terça-feira, maio 28, 2013

Palhaçadas, ameaças e as limitações ao debate político

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 28 de Maio de 2013
Crónica 20/2013

E se a PGR fizesse uma lista dos epítetos que podem ser usados contra Cavaco Silva?


O que se pretende dizer quando, no âmbito de um debate político, se diz que Cavaco Silva é um palhaço? Aquilo que se quer dizer é que Cavaco Silva não deve ser levado a sério e que, portanto, aqueles que o fazem cometem um enorme erro de julgamento. Ou pode querer-se dizer que Cavaco Silva não pode ser levado a sério e que, portanto, ninguém (por muito que tente) consegue considerar seriamente as suas análises, declarações, propostas e decisões, seja qual for a solenidade do ambiente em que elas têm lugar. Em ambos os casos, o que se pretende transmitir é um julgamento político da capacidade e da imagem de Cavaco Silva.
A expressão tem uma carga depreciativa? Sem dúvida. Quem a profere diz claramente que Cavaco Silva ou não tem as competências e as faculdades que justificariam que o levassem a sério ou que, tendo-as ou não, possui uma reputação de tal forma degradada que não possui condições políticas para exercer o seu magistério.

Trata-se de uma expressão que pretende apenas atingir o homem que, por acidente do destino, ocupa a Presidência da República (como aconteceria com um insulto comum como seria chamar-lhe “camelo”, por hipótese)? Ou trata-se, pelo contrário, de uma expressão que possui um conteúdo preciso, crítico da actuação política do presidente? Parece evidente que estamos perante a segunda hipótese.
Será que a expressão deveria ter sido substituída por outra menos agressiva mas de valor equivalente, como seria, por hipótese, a expressão “comediante”? Será que o cidadão Cavaco Silva e/ou o Presidente da República se sentiriam menos ofendidos na sua honra se a frase proferida tivesse sido “Nós já temos um comediante. Chama-se Cavaco Silva.”? Será possível que o que foi considerado ofensivo na expressão pelo Presidente da República tenha sido o carácter popular da expressão “palhaço” e que uma expressão com raízes mais eruditas pudesse ter sido julgada mais civil? É provável, mas parece evidente que o direito não deve avaliar o conteúdo de um epíteto do ponto de vista de um preconceito de classe mas sim segundo o seu valor semântico.

Esmiucemos então a semântica. Há algo de indigno que a expressão de palhaço sugira? Há. Não devido à profissão dos palhaços em si ou às actividades circenses em geral, apreciadas e admiradas por todos, mas por razões que têm a ver com a impropriedade. Um palhaço tem o seu lugar num circo, num palco ou numa festa, mas a sua presença noutro contexto é vista como inadequada. Um palhaço que actua como palhaço está revestido da dignidade e da aura do espectáculo, do humor, do riso, da ironia, da magia, da infância. Mas a incongruência, a leviandade ou a gaucherie que nos fazem rir num palhaço chocam-nos num Presidente da República que nos lembra um palhaço. Um PR que nos lembra um palhaço está ferido de indignidade.

Dizer que Cavaco Silva é um palhaço é dizer que ele não possui dignidade para o cargo que ocupa. Não é de forma alguma uma “ofensa à honra do Presidente da República”, como a Presidência da República e a Procuradoria-Geral da República parecem ter entendido, mas uma defesa da honra da instituição Presidente da República. É dizer que, em nome da honra da Presidência da República, Cavaco não devia estar ali.

Se a PGR considerar que dizer que alguém não tem dignidade para ocupar o cargo de Presidente da República é ofender a honra do Presidente da República estará a pôr em causa o coração do debate democrático, pois estará a dizer que existe um lugar na hierarquia do Estado que não pode ser sujeito à crítica ou a sátira. E, se isso acontecer, será porque já não vivemos em democracia.

O Presidente da República deve estar protegido pelas mesmas leis que protegem o bom nome de qualquer cidadão. Mas não tem sentido que esteja protegido de forma particular, pois essa protecção particular seria uma limitação inaceitável do debate público e da crítica política, que por vezes é agressiva e desagradável, mas que constitui a seiva da liberdade e da procura da verdade.


É curioso ver, a este propósito, como a Presidência da República e a Procuradoria-Geral da República actuam de forma selectiva. Há uns dias, Marcelo Rebelo de Sousa, pitonisa da direita política, lançou esta tirada: “Cavaco é herbívoro, não é carnívoro. Ele come erva, não come carne." Não consta que a PR ou a PGR tenham desencadeado algum inquérito. Será admissível chamar herbívoro a Cavaco Silva mas não palhaço? Será aceitável dizer que Cavaco come erva mas não que é um palhaço? O critério não é claro. Talvez a PGR devesse fazer uma lista dos epítetos que considera admissíveis e não admissíveis. Ou o peso da justiça dependerá da posição no espectro político por parte de quem profere estas apóstrofes? E será possível chamar herbívoro a Cavaco Silva em geral mas não em particular, escolhendo uma espécie de herbívoro definida? Será admissível dizer que Cavaco Silva é um rinoceronte ou a PGR considerará isso uma afronta à honra do PR? Será admissível dizer que é um boi, o primeiro exemplo de herbívoro oferecido na Wikipédia? Tantas perguntas... (jvmalheiros@gmail.com)

sábado, maio 25, 2013

O jornalismo e o pensamento único - Revista "Fiscalidade e Sociedade"

Artigo publicado na revista "Fiscalidade e Sociedade" de 25 Maio 2013

José Vítor Malheiros
Na entrevista que o ex-primeiro-ministro José Sócrates deu à RTP antes de iniciar a sua actividade regular como comentador político da estação pública de televisão, foi notória a repetição da expressão “narrativa” por parte do entrevistado. Sócrates apresentou-se como alguém que vinha apresentar a sua “narrativa” alternativa e contrapô-la à “narrativa” dominante do Governo sobre a crise.

