terça-feira, julho 30, 2013

Temos o direito de exigir que os ministros não mintam nos currículos?

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 30 de Julho de 2013
Crónica 29/2013


Um dos melhores exemplos da "podridão dos hábitos políticos" é a prática de mentira por omissão sobre os cargos e funções exercidos

1. Rui Machete esqueceu-se de mencionar a sua passagem pela Sociedade Lusa de Negócios/BPN na sua biografia oficial. Detectada a lacuna, um assessor do primeiro-ministro apressou-se a justificá-la com o argumento de que o currículo referia apenas os cargos públicos de Machete. A desculpa é falsa (o currículo referia cargos de Rui Machete noutras empresas) mas é, além disso, uma desculpa esfarrapada. Se houvesse algum critério que restringisse a cargos públicos os currículos dos ministros esse seria um mau critério. É evidente que a elisão da passagem de Machete pela SLN/BPN é apenas uma manobra de branqueamento do seu currículo, confiando na falta de memória dos portugueses e na distracção dos media.


O branqueamento de currículos não é raro na política portuguesa. Recentemente, o ex-secretário de Estado da Inovação e do Empreendedorismo Franquelim Alves também se esqueceu da sua passagem pela SLN e o próprio Pedro Passos Coelho esqueceu no seu currículo que foi administrador da Tecnoforma, uma empresa cuja actividade está a ser investigada pelo Organismo Europeu de Luta Antifraude da União Europeia por suspeita de uso fraudulento de fundos comunitários.

Mas o problema é geral: não há um currículo de ministro que não seja editado para lhe retirar os elementos mais problemáticos, com a desculpa de que não são relevantes. Não é por acaso que a maior parte dos currículos dos políticos não têm datas. É para que as lacunas não sejam tão visíveis.

Os currículos que os ministros deste Governo apresentam no seu site oficial são uma demonstração de falta de vergonha e representam uma descarada colecção de mentiras por omissão.

Alguém em seu perfeito juízo contrataria para um lugar de responsabilidade um profissional que apresentasse um currículo tão cheio de lacunas como aqueles que os nossos ministros apresentam? Ninguém. E não o faria porque um currículo de onde são suprimidas algumas linhas nos faz desconfiar da integridade do seu autor, se não da legitimidade das próprias actividades exercidas.

Alguém aceitaria referências tão vagas como “na última década conciliou a gestão de empresas com a docência” ou “dirigiu um centro de sondagens”?

A opacidade dos currículos dos governantes é um bom exemplo da podridão dos hábitos políticos de que se tem falado ultimamente.

É evidente que Rui Machete não tem de incluir no seu currículo que o embaixador dos Estados Unidos suspeitava em 2008 que ele, durante as duas décadas em que ocupou a presidência da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento, tinha atribuído “bolsas para pagar favores políticos e manter a sua sinecura”, mas esperamos que ele nos diga onde trabalhou e a fazer o quê. Mais: temos o direito de saber e ele tem o dever de nos dizer. E temos o direito de saber porque (isto corre o risco de ser um choque para Machete) os ministros trabalham para nós, para os cidadãos.

É admissível que um currículo seja editado para colocar em evidência aquilo que se se considera mais relevante. Mas não é admissível que as partes embaraçosas sejam apagadas. E, se se pode colocar num comunicado de imprensa uma versão reduzida do currículo, é indispensável que, no site do Governo exista uma versão integral de todos os currículos, com todas as datas e todos os cargos, incluindo as organizações a que se pertenceu e pertence (de clubes desportivos a partidos, da Opus Dei à Maçonaria), as organizações para que se trabalhou, etc.. No caso de Rui Machete, por exemplo, o seu currículo deveria incluir as dezenas ou centenas de cargos que ocupou nos diversos órgãos de gestão das diversas empresas por onde passou, como qualquer dirigente do PSD que se preze.

E, para que não se diga que é fácil criticar sem propor nada de positivo, aqui vai: proponho que todos os políticos eleitos disponibilizem na Internet, nos sites dos organismos a que pertencem, currículos completos, não editados, com a relação de todas as actividades e de todos os cargos que exerceram.

2. Há outro caso onde algum grau de formalidade, de transparência, de honestidade e de preocupação com o rigor histórico seria igualmente bem vindo: as passagens de pastas entre os governantes de um governo cessante e os do governo começante. Não se trata apenas do folhetim de Maria Luís “Não Menti” Albuquerque. As queixinhas dos ministros que não contaram, que contaram mas não contaram tudo, que contaram tudo mas eu não percebi metade não têm lugar no mundo de responsabilidade que nós gostamos de sonhar que é o mundo dos governantes.

E cá vai outra sugestãozinha: será que os serviços da Presidência do Conselho de Ministros não poderiam definir um protocolo a ser seguido nestes casos, que seja aceite por todos os partidos, que seja mesmo seguido, onde os documentos rejam registados e onde as reuniões tenham actas que sejam de facto guardadas e que nos evitem o sacrifício de ter de assitir ao contorcionismo ético-semântico de outras Marias Luíses? (jvmalheiros@gmail.com)

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