terça-feira, setembro 10, 2013

A escravatura como forma de combater o desemprego?

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 10 de Setembro de 2013
Crónica 34/2013

Estágios não remunerados tornaram-se puras ferramentas de exploração e não têm justificação1. As notícias sobre o emprego em Portugal são óptimas e mostram que a retoma vem aí, como o Governo não se cansa de repetir.

Para começar, a taxa de desemprego, que se dizia que era de 17,8% em Abril, foi corrigida para 17,3% pelo Eurostat. E a taxa de Maio, depois da revisão do Eurostat, passou dos 17,6% para os 17%. Depois ainda foi corrigida dos 17,4% para os 16,7% em Junho e depois ainda desceu para os 16,5% em Julho. Com as revisões do Eurostat, Portugal passou a ser o quinto país da União Europeia com a mais alta taxa de desemprego e deixou de ser o terceiro, o que é óptimo.

Ou não será óptimo? Antes de mais, é bom ter presente que a taxa de desemprego não mede o número de pessoas sem trabalho mas o de pessoas que procuram emprego e que não o encontram. E todos sabemos que existem muitas pessoas que, devido ao seu perfil de especialização ou falta dela e outras razões (idade, género, deficiência) já desistiram de procurar emprego porque sabem que não o encontrarão. Há assim muitos que deveriam ser contabilizados como desempregados e não o são, o que significa que devemos desconfiar dos números absolutos de desempregados, certamente mais elevados do que diz o Governo. No entanto, mesmo que o cálculo seja enviesado, desde que a taxa seja calculada sempre da mesma forma ela serve pelo menos para nos mostrar se as coisas estão a piorar ou a melhorar. E, como mostra a evolução da taxa, o que interessa é que as coisas estão a melhorar, o que é óptimo.

Ou não será óptimo? Vejamos outro dado, recentemente divulgado: a evolução do número de empregos remunerados. Se fosse verdade que o desemprego está a descer, este número deveria estar a subir, mas a verdade é que não está.

Segundo o Instituto Nacional de Estatística (INE), dos 4,499 milhões de empregos que existem em Portugal, neste momento apenas 3,85 milhões são remunerados, o que representa o número mais baixo desde o início de 1997. O número mais baixo dos últimos 16 anos e meio!

Nestes “trabalhadores não remunerados” (onde estão, por exemplo, familiares dos donos de pequenas empresas) há muitos desempregados que não procuram outro emprego porque não têm esperança de o encontrar - já que não é crível que alguém prefira trabalhar sem receber se tiver alternativa.

É possível que a taxa de desemprego continue a descer, já que os salários estão a sofrer uma forte degradação. Só que isso, ao contrário do que pretendem os neoliberais, não representa uma melhoria das condições de vida das pessoas ou da economia. É evidente que, se os salários continuarem a descer e os despedimentos forem cada vez mais fáceis, haverá cada vez mais empregadores dispostos a oferecer trabalho por baixos salários. A questão é a qualidade desses postos de trabalho. Portugal já tem a vergonha de ser um país onde ter um emprego não representa uma protecção contra a miséria e o que tudo indica é que o número de empregados pobres vai continuar a aumentar. O que pode coincidir com uma descida da taxa de desemprego, mas está longe de ser óptimo. Se o governo levasse a sua avante e o salário mínimo fosse eliminado (um sonho dos neoliberais) o desemprego provavelmente desceria de forma radical. Seria possível contratar trabalhadores em troca de um prato de sopa ou de um par de sapatos e haveria suficientes “empregos” para todos e muitos desesperados prontos a aceitá-los. Afinal, nas sociedades esclavagistas não havia escravos desempregados. A desvalorização do trabalho, as descidas de salários, os despedimentos, o aumento de impostos, o empobrecimento geral da sociedade têm este objectivo: reduzir os salários até ao ponto em que os trabalhadores se vejam reduzidos a uma quase escravidão. Entretanto, as televisões ir-nos-ão dando as boas notícias do Eurostat!

2. Defendi ao longo da minha vida de jornalista a realização de estágios não remunerados de jovens candidatos a jornalistas e coordenei pessoalmente muitos desses estágios.

Tratou-se sempre de situações onde tinha a absoluta convicção de que a formação que estava a dar aos estagiários era profissionalmente útil, pessoalmente enriquecedora e com um valor reconhecido pelo mercado. E parecia-me aceitável que esses estágios não fossem remunerados porque acreditava que aquilo que dávamos aos nossos formandos valia muito mais que um ordenado. Mas a verdade é que é cada vez mais raro que um estágio não remunerado seja concebido e executado como uma acção de formação séria e, na esmagadora maioria dos casos, é apenas um eufemismo para uma exploração sem-vergonha de trabalhadores jovens em busca do primeiro emprego. Muitos dos não-desempregados-não-empregados que não aparecem nas estatísticas de desemprego são estagiários explorados por empresas sem escrúpulos. Hoje penso que os estágios não remunerados se tornaram puras ferramentas de exploração e, por isso, devem acabar. Um estagiário merece pelo menos o salário mínimo. (jvmalheiros@gmail.com)

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