O uso e abuso da expressão (várias pessoas nas redes sociais entretiveram-se a contar o número de vezes que a palavra foi repetida) foi objecto de comentários mais ou menos jocosos e de críticas diversas, que preferiram sublinhar a relação semântica entre “narrativa” e “ficção”, querendo sugerir que o novo comentador se propunha apenas substituir um conto do vigário por outro ou vender um tipo de banha da cobra diferente da do Governo, mas a questão levantada por Sócrates tem de facto toda a relevância e a questão da narrativa da crise tem toda a pertinência.

Antes de mais, uma narrativa não tem de ser de forma alguma uma invenção e não é pelo facto de lhe chamarmos “narrativa” que ela se encontra desligada da realidade. Existem inúmeras maneiras de descrever situações e acontecimentos reais. Posso fazê-lo utilizando apenas uma sucessão de dados estatísticos, posso fazer descrições estáticas de certos momentos, posso descrever uma situação apenas através do seu reflexo nos media, posso usar a perspectiva de um sociólogo, de um historiador ou de um cidadão comum, etc. Existem múltiplas perspectivas possíveis (pontos de vista), existem múltiplas atitudes possíveis da parte de quem relata (pretensamente objectivas ou com um assumido envolvimento pessoal), existem diferentes elementos com os quais podemos construir a nossa narrativa (dados, documentos oficiais, fotografias, relatos na primeira pessoa, literatura de ficção) e existem diferentes técnicas que podemos usar para contar o que queremos contar. Mas há sempre algo que queremos contar e aquilo que se conta é sempre uma narrativa. Também poderíamos usar a palavra “história” em vez de “narrativa”, como dizem os jornalistas em todo o mundo, frequentemente grafada como “estória” em português, mas o significado é exactamente o mesmo.
Mas o que faz de algo uma “narrativa” em vez de apenas um discurso, uma opinião, uma visão, uma proposta, uma explicação ou qualquer outra coisa? O que transforma um discurso numa “narrativa” é a sua capacidade de ser difundido de uma forma ampla e de ser reproduzido com fidelidade. Uma “narrativa” é uma mensagem formatada (poderíamos dizer “empacotada”) de forma simples, fácil de apreender e fácil de repetir. Uma história.

É evidente que as narrativas podem ser mais ou menos honestas, podem pretender explicar ou manipular, podem escamotear ou pôr em evidência certos aspectos, mas não é de forma alguma por algo ser rotulado como uma narrativa que deve ser considerado como uma peça de propaganda. Pode sê-lo ou não.  Não são apenas os políticos e os jornalistas que constroem narrativas como parte central do seu ofício: os cientistas também constroem narrativas para explicar o mundo e a forma como retocam, alteram, abandonam, substituem e afinam essas narrativas constituem a evolução da própria ciência.

Há uma característica, porém, que uma narrativa possui sempre: um elevado grau de simplificação. Uma narrativa não é um mapa do mundo à escala 1:1 como o do conto de Borges. É uma visão que transforma milhões de pontos em imagens fáceis de apreender.

Mas vejamos alguns exemplos práticos da política.

A narrativa do Governo e da direita em geral sobre a crise financeira é simples: Nos últimos anos gastámos de mais. Vivemos acima das nossas possibilidades, gastámos mais do que produzimos. Endividámo-nos. Estado, empresas, famílias. Mas as pessoas honestas pagam as suas dívidas e chegou a altura de pagar.

Simples de perceber, com um elemento moral culpabilizador para que a má consciência não nos deixe criticar, fácil de repetir.

É verdade? É uma descarada mentira se for vendida como descrevendo toda a história, mas contém suficientes elementos de verdade para ser verosímil.

Há versões alternativas? Há, mas são mais complexas. Dizem-nos que a crise não é de agora mas vem de longe, que se deve a uma moeda única que privilegia necessariamente as economias mais fortes como a Alemanha, à nossa perda de soberania monetária que não nos deixa desvalorizar a moeda, à inexistência de um papel de emprestador de última instância do BCE que coloca os Estados na mão dos mercados financeiros, a ataques especulativos contra a dívida dos países mais frágeis, à usura dos bancos e à desonestidade das agências de rating, à destruição sistemática da capacidade produtiva do país em benefício de outros países que desiquilibrou a nossa balança com o exterior, à financeirização da economia que privilegia os investimentos não produtivos, à desregulação da circulação de capitais, a um conluio internacional que visa destruir o Estado Social e privatizar as suas riquezas e serviços em benefício do capital privado. Complicado não é? Parece algo paranóico e de difícil articulação. E o que significa “ataques especulativos”, “desregulação” e “financeirização”? E onde é que isto começou? E de quem é a culpa afinal?

Há nitidamente aqui - na visão da esquerda política - uma narrativa por construir, por “empacotar”, por simplificar. Falta um princípio, um meio e um fim. A história moral da direita é simples. A visão da esquerda é complexa. E, problema suplementar, quanto mais escrúpulo de rigor existe, maior é a dificuldade da simplificação. Nunca é impossível, mas é mais difícil. Numa narrativa (por oposição a uma descrição) as coisas não “estão” ou “são”. As coisas “acontecem”. Precisamos de encadeamentos, de consequências, de um fio condutor, um fio narrativo. Quanto maior a complexidade do contexto maior é a dificuldade da narrativa - e não há muitas coisas mais complexas que as finanças globais com os seus múltiplos actores, Estados, especuladores, políticos, bolsas. A narrativa oficial, da direita neoliberal, oferece para mais uma saída: sacrifício, austeridade, empobrecimento. A saída parece moral e agrada à nossa cultura católica penitente. Pouco importa que seja falsa: ela faz sentido narrativo porque todos conhecemos histórias morais assim, “sete anos de pastor Jacob servia Labão, pai de Raquel”... A saída proposta pela esquerda? A do PS não é uma alternativa distinguível da da direita mas a da restante esquerda é complexa, é preciso actuar em inúmeros tabuleiros, reconstruir a economia, renegociar com toda a gente sem sabermos o que conseguiremos alcançar, fazer sacrifícios na mesma, talvez sair do euro, talvez não... uma complicação. Não há uma história aqui.

Mas a que se deve essa predominância da narrativa oficial, tão omnipresente que se transforma em pensamento único?

Há uma visão conspirativa do jornalismo que diz que os jornalistas são meras correntes de transmissão do poder, instrumentos da classe dominante e seus agentes de propaganda. Ponto. Assim, a sua adesão à narrativa dominante, que preenche de facto os media em geral e a televisão em particular, dever-se-ia a esta posição de classe, ideológica, ao arrepio dos seus deveres deontológicos e dos seus compromissos de procura de verdade, de independência e de fiscalização dos poderes.

É evidente que há jornalistas que assumem este papel de meros propagandistas, mas não penso que o pensamento único que vemos plasmado nos media (não apenas no jornalismo, mas nos media em geral, dos programas de entretenimento às telenovelas) se deva a essa posição consciente. O problema deve-se à disponibilidade da narrativa dominante, à sua simplicidade e facilidade de reprodução. Está ali mesmo à mão, curtinha e fácil: “Gastámos de mais, chegou a altura de pagar”. Ou: “O Estado Social pode ser bom mas é um luxo. Não temos dinheiro para o pagar.”

O que falta à esquerda é o empenho na construção da sua narrativa. Não se trata de construir uma peça de propaganda. Trata-se de seleccionar o que é essencial e operativo na sua visão, em separar o fundamental do acessório e em saber por onde quer começar. Só assim será possível colocar essa narrativa alternativa à consideração dos cidadãos e mobilizá-los para a sua construção real.

Comunicação de Ciência: a mudança de fase

por
Joana Lobo Antunes
José Vítor Malheiros
Sílvia Castro
Sílvio Mendes
(Membros da Comissão Organizadora do Congresso de Comunicação de Ciência - SciCom Portugal 2013)

Artigo de Opinião publicado no jornal Público a 25 de Maio de 2013


A comunidade atingiu a massa crítica e enfrenta hoje um risco e um desafio



A investigação científica e tecnológica portuguesa sofreu nos últimos vinte anos um progresso notável, mensurável através do aumento sustentado do investimento em percentagem do PIB, do aumento do número de investigadores, do número de publicações em revistas científicas ou de patentes, do número de doutoramentos realizados e também através de indicadores mais subjectivos, como a visibilidade da investigação portuguesa nos media ou a capacidade de atracção de investigadores estrangeiros de grande qualidade.

Esta evolução do sistema científico e tecnológico foi acompanhada por um crescimento igualmente notável das actividades e do número de profissionais de Comunicação de Ciência, nas suas diversas vertentes. Existem hoje centenas de profissionais que trabalham em centros de ciência interactivos, em museus de ciência ou jardins zoológicos e botânicos; investigadores e ex-investigadores empenhados (em full-time ou part-time) em actividades de divulgação junto das escolas e do público em geral; profissionais que integram gabinetes de comunicação em laboratórios de investigação e Universidades; especialistas em ilustração científica, em vídeo científico ou fotografia científica; jornalistas especializados em ciência, tecnologia, saúde e ambiente; professores do ensino básico e secundário que envolvem os seus alunos em actividades extracurriculares de ciência, visitas de estudo e saídas de campo; um número crescente de investigadores a escrever livros de divulgação para diferentes públicos ou a assinar trabalhos nos media, etc.

Um grupo criado recentemente no Facebook para discutir os problemas da Comunicação de Ciência em Portugal tem actualmente mais de 400 membros e não há escassez de temas para discussão.

