terça-feira, agosto 20, 2013

O regresso da sopa dos pobres como modelo de apoio social

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 20 de Agosto de 2013
Crónica 32/2013


O filho mais velho de Cláudia tem dez anos e acompanha a mãe e os dois irmãos mais pequenos à cantina social de Matosinhos. Levam sacos com recipientes vazios que vão levar para casa com o almoço da família. Pai e mãe estão desempregados e o subsídio de desemprego não chega para cobrir as despesas e comprar comida para todos. Ao entrar na cantina, o rapaz cruzou-se com um colega da escola, que deve ter percebido o que a família ia fazer. "Que vergonha!", disse o rapaz à mãe.

A história é contada numa reportagem de Ana Cristina Pereira, publicada há poucos dias nestas páginas, a par de um artigo de Andreia Sanches sobre o Programa de Emergência Alimentar. E nós não podemos senão repetir, como o filho mais velho de Cláudia, "Que vergonha!".

Que vergonha que o Governo de Passos Coelho esteja a mergulhar cada vez mais famílias na pobreza, a destruir os apoios sociais a que todos os cidadãos têm direito nos momentos de necessidade e para os quais todos contribuímos, e a substituí-los por humilhantes programas de caridade, onde os direitos se transformam em esmolas, onde a dignidade das pessoas é ofendida, onde a sua autonomia é negada, onde a sua perda de estatuto é ofensivamente reiterada dia após dia.

É infame que o ministro Mota Soares envergonhe o filho mais velho de Cláudia, uma criança de dez anos cujo único crime é ter pais desempregados. É infame que o ministro Mota Soares apenas aceite alimentar os filhos das Cláudias em troca da sua humilhação. Mas Mota Soares, que de facto é não só ministro para a Promoção da Miséria mas também grão-mestre da Humilhação dos Pobres, não se fica por aqui. Há todos os dias milhares e milhares de crianças que comem a sopa da caridade, sob o olhar envergonhado dos pais, e que rezam para que nenhum colega da escola os veja entrar numa cantina social ou entrar de sacos vazios e sair de sacos cheios de uma IPSS ou de um Centro Paroquial. Mota Soares pode achar esta vergonha despropositada em miseráveis, pode considerar que todos eles têm muita sorte por ter a sua sopinha grátis e pode até argumentar que seria pior se não a tivessem, mas a questão é que o Estado tem o dever de proteger os direitos das pessoas em geral e dos seus cidadãos mais frágeis em particular e que estas doações não são senão retribuições que a sociedade lhes deve - como no-las deve a cada um de nós em caso de necessidade porque todos contribuímos solidariamente uns para os outros. Mota Soares não percebe que o seu papel é gerir os recursos de todos de acordo com as políticas solidárias que a sociedade colectivamente sancionou e não impor um programa de submissão dos pobrezinhos para aterrorizar os trabalhadores e facilitar o ataque aos seus direitos. Mota Soares não percebe que as pessoas são todas iguais em direitos e dignidade e que não pode impor aos filhos dos mais pobres o que nunca admitiria que fosse imposto aos seus filhos. Mota Soares não percebe que está a vender a sua sopa a um preço demasiado alto.

Mota Soares não percebe que é abjecto organizar apoios sociais de uma forma que humilha os necessitados, que eterniza a sua dependência porque não lhes permite qualquer autonomia e que nem sequer é a mais eficiente.

Há 415.000 portugueses que vivem de alimentos doados, quer pelo Banco Alimentar contra a Fome quer pelas cantinas sociais do Programa de Emergência Alimentar. Se somarmos a estes os que são alimentados por organizações privadas que não estão ligadas àqueles programas e por indivíduos a título pessoal, o número excederá certamente o meio milhão. Meio milhão de pessoas que só podem comer todos os dias se forem pedir comida.

