinição que marca toda a actividade política nacional. Não sabemos bem ao que vem nem se podemos acreditar no que diz mas, como é o que há, não podemos deixar de ter alguma expectativa.

Sócrates regressa supostamente como comentador televisivo, mas vem de facto fazer política e é evidente que pretende tornar-se a figura de proa da oposição. Ser comentador é a porta de entrada possível. Não é nada novo. Há outros políticos no activo ou que tentam regressar ao activo que fazem supostamente análise política quando fazem de facto política. A diferença entre um comentador e um político é que o primeiro deve relegar-se a uma posição de observador, enquanto o segundo é um actor da cena política. O comentador deve fornecer elementos que ajudem o público a formar opinião e não tentar convencer o público da sua opinião - o que é lícito num político. Cabe ao comentador observar, analisar, criticar ou elogiar mas não lhe cabe tentar influenciar a agenda política ou o curso dos acontecimentos. Só que, neste caso, ninguém espera que Sócrates se comporte como um comentador e dois anos de estudo de filosofia não parecem ter-lhe dado uma atitude mais reflexiva. Mais: ninguém deseja que Sócrates se limite ao comentário. Sócrates veio para se lançar no combate político e todos rejubilam com isso, carentes como estão de um confronto que, mesmo nesta situação de hecatombe nacional, a oposição não consegue levar a cabo contra o Governo e os seus partidos.

É evidente que há virtude em fazer frente às políticas destrutivas de Pedro Passos Coelho e da sua tropa fandanga. O que é lamentável é que essa oposição surja da parte de um agora franco-atirador cuja existência no seu próprio partido é hoje pouco mais que espectral e que não possui uma posição institucional que lhe permita avançar verdadeiras alternativas políticas. Na realidade não se trata de verdadeira oposição, mas de um reality show de oposição que, nas actuais circunstâncias, vai ter de servir para nos aliviar o tédio.

O que é lamentável é que tenhamos de ficar felizes com esta pantomima de oposição devido à absoluta ausência de real oposição do PS e à tibieza não só da liderança de Seguro mas também das alternativas a Seguro, sempre anunciadas e sempre adiadas, sempre ferrabrases na intenção e pusilânimes na acção.

Há algo que Sócrates disse na sua entrevista que é tristemente verdadeiro: ele veio defender a sua versão dos acontecimentos que nos trouxeram a esta crise e que nos enterraram nela, porque não há ninguém no PS para contrariar a narrativa dominante do Governo. Os debates políticos continuam a ecoar as aldrabices de Passos Coelho e as sandices de Vítor Gaspar, que os media reproduzem obedientemente. Sócrates teve de voltar porque não há ninguém no PS a fazer oposição, mas também não regressa para disputar de novo a liderança do PS, regressa para o lugar do lado, para um lugar onde pode dizer que sim e que talvez sem se comprometer demasiado, não se percebe bem porquê nem para fazer o quê, além de nos animar as noites de domingo.

A ambiguidade deste papel de Sócrates, comentador-que-vai-ser-oposição-mas-sem-ser-oposição, articula-se com a de Seguro, o líder-da-oposição-que-não-se-opõe-a-nada, o opositor da triste figura, que se abstém violentamente, que só censura quando não tem saída, que repete banalidades com caretas de menino mimado, que se queixa da austeridade mas promete vassalagem à troika, que quer unir a oposição mas tem medo do PCP e tem vergonha de falar com o BE, que diz que é de esquerda mas só namora a direita.

Mas o panorama não se esgota aqui. A comédia dos enganos da política nacional completa-se com a) um Governo-a-soldo-dos-credores, que finge que defende os interesses dos portugueses quando vive para agradar à senhora Merkel e aos especuladores de todo o mundo, enquanto vende o país ao retalho e nos tenta empobrecer, b) um CDS-que-está-no-Governo-mas-não-está e que até exige remodelações, c) um Presidente-da-República-pensionista, que não é bem presidente, que faz política em chás-canasta, discretamente e sem consequências, só às vezes e só com uns amigos chegados, que alinha frases enigmáticas com dificuldade mas se tem em muito alta conta e que gosta de morder as canelas às escondidas como um pincher histérico e d) um PCP e um BE tão preocupados com a sua identidade que receiam transformar-se em estátuas de sal se fizerem uma frente comum contra o Governo e perder a pilinha se falarem com o PS.

Será que, neste Mundo de Faz de Conta onde ninguém faz o que deve ou cumpre o que promete, o entretenimento é toda a oposição a que podemos almejar? Da mesma maneira que vemos programas humorísticos para perceber o que se passa na política e lemos artigos de opinião para saber as notícias? Será que já prescindimos da política e só queremos mesmo é ver televisão? (jvmalheiros@gmail.com)