É evidente que a comunicação sempre foi uma actividade fulcral na investigação científica mas, durante séculos, esta era uma actividade que se praticava exclusivamente inter pares e intra muros. A Comunicação de Ciência de que falamos hoje é, essencialmente, uma comunicação que transborda as fronteiras das especialidades, das instituições e dos grupos sociais. Muita desta actividade é aquilo que designamos por “divulgação” ou “popularização “ da ciência: uma explicação da ciência proporcionada pelos cientistas à população em geral, motivada pelo seu desejo de reconhecimento social do seu trabalho, pelo seu desejo de partilhar ideias novas e excitantes, pela sua necessidade de prestação de contas pelo uso de recursos públicos ou pelo seu interesse em despertar e recrutar novas vocações científicas. Mas, de forma crescente, este tipo de actividades tem-se alargado para dar lugar a formas mais sofisticadas de envolvimento das populações na actividade científica, envolvendo-as por vezes na própria produção de conhecimento científico, como acontece na chamada “citizen science”, onde centenas de cidadãos podem, por exemplo, fazer o recenseamento das espécies animais ou vegetais das suas regiões.

Não só a quantidade de pessoas e de actividades de Comunicação de Ciencia cresceram nos últimos anos, como cresceu de forma sustentada a sua qualidade: um número elevado de profissionais da área são doutorados, oriundos da investigação científica dura ou das ciências da comunicação, e os cursos graduados e pós-graduados da especialidade têm-se multiplicado nas várias universidades, assim como os próprios projectos de investigação em Comunicação de Ciência, proporcionando um olhar reflexivo e crítico sobre toda esta actividade.

A comunidade de Comunicação de Ciência enfrenta hoje um risco e um desafio.
O risco é o que resulta da actual situação económica e financeira e da política de austeridade: perante a actual situação de escassez de recursos, há o perigo de que as instituições científicas decidam desinvestir nas actividades de comunicação que desenvolveram nos últimos anos, pondo assim em risco o capital de experiência e saber acumulado.

O desafio é o passo no sentido oposto, no sentido do futuro: existe actualmente uma massa crítica de pessoas e experiências, de conhecimento e relações, de casos e de  projectos que deveria impulsionar a Comunicação de Ciência e alargar a sua influência. Existe um imenso potencial em todos estes profissionais que se encontra por explorar. Antes de mais, no seio da própria comunidade científica, cuja comunicação interna, entre disciplinas mas também intra-equipas, beneficiaria das competências que a Comunicação de Ciência possui, permitindo aumentar a eficácia dos seus projectos e potenciar os seus resultados. Por outro lado, na comunicação dirigida a determinados públicos (as empresas, os decisores políticos, os movimentos sociais) que é praticamente inexistente ou entregue a cientistas sem competências de comunicação específicas. Finalmente, em projectos que permitam envolver o público de forma mais participativa e responsável na ciência, transformando aquilo que tem sido uma comunicação unidireccional numa verdadeira conversação, onde se fala e se ouve, se debate e se decide em diálogo. A Comunicação de Ciência é uma ferramenta ao serviço da Ciência, mas deve ser e pode ser também uma ferramenta ao serviço da cidadania.

Nos próximos dias 27 e 28 de Maio, vai ter lugar no Pavilhão de Conhecimento, um lugar histórico da Comunicação de Ciência, o primeiro Congresso de Comunicação de Ciência - SciCom Portugal 2013. O número de inscrições excedeu largamente o número de lugares disponíveis, o que mostra bem o interesse desta nova comunidade em discutir ideias e construir o seu futuro. Todas estas ideias estarão aí em debate. Esperamos que os cidadãos se possam rever e envolver em todos os projectos que vão nascer desta conversa.


terça-feira, maio 21, 2013

No reino da alucinação e da inimputabilidade

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 21 de Maio de 2013
Crónica 19/2013

Instalou-se o consenso sobre Cavaco Silva: todos o tratam como tratariam o idiota da aldeia



1. A única coisa espantosa a propósito da declaração de Cavaco Silva sobre a sétima avaliação da troika e a estratégica intervenção no caso por parte de Nossa Senhora de Fátima é a extrema benevolência com que o caso foi recebido pelo establishment político, pelos comentadores e pelas instituições em geral. E esta é a única coisa espantosa porque Cavaco já nos tem presenteado com pérolas de igual ou superior quilate e, por isso, o dislate em si não pode ser considerado surpreendente. Mas a reacção, essa, é sui generis. Na televisão, os entrevistadores fazem um discreto sorrizinho malicioso quando referem o caso e os entrevistados entreolham-se fugazmente com um sorriso benevolente enquanto vão dizendo que o facto está a ser empolado sem necessidade. Claro que adivinhamos todos que, mal os microfones se desligam, entrevistados e entrevistadores se dobram em gargalhadas a comentar a última (penúltima, antepenúltima?) tolice do ocupante do palácio de Belém, mas em público todos referem o caso com discrição e um evidente pudor, sem revirar o punhal na ferida, com aquela gentileza que tornou famosos os nossos brandos costumes e com uma elegância que seria ocioso tentar explicar ao visado.
O que é espantoso é que parece ter-se instalado o consenso sobre Cavaco Silva: todos o tratam como tratariam o idiota da aldeia, com paciência e benevolência, às vezes com um sorriso de comiseração, sem esconder aqui e ali um lampejo de irritação, mas garantindo-lhe sempre a imputabilidade que os costumes, a moral e a lei concedem aos pobres de espírito.

Cavaco deixou, pura e simplesmente, de ser (e de poder ser) levado a sério. Uma referência a Cavaco no meio de uma conversa é, forçosamente, um convite à mofa e aos gracejos. O que é grave, já que lhe cabem deveres de garantia do funcionamento das instituições democráticas que ele é, assim, absolutamente incapaz de cumprir, seja através de intervenções públicas ou de lanches privados. O que é grave, porque vivemos um momento de emergência nacional, de catástrofe social, de submissão a interesses estrangeiros e de traição aos portugueses que exigiriam a intervenção de um Chefe de Estado.

Não é a simples referência a Nossa Senhora de Fátima que é surpreendente - Paulo Portas acreditava que a maré negra do petroleiro “Prestige” se tinha desviado da costa portuguesa devido a “uma intervenção de Nossa Senhora" -, nem o facto de que Cavaco Silva não tenha percebido que, como Chefe de Estado de uma república laica, se deve abster de propaganda das suas crenças pessoais, nem sequer o facto de o presidente manifestar tão débil confiança na sua autoridade que quis desculpar a tirada atribuindo a justificação milagreira à lavra da sua consorte. Mas há uma questão política que subjaz às declarações do Presidente da República: aparentemente (o que surpreende, atendendo a outras declarações suas), Cavaco Silva considera que a troika se tornou uma benção de tal prodigalidade que apenas pode ser explicada por causas sobrenaturais, qual maná celestial. A imagem poderia ser compreendida - e muito mais pessoas gritariam “milagre” - se a troika decidisse perdoar-nos a dívida. Mas não foi isso que aconteceu. Esta aura divina de que o PR reveste a decisão dos nossos principais credores pode dever-se ao facto de Cavaco Silva estar a ser envenenado com uma substância hipnótica espalhada nas torradas mas, com hipnose ou sem ela, o PR parece considerar um sacrilégio que os portugueses pensem ou façam qualquer outra coisa que não nasça desta troika de três cabeças. Seria mais compreensível e certamente mais patriótico que Cavaco sonhasse que a troika não é mais do que a forma humana, mal disfarçada, do cão de três cabeças que guarda os infernos. Mas imaginar que eles são os serafins favoritos da Virgem Maria é pornográfico.
2. Cavaco não está só na inimputabilidade nem no desvio alucinatório em relação ao real. O Governo, com Gaspar ao leme, continua a sua caminhada apocalíptica, indiferente ao consenso crescente sobre os malefícios da auteridade e a incompetência da governação, indiferente à pobreza crescente e ao sofrimento dos portugueses, indiferente ao que diz a ciência política e a economia, ansioso por servir os seus verdadeiros amos, os barões da finança. O Governo sabe que os portugueses não o apoiam, sabe que perderá as próximas eleições sejam elas quando forem, sabe que não tem legitimidade democrática (aquela que advém de um programa sufragado), sabe que já toda a gente percebeu que a sua única preocupação é enriquecer os poderosos, sabe que está a destruir o Estado e com ele as vidas de milhões de portugueses mas prossegue porque pode prosseguir, devido à cadeira vazia que está em Belém.

Que não seja possível substituir um presidente que deixou de cumprir os seus deveres nem um Governo que quebrou todas as promessas e que vende o país a que paga mais são duas das desgraças do actual regime político, que vai ser preciso reparar mal seja possível. (jvmalheiros@gmail.com)

terça-feira, maio 14, 2013

A vida tão barata e a propriedade tão sagrada

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 14 de Maio de 2013
Crónica 18/2013

Rana Plaza: um exemplo de “eficiência”, de “produtividade”, de “racionalização de custos” e de “optimização”

O crítico de arte vitoriano e reformador social John Ruskin, que morreu em 1900, dizia, num dos seus escritos sobre economia, que um dos mais sérios problemas do capitalismo era o facto de a concorrência entre produtos poder levar a uma situação onde os produtos de menor qualidade se sobrepõem e acabam por eliminar os produtos de maior qualidade, assim condenando à falência os artesãos mais competentes e mais empenhados. Produtores e consumidores, arte e indústria e comércio, podem assim entrar numa espiral descendente onde não só a dignidade do trabalho dos artesãos mas também a qualidade de vida dos cidadãos que utilizam os artefactos que saem das mãos dos primeiros se vai degradando sem apelo.

A este tipo de argumentos respondem os defensores do liberalismo económico que o mercado se encarrega de seleccionar os melhores produtos e respondem os social-democratas que a regulação do mercado pode evitar os males que Ruskin e outros anteciparam. E há argumentação de grande elegância para defender ambos os pontos de vista. Mas o que acontece de facto no mundo é o que nós vemos: 1127 pessoas mortas pelo desabamento de um edifício no Bangladesh onde trabalhavam 5.000 operários, em condições sub-humanas, com remunerações de miséria, para fazer a roupa que nós compramos nas lojas Benetton, Mango, Primark e outras.

Chama-se a isto deslocalizar a produção - algo que todas as empresas do mundo gostam de fazer, ainda que não para qualquer país. As empresas preferem os países onde as condições de trabalho se assemelham às da escravatura, aqueles onde os trabalhadores não têm direito nem a intervalos, nem a segurança física, nem sequer a sindicatos. Os patrões, que defendem nos salões o primado da lei e os direitos humanos, deslocalizam com tanta mais vontade para um país quanto menos regulado for aí o mercado de trabalho e quanto mais frágil for a sua lei. O capitalismo, na sua sede de “eficiência”, de “produtividade”, de “racionalização de custos”, de “optimização”, de “extrair o máximo valor” dos seus recursos, de “maximizar” os seus lucros, cumpre assim sem peias o seu destino selvagem: remeter os trabalhadores ou à miséria do trabalho escravo, nos países que acolhem as empresas “deslocalizadas”, ou à miséria do desemprego, nos países de onde retira as mesmas empresas. “A vida dos homens e das mulheres é tão barata e a propriedade é tão sagrada”, exaltava-se a admirável sindicalista Rose Schneiderman em 1911, poucos dias depois de um terrível incêndio num edifício de Nova Iorque, muito semelhante ao Rana Plaza, que matou então 146 operárias da confecção. Em Nova Iorque, as operárias, todas imigrantes, judias e italianas, não puderam fugir porque as saídas de incêndio estavam fechadas a chave, “para que não fizessem intervalos”. Sempre a eficiência. “Há tantas mulheres como nós por cada emprego, que não interessa muito se 146 como nós morrerem queimadas”, dizia Schneiderman. Ainda é assim. Cem anos depois, ainda é assim. O mesmo desprezo pela vida, a mesma ganância dos patrões, agora mascarada com expressões técnicas: deslocalizar, rentabilizar, adquirir competitividade. Deslocalizar é procurar os sítios onde ainda se pode praticar escravatura. Legalmente, claro.

Em 1911, o incêndio da Triangle Shirtwaist Factory incendiou as consciências e deu origem a regulamentações de segurança no trabalho que se estenderam pelo mundo. Mas hoje as empresas sabem como poupar e como continuar a extrair o máximo valor dos seus trabalhadores: deslocalizam-se para países onde nunca se ouviu falar da Triangle Shirtwaist Factory, onde não há salário mínimo e onde os trabalhadores só podem formar um sindicato com autorização prévia do patrão. Até agora. Porque ontem as notícias relatavam uma “vitória” dos trabalhadores: uma lei vai permitir sindicatos sem autorização dos patrões. E o activista e prémio Nobel Muhammad Yunus propunha às empresas fabricantes de roupa ocidentais algo igualmente radical: um salário mínimo de 50 cêntimos de dólar.


Já repararam nas fotos do Rana Plaza? Como é que é possível enfiar 5.000 pessoas naquele espaço? E já repararam no nome? Rana Plaza é um detergente de consciências em nove caracteres.


Que mundo é este? É o mundo dos colaboracionistas Passos Coelho e Portas, dos Gaspar e Mota Soares, que comentam estarrecidos as notícias do Bangladesh nos corredores de Bruxelas, desfiando o rosário com a mão esquerda enquanto com a direita assinam a condenação à miséria e à prisão domiciliária de mais uns velhos. O Rana Plaza é o neoliberalismo em todo o seu esplendor. O sofrimento das pessoas? A condenação à miséria, à ignorância e à violência de crianças só porque nasceram num determinado bairro? O abraço de morte dos dois operários do Rana Plaza captado pela fotógrafa Taslima Akhter? Aqueles dois corpos abraçados que dizem “Somos seres humanos como tu. A nossa vida é tão preciosa como a tua e os nossos sonhos também são preciosos” como explica a fotógrafa? Não têm mais importância que um bocejo. (jvmalheiros@gmail.com)

sábado, maio 11, 2013

Malabarismo e matemática: a utilidade das coisas inúteis

Por José Vítor Malheiros
Publicado no site do Programa O Mundo na Escola a 11 Maio 2013
(http://www.mundonaescola.pt/?page_id=6135)


Grandes Aulas: António Machiavelo em Matosinhos

A primeira imagem que aparece no ecrã é a de um documento egípcio, repleto de hieróglifos e com desenhos geométricos. É o papiro de Rhind, escrito há 1650 anos a.C, e que é uma cópia de um outro documento, duzentos anos mais velho, que é o escrito mais antigo que se conhece sobre matemática.

A segunda imagem projectada é um friso de malabaristas, também egípcio, pintado na parede de um túmulo. “É curioso que as primeiras referências históricas que conhecemos ao malabarismo e à matemática datam precisamente da mesma época”, diz o matemático António Machiavelo.

Os mais de duzentos alunos que enchem a sala, o refeitório da Escola Secundária Augusto Gomes, em Matosinhos, que foi esvaziado de mesas para acolher os estudantes e professores que assistem à Grande Aula A matemática e o malabarismo, ouvem, suspensos.

A coincidência pode não passar disso mesmo e a relação entre matemática e malabarismo não é completamente clara, mas Machiavelo vai desfiando os pontos de contacto: há uma enorme quantidade de matemáticos que gostam de fazer malabarismo (muitas vezes sem saber que o passatempo é popular na sua classe) e muitos deles atingiram um nível de excelência, como o matemático Ronald Graham, que chegou a ser presidente da International Jugglers’ Association. Machiavelo é ele próprio malabarista e vai pontuando a aula com demonstrações, usando as várias bolas que estão em cima das mesas. Sempre com três ou quatro bolas. ”É muito difícil fazer isto com cinco bolas. O meu sonho é conseguir chegar lá, mas ainda não consigo”, confessa.

“É curioso que a relação entre a música e a matemática são muito faladas – há muitos matemáticos músicos, muitos estudos matemáticos sobre música -, mas a relação entre matemática e malabarismo está relativamente pouco explorada”, diz-nos Machiavelo antes de começar a aula. “Penso que é por o malabarismo ter um estatuto social menor. Um matemático diz naturalmente que toca piano, mas admite com menos facilidade que faz malabarismo.”

Há outra relação entre malabarismo e matemática, que é tema central desta Grande Aula: o malabarismo é objecto de estudo da matemática, que tenta saber (já sabe) quantas sequências malabares se podem fazer, com quantos objectos em simultâneo, com quantas variações ao nível dos movimentos, etc. e que encontrou formas simples de descrever e codificar sequências malabares, uma expressão que vem da costa malabar, a costa ocidental da Índia, onde a prática parece ter tido muito cultores ao longo dos séculos. Por exemplo: a sequência com três bolas que todos conhecemos, a mais simples, a que os malabaristas chamam “cascata”, tem a designação matemática 333, ou apenas 3, para simplificar.

Machiavelo vai explicando aos alunos de que forma se podem codificar as sequências malabares e como depois, trabalhando apenas com os códigos (que são sequências de números como 5353), se pode saber se uma dada sequência inventada é exequível ou quantas sequências diferentes se podem fazer com um dado número de bolas. Ou inventar novas sequências ou encontrar formas originais de passar de uma para outra. Tudo só com matemática. “Ao contrário do que se pensa, os matemáticos não gostam de fazer contas”, diz Machiavelo, “e estão sempre a tentar encontrar maneiras de simplificar os cálculos, para não terem de fazer muitas contas”.

Há uma maneira simples de ver se uma sequência malabar é exequível: há um site chamado Juggling Lab onde se pode descarregar uma aplicação que permite experimentar diferentes sequências, com um boneco (um malabarista perfeito) a realizar tudo o que lhe pedimos. Machiavelo mostra a aplicação e vai inserindo sequências de números que o boneco executa. A programação do boneco animado usa a matemática que Machiavelo vai explicando e que os estudantes vão treinando na assistência, tentando escrever no papel, com lápis de cores, as sequências malabares cujas fórmulas Machiavelo vai escrevendo no quadro e que ele próprio exemplifica com as bolas.

A paixão de Machiavelo pelo malabarismo começou aos 11 anos, quando ele próprio era aluno desta mesma Escola Secundária Augusto Gomes, muito antes da paixão pela matemática. “Um dia, um amigo meu que sabia malabarismo foi a minha casa e eu fiquei entusiasmadíssimo”, conta-nos. “Comecei a fazer malabarismo com cubos de Lego e continuei a fazer de vez em quando, com laranjas, ou outros objectos. Depois, mais tarde, quando estava a fazer o doutoramento, às vezes experimentava com um melão, uma melancia e uma laranja, porque há uma dificuldade particular quando os objectos têm pesos diferentes.”

Machiavelo diz que, nas suas aulas na Faculdade de Ciências do Porto, explora o paralelo entre matemática e malabarismo de outra forma: dá aos seus alunos uma explicação do que ele chama “malabarismo teórico”. Explica, em palavras e com uma demonstração, como se faz uma sequência malabar. Depois pede aos alunos para imaginarem o que acontecerá se eles não treinarem e se, passado um mês, tiverem de fazer um exame que consiste em executar aquela mesma sequência malabar que ele “explicou”. “Se não treinarem, não aprendem a fazer. Com a matemática, é a mesma coisa. É preciso treinar. Não se aprende de outra forma”, diz.

A Grande Aula acaba com algumas mensagens especiais, em torno daquela pergunta que os cientistas estão habituados a ouvir sobre a sua investigação: “Para que é que isso serve?”

“Para que serve o malabarismo? Serve para fazer crescer o cérebro. Quando aprendemos a fazer coisas novas o nosso cérebro cresce, estabelece novas conexões”, responde. “O poeta alemão Friedrich Schiller dizia que apenas aqueles que têm a paciência necessária para fazer as coisas simples com perfeição adquirem a capacidade de fazer coisas difíceis. Também acredito nisso. Talvez um dia, por causa do malabarismo, se descubram coisas incríveis sobre o Universo. E também acredito que os seres humanos só são capazes de fazer coisas radicalmente novas se forem capazes de fazer coisas que os outros consideram completamente inúteis. Se só fizermos o que toda a gente acha que deve ser feito, provavelmente não faremos descobertas muito radicais.”

Quando a Grande Aula acaba, uma dúzia de alunos e professores mais ousados aceitam o convite de Machiavelo para tentarem executar a “cascata”, com os seus conselhos técnicos, e os mais entusiastas recebem como prémio um conjunto de três bolas.

Mas é provável que todos tenham ficado com uma ideia diferente do que é a matemática, daquilo para que serve, do que faz um matemático e de como as coisas “inúteis” pode ser importantes.