O Programa Alimentar de Emergência cresceu paralelamente à redução das prestações e do âmbito do rendimento social de inserção (RSI), que apoia cada vez menos pessoas apesar do evidente aumento das necessidades, mas todos os especialistas consideram que um grande alargamento do RSI seria a medida mais justa, mais respeitadora da dignidade das pessoas, mais promotora da sua autonomia e até mais benéfica para a economia nacional. Porque é que o Governo gosta de distribuir sopa mas reduz o RSI? Porque o RSI proporciona uma autonomia que o Governo não quer promover. O RSI serve para fazer sopa ou para um bilhete de autocarro. A sopa é só sopa. Não permite veleidades.

Usando habilmente de uma propaganda sem escrúpulos, o Governo e a direita em geral conseguiram difundir a ideia de que o RSI promovia a preguiça e atrofiava a iniciativa, além de gastar recursos gigantescos. Era e é mentira, mas a campanha ajudou a estabelecer a sopa dos pobres como modelo social alternativo.

Mota Soares prefere dar sopa e anunciar que os pobres podem fazer bicha para a sopa. "É bom para o Governo e para a alma", sonha Mota Soares. "É maravilhoso ter muitos pobres a quem dar sopa, porque quem dá sopa aos pobres pratica a caridade e quem pratica a caridade está na graça de Deus." É por isso que Mota Soares exulta com a sopa dos pobres. Por isso e porque sabe que na bicha da sopa só estarão os filhos dos outros. (jvmalheiros@gmail.com)

terça-feira, agosto 13, 2013

A direita continua a odiar a escola pública

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 13 de Agosto de 2013
Crónica 31/2013


O Governo, através do Ministério da Educação e Ciência, decidiu aproveitar a situação de estado de choque em que vive a sociedade portuguesa para lançar mais uma investida contra a escola pública, ressuscitando a velha questão do chamado "cheque-ensino", bandeira original do neoliberalismo.

A direita reaccionária sempre odiou a escola pública que, sendo o instrumento de eleição para o combate às desigualdades sociais, constitui o principal obstáculo ao seu programa de reforço do poder e da riqueza de uma casta de privilegiados à custa do empobrecimento e do embrutecimento da restante população. O programa é velho, mas é sempre novo porque a direita reaccionária nunca desistiu dele e a ele regressa sempre que a ocasião se proporciona, adaptando o argumentário ao ar do tempo.

O Governo apresenta a questão do "cheque-ensino" como uma medida que visa garantir "o direito de opção educativa das famílias", o que significa, em português corrente, que o Governo considera que os pais têm o direito de escolher as escolas que os seus filhos devem frequentar e que essa escolha deve poder ser feita não apenas de entre o universo das escolas públicas, mas no universo de todas as escolas, públicas, privadas ou cooperativas. Às vezes o Governo fala mesmo no "dever" do Estado "apoiar o acesso das famílias às escolas particulares e cooperativas."

A propaganda do Governo, e a do neoliberalismo em geral, usa neste debate como palavra-chave a "liberdade de escolha" dos cidadãos. E a liberdade de escolha é uma coisa boa por definição. Quem não é a favor da liberdade de escolha? Só que esta liberdade de escolha é uma falácia, porque não existe nenhum direito à escola privada que o Estado deva garantir a todos os cidadãos. O que existe, sim, é o dever do Estado fornecer educação de qualidade a todos os cidadãos, independentemente das suas condições particulares. A pobres e ricos, brancos e pretos, ateus e budistas. Frequentar uma escola privada não faz parte dos direitos humanos ou dos direitos cívicos de que um cidadão goza e não faz certamente parte dos deveres do Estado garantir esse "direito". Numa sociedade capitalista, como a nossa, os cidadãos têm acesso aos serviços privados que possam comprar e nada mais. E não compete ao Estado (a todos nós) financiar serviços privados a não ser em condições excepcionais, quando seja evidente que essa entidade particular oferece um serviço insubstituível de interesse público, de acesso universal e em condições vantajosas para a comunidade. Não é o caso da escola privada.

O "cheque-ensino" visa vários objectivos: financiar empresas privadas, no âmbito do programa ideológico da direita, de transferência de recursos financeiros para o sector privado e de pauperização do Estado, à la PPP; desviar recursos da escola pública de forma a reduzir o âmbito e a qualidade da oferta (o que está a suceder); impor a ideia de uma escola privada "boa", que o Governo quer proporcionar a todos, e de uma escola publica "má", que deve ser marginalizada; e, como corolário dos anteriores, dar origem a um sistema dual de ensino, de qualidade diferenciada, para ricos e pobres.

Há no discurso do Governo uma outra falácia, não menos grave do que a anterior: a ideia de que as escolas públicas e privadas são estabelecimentos de ensino absolutamente equivalentes, com culturas e práticas em tudo semelhantes e cuja única diferença é a forma de propriedade. De facto, não é assim. A escola pública tem, antes de mais, uma dimensão inclusiva e universal, que a escola privada não tem (nem tem de ter). A escola pública é igualitária no acesso e no funcionamento, por vontade, por definição e por missão e a escola privada não o é nem tem de ser. Dizer que a escola privada é igual à escola pública releva da mesma miopia e da mesma falta de sentido social que leva a dizer que a escola serve apenas para fornecer conhecimentos técnicos de forma a satisfazer as necessidades do mercado de trabalho, como pretende o actual Ministério da Educação e Ciência.

É por isso que comparar o custo de um aluno na escola pública e o de um aluno na escola privada não tem sentido. A comparação serve actualmente a escola pública, mais barata, mas mesmo que ela custasse o dobro da privada ela deveria continuar a ser suportada pela comunidade. Porque a escola pública trabalha para transformar todos os indivíduos do pais em cidadãos e não apenas para produzir alguns técnicos bem pagos. A grande diferença é que a escola pública quer que todos sejamos melhores e assume esse objectivo em relação a todos, mesmo aos mais problemáticos. A escola privada é selectiva por natureza - faz com frequência a mais injusta das selecções, a selecção de classe - e convive com naturalidade com um sistema de castas que a escola pública tem como missão destruir. Fazer outsourcing da educação pública a um sistema produtor de exclusão como a escola privada não faz sentido.

Há uma outra razão para um Estado democrático privilegiar a escola pública: a sua qualidade. A escola pública, em Portugal e no mundo, é talvez o mais bem sucedido de todos os empreendimentos humanos, tendo sido central no combate à ignorância, à pobreza e à injustiça e na construção da democracia, da cultura e da ciência modernas. Algo que deveria fazer pensar os nossos governantes, se o seu objectivo não se resumisse a servir os poderosos à custa dos mais fracos. (jvmalheiros@gmail.com)

terça-feira, agosto 06, 2013

Quando o trabalho obriga a vender o coração e o sorriso

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 6 de Agosto de 2013
Crónica 30/2013


1."I'm lovin'it!" A frase vem estampada nos uniformes, nos cartazes, nas embalagens e no material publicitário da cadeia de fast food McDonald's. O slogan foi criado em 2003 pela agência Heye & Partner (diz-nos a Wikipedia) e desde essa altura que invadiu os milhares de restaurantes da cadeia em todo o mundo. A Heye & Partner tem sede na Alemanha, perto de Munique, e o slogan ecoa num tom moderno esse outro lema alemão famoso: "Arbeit macht Frei." A primeira versão do "I'm lovin' it!" foi, por isso, "Ich liebe es". Gosto disto. Estou a adorar! Isto é mesmo porreiro, pá! Este Arbeit dá gozo, meu!

A particularidade do slogan é que não se trata da declaração de um atributo da marca, de um compromisso da empresa, de uma garantia de qualidade, de uma promessa de bom serviço ou de qualquer outra coisa. Este slogan foi criado pela empresa mas é posto na boca dos trabalhadores. Foi criado para que fossem eles a dizê-lo, como se eles o pensassem e o sentissem. A empresa defenderá que se trata de um contrato livre entre duas partes e que ninguém é obrigado a ir trabalhar para a McDonald's e, portanto, ninguém é obrigado a ostentar o slogan, o que é formalmente verdade, mas todos sabemos o grau de liberdade existente na negociação de contratos de trabalho. Quem vai trabalhar para a McDonald's tem de fazer o seu trabalho, depressa e bem, e tem de dizer que adora trabalhar ali, ainda que o seu trabalho seja duro, mal pago e precário.

