terça-feira, agosto 06, 2013

Quando o trabalho obriga a vender o coração e o sorriso

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 6 de Agosto de 2013
Crónica 30/2013


1."I'm lovin'it!" A frase vem estampada nos uniformes, nos cartazes, nas embalagens e no material publicitário da cadeia de fast food McDonald's. O slogan foi criado em 2003 pela agência Heye & Partner (diz-nos a Wikipedia) e desde essa altura que invadiu os milhares de restaurantes da cadeia em todo o mundo. A Heye & Partner tem sede na Alemanha, perto de Munique, e o slogan ecoa num tom moderno esse outro lema alemão famoso: "Arbeit macht Frei." A primeira versão do "I'm lovin' it!" foi, por isso, "Ich liebe es". Gosto disto. Estou a adorar! Isto é mesmo porreiro, pá! Este Arbeit dá gozo, meu!

A particularidade do slogan é que não se trata da declaração de um atributo da marca, de um compromisso da empresa, de uma garantia de qualidade, de uma promessa de bom serviço ou de qualquer outra coisa. Este slogan foi criado pela empresa mas é posto na boca dos trabalhadores. Foi criado para que fossem eles a dizê-lo, como se eles o pensassem e o sentissem. A empresa defenderá que se trata de um contrato livre entre duas partes e que ninguém é obrigado a ir trabalhar para a McDonald's e, portanto, ninguém é obrigado a ostentar o slogan, o que é formalmente verdade, mas todos sabemos o grau de liberdade existente na negociação de contratos de trabalho. Quem vai trabalhar para a McDonald's tem de fazer o seu trabalho, depressa e bem, e tem de dizer que adora trabalhar ali, ainda que o seu trabalho seja duro, mal pago e precário.

Pode defender-se que isto não é muito diferente de tantas outras obrigações profissionais em que se incorre ao assinar um contrato de trabalho e é evidente que existe da parte de qualquer trabalhador um dever geral de protecção do bom nome da empresa onde se trabalha, mas este "I'm lovin' it!" vai um passo à frente. Este "I'm lovin' it!" não é uma mera defesa da reputação da empresa. Nem é sequer uma mera publicidade da marca, que seria entendível sempre como uma declaração da própria empresa. Este "I'm lovin' it!" obriga todos os trabalhadores a declararem activamente a todo o momento o seu gosto pelo trabalho que fazem e a sua adoração pela empresa que os emprega e a fazê-lo em nome pessoal. É uma usurpação da consciência individual que aqui tem lugar. É um abuso em termos de direitos individuais e um atropelo da liberdade de expressão porque limita a liberdade do indivíduo e se apropria, em benefício do empregador, de algo que é da esfera privada do trabalhador: o seu gosto pessoal, a sua liberdade de declarar aquilo de que gosta ou não gosta. Se cada empregado da McDonald's trouxesse um autocolante na camisa que dissesse "Os nossos hambúrgueres são os melhores do mundo!" isso seria entendido como uma alegação da empresa, que não comprometeria a identidade de cada trabalhador. Mas ao impor aquele "I" e aquele "lovin'", a McDonald's visa apropriar-se da alma e do coração das pessoas que trabalham para si. Estas pessoas pertencem-me. Não apenas o seu Arbeit, mas o seu Eu. A questão levanta problemas jurídicos interessantes: se declarar que se adora o seu trabalho faz parte dos deveres de um trabalhador da McDonald's, será que esse mesmo trabalhador da McDonald's, nas suas horas livres, pode dizer que detesta o seu trabalho? Repare-se que não se trata de difamar ou de fazer sequer uma crítica ao seu empregador, mas de fazer um comentário que é da estrita esfera pessoal ("não gosto de").

2. Há muitos exemplos de como as empresas limitam de uma forma cada vez mais insidiosa as liberdades dos seus trabalhadores, impondo ditaduras de facto que restringem o exercício das liberdades cívicas constitucionais a escassas horas da vida dos cidadãos - as que decorrem entre o trabalho e o sono - e se apropriam de uma forma cada vez mais invasiva de espaços reservados da sua vida social e privada.

Uma das formas de repressão laboral que se tornaram mais comuns - em particular nos trabalhadores que têm de atender o público - é a obrigação... de sorrir. Porquê? Pela mesma razão por que os empregados da McDonald's têm de dizer que adoram o que fazem: porque os magos do marketing descobriram que, assim, os clientes se sentem mais felizes e, quando os clientes se sentem mais felizes, compram mais. E porque, cada vez mais, os patrões pensam que são donos dos seus trabalhadores. Nos Estados Unidos, o sorriso pode ser uma obrigação contratual e a sua falta, justa causa de despedimento. Haverá coisa mais triste? É evidente que todos preferimos ser atendidos por empregados naturalmente alegres e sorridentes, mas será lícito impor, como condição contratual, o sorriso constante? Fará o sorriso parte das obrigações profissionais, como pesar a farinha ou dar informações sobre um frigorífico? Ou fará parte daquele eu íntimo que não queremos e não devemos pôr à venda? Que não se pode pôr à venda porque não é uma mercadoria, porque não foi feito para ser vendido?

Impor um sorriso como ferramenta de trabalho é dizer a uma pessoa que não é dona dos seus sentimentos nem da sua expressão, que eles pertencem "à companhia", que são meras ferramentas de produção. Impor um sorriso como ferramenta de trabalho é uma forma de proxenetismo, de esclavagismo light, aquele que a gestão moderna se tem empenhado em impor em substituição dos campos de trabalho. (jvmalheiros@gmail.com)

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