A matemática e o malabarismo
António Machiavelo, matemático
4ª-feira, 8 de maio de 2013
Escola Secundaria Augusto Gomes, Matosinhos

terça-feira, maio 07, 2013

Paulo Portas do outro lado do espelho (e aqui deste lado também)

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 7 de Maio de 2013
Crónica 17/2013

O presidente do CDS faz o seu número no arame e os estudantes do Porto fazem a sua Queima das Fitas

1. O último discurso de Paulo Portas foi um prodígio. Prodígio no sentido maravilhoso da palavra, porque nos mostrou algo de que já tínhamos ouvido falar mas que não sabíamos ao certo se existia e que nos causou aquele misto de espanto e de terror de que se fala nas lendas. Numa única intervenção, Paulo Portas conseguiu ser ministro da coligação mas presidente do CDS, Governo mas oposição, troikista mas patriota, estadista mas Paulinho das feiras, austeritário mas desenvolvimentista, falar para dentro e para fora do partido, para dentro e para fora do país, reforçar a sua posição neste Governo e preparar o seu papel no próximo, elogiar Pedro Passos Coelho e mostrar-lhe que segura o único fio que o segura, ser sensato mas ameaçador, firme mas negociador, cortês mas feroz, tudo sem piscar um olho e quase sem um tremor de voz.

Mas Paulo Portas não nos mostrou apenas que sabe jogar com virtuosismo em vários tabuleiros. O discurso mostrou-nos que já estamos todos a viver num país do outro lado do espelho, onde Paulo Portas é o principal autor dos cortes mas recusa partes essenciais dessas medidas, onde Portas diz que a troika é indispensável mas recusa o seu protectorado humilhante, onde Portas é Pétain e de Gaulle ao mesmo tempo e sem mudar de chapéu.

Portas lembrou-me aquela velha pergunta de algibeira: se um homem dorme com outra mulher e depois conta tudo à legítima, está a enganá-la ou não?

2. Na madrugada do último sábado, quatro homens encapuçados e armados com caçadeiras assaltaram as bilheteiras da Queima das Fitas da Universidade do Porto. A imprensa não dá pormenores sobre o assalto, que foi filmado por câmaras de videovigilância e que ocorreu durante a operação de contagem do dinheiro, mas conhecemos o trágico desenlace: um jovem envolvido na organização, Marlon Correia, estudante finalista da Faculdade de Desporto da Universidade do Porto, de 24 anos, foi morto com dois tiros nas costas por um dos assaltantes, que também feriram a tiro, mas sem gravidade, dois guardas da empresa de segurança ao serviço da Queima das Fitas.

A notícia saiu nos telejornais, com as inevitáveis declarações de estudantes encapados manifestando a sua consternação por um episódio como este ter vindo perturbar o seu festival de bebedeira non-stop. Passadas umas horas, a direcção da Federação Académica do Porto (FAP), lamentando a tragédia ocorrida, anunciava que o programa da Queima prosseguiria como previsto, mantendo as “actividades académicas” programadas e garantia que o estudante morto seria homenageado no decurso das festividades.

A decisão seguia o tom desprendido dos comentários de estudantes que vi na televisão, que manifestavam o sentimento de que a vida continua e que é chato este azar mas a Queima é a Queima. O drama não pareceu ter avivado aquele humano sentimento perante a morte - e, em particular, perante a morte inesperada e violenta de um jovem - que nos faz ganhar consciência da fragilidade da vida e da urgente necessidade de a viver bem, que nos faz querer aproximarmo-nos dos outros e valorizar o que é importante. A morte de Marlon Correia foi apenas um contratempo na organização da Queima que foi preciso gerir para não permitir que ele deixasse marcas na memória de mais uma grande festa “académica”.

Numa declaração ao Jornal de Notícias, o presidente da FAP, Ruben Alves, considerou que se poderia “elaborar algumas teorias” sobre este tipo de actos resultar da actual “conjuntura difícil” mas não retirava daqui mais consequências senão que a “Queima” deste ano iria honrar a memória do estudante morto sem alterar os horários.
Não sei se o assalto resultou da actual “conjuntura difícil”. Do que não tenho dúvida é de que a chocante posição da Federação Académica do Porto e da Associação Académida da Faculdade de Desporto da Universidade do Porto resulta, ela sim, desta “conjuntura difícil”, que está longe de ser apenas conjuntural, e não é alheia a uma desvalorização da vida, das pessoas, da solidariedade e dos sentimentos em geral que constitui o cerne da filosofia neoliberal que nos governa. Cortar a pensão de uns velhos doentes ou condenar trabalhadores à pobreza é tão fácil como ir festejar para o local de um assassinato quando o sangue ainda não secou no chão. São pessoas que não conhecemos, por quem não conseguimos sentir nada de especial. Não nos tocam. Não somos nós.


A filosofia “the show must go on” da organizaçao da Queima não se deve aqui a um dever de engolir as lágrimas e fazer das tripas coração para não defraudar quem tem direito à ilusão que lhe garante uns momentos de felicidade, como vemos no exigente código dos profissionais do espectáculo. Não há aqui nenhuma abnegação. Há precisamente o contrário: a total ausência de disponibilidade para a compaixão. Apenas egoísmo. Os estudantes não quiseram prescindir da festa. Não perceberam sequer por que o deveriam fazer. Que valores festeja esta academia? (jvmalheiros@gmail.com)