Pode defender-se que isto não é muito diferente de tantas outras obrigações profissionais em que se incorre ao assinar um contrato de trabalho e é evidente que existe da parte de qualquer trabalhador um dever geral de protecção do bom nome da empresa onde se trabalha, mas este "I'm lovin' it!" vai um passo à frente. Este "I'm lovin' it!" não é uma mera defesa da reputação da empresa. Nem é sequer uma mera publicidade da marca, que seria entendível sempre como uma declaração da própria empresa. Este "I'm lovin' it!" obriga todos os trabalhadores a declararem activamente a todo o momento o seu gosto pelo trabalho que fazem e a sua adoração pela empresa que os emprega e a fazê-lo em nome pessoal. É uma usurpação da consciência individual que aqui tem lugar. É um abuso em termos de direitos individuais e um atropelo da liberdade de expressão porque limita a liberdade do indivíduo e se apropria, em benefício do empregador, de algo que é da esfera privada do trabalhador: o seu gosto pessoal, a sua liberdade de declarar aquilo de que gosta ou não gosta. Se cada empregado da McDonald's trouxesse um autocolante na camisa que dissesse "Os nossos hambúrgueres são os melhores do mundo!" isso seria entendido como uma alegação da empresa, que não comprometeria a identidade de cada trabalhador. Mas ao impor aquele "I" e aquele "lovin'", a McDonald's visa apropriar-se da alma e do coração das pessoas que trabalham para si. Estas pessoas pertencem-me. Não apenas o seu Arbeit, mas o seu Eu. A questão levanta problemas jurídicos interessantes: se declarar que se adora o seu trabalho faz parte dos deveres de um trabalhador da McDonald's, será que esse mesmo trabalhador da McDonald's, nas suas horas livres, pode dizer que detesta o seu trabalho? Repare-se que não se trata de difamar ou de fazer sequer uma crítica ao seu empregador, mas de fazer um comentário que é da estrita esfera pessoal ("não gosto de").

2. Há muitos exemplos de como as empresas limitam de uma forma cada vez mais insidiosa as liberdades dos seus trabalhadores, impondo ditaduras de facto que restringem o exercício das liberdades cívicas constitucionais a escassas horas da vida dos cidadãos - as que decorrem entre o trabalho e o sono - e se apropriam de uma forma cada vez mais invasiva de espaços reservados da sua vida social e privada.

Uma das formas de repressão laboral que se tornaram mais comuns - em particular nos trabalhadores que têm de atender o público - é a obrigação... de sorrir. Porquê? Pela mesma razão por que os empregados da McDonald's têm de dizer que adoram o que fazem: porque os magos do marketing descobriram que, assim, os clientes se sentem mais felizes e, quando os clientes se sentem mais felizes, compram mais. E porque, cada vez mais, os patrões pensam que são donos dos seus trabalhadores. Nos Estados Unidos, o sorriso pode ser uma obrigação contratual e a sua falta, justa causa de despedimento. Haverá coisa mais triste? É evidente que todos preferimos ser atendidos por empregados naturalmente alegres e sorridentes, mas será lícito impor, como condição contratual, o sorriso constante? Fará o sorriso parte das obrigações profissionais, como pesar a farinha ou dar informações sobre um frigorífico? Ou fará parte daquele eu íntimo que não queremos e não devemos pôr à venda? Que não se pode pôr à venda porque não é uma mercadoria, porque não foi feito para ser vendido?

Impor um sorriso como ferramenta de trabalho é dizer a uma pessoa que não é dona dos seus sentimentos nem da sua expressão, que eles pertencem "à companhia", que são meras ferramentas de produção. Impor um sorriso como ferramenta de trabalho é uma forma de proxenetismo, de esclavagismo light, aquele que a gestão moderna se tem empenhado em impor em substituição dos campos de trabalho. (jvmalheiros@gmail.com)