terça-feira, outubro 29, 2013

Mais pobres mas ainda à espera do dia de amanhã

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 29 de Outubro de 2013
Crónica 40/2013


Ninguém se resigna à fome dos filhos. Mesmo quem não vai às manifestações sente a mesma raiva no peito.

1. “Ficámos mais pobres” é o lugar-comum com que se reage à morte dos grandes criadores. É evidente que a morte é sempre uma perda e artistas como Lou Reed, um amigo tão próximo, que nos compreendia tão bem, que nos acompanhou em tantas viagens, que nos mostrou tantas coisas que não teríamos compreendido sem a sua ajuda, que nos levou a tantos lugares onde não teríamos ousado espreitar sem a sua ajuda, deixam um vazio que não se pode colmatar. Mas não consigo sentir a morte de Reed - e de todos os outros que nos vão morrendo - como uma perda. Nós ganhámos a vida de Lou Reed e a sua música e, podemos dizê-lo agora, foi tudo bom. Não ficámos mais pobres. Nem antes nem agora. Ele partilhou tudo connosco e ficámos mais ricos. Mais ricos, mais sabedores, mais humanos, mais felizes, mais vivos. Ele pode ter perdido a sua vida mas nós ganhámo-la. Ele ofereceu-no-la durante cinquenta anos, the good and the bad, the perfect day and the if only. Não nos ficou a dever nada e nós devemos-lhe muitas coisas.
Teríamos ficado mais pobres era se Reed tivesse preferido ser dactilógrafo em vez de músico. Quanto ao vazio que nos deixa, é sempre assim, mas não é um vazio feito de nada. Nós somos feitos destes vazios, existimos à volta destes vazios, somos tão feitos de vazios como do resto. Somos esponjas. A vida é uma esponja.

O concerto acabou. E esta é uma daquelas situações em que pedir um encore é um abuso. O homem deu tudo o que podia e mais do que devia.
2. Ficámos a saber no sábado passado, depois da manifestação “Não há becos sem saída!”, que estamos ainda mais pobres do que pensávamos. A manifestação era contra a troika, o governo, a “austeridade”, a política de empobrecimento, o aumento da desigualdade, o aumento da pobreza, o aumento do desemprego, o roubo de salários e de pensões, a queda dos salários, a destruição dos direitos laborais, a destruição da saúde, a destruição da educação, a destruição da segurança social, a destruição do património público e a venda das empresas públicas, a destruição dos transportes públicos, o exílio forçado dos jovens, a fuga fiscal das grandes empresas para os off-shores, contra a injustiça e a fome e a doença e a ignorância, contra a hipocrisia e as mentiras do governo, contra a desonestidade dos governantes, contra o ataque ao estado de direito, contra o ataque à democracia. Era de desejar que muita gente respondesse ao apelo. Sabemos que muita gente responde ao apelo na sua cabeça e no seu coração e sente na carne todas estas agressões. E, no entanto… Apesar de vivermos um dos períodos mais negros da história de Portugal, apesar de sermos governados por um governo colaboracionista que renega todas as suas promessas, todos os seus juramentos, todas as suas palavras, que despreza todos os seus compromissos com os cidadãos e o seu país em prol de uma servidão abjecta a poderes inimigos do interesse nacional, apesar disso… a manifestação não conseguiu atrair senão uns escassos milhares.

Percebe-se porquê. Não há objectivos claros para além do protesto, não há alternativas governativas à vista e aquelas que espreitam a sua oportunidade são quase tão preocupantes como a aventesma que ocupa S. Bento, não há lideranças mobilizadoras. As pessoas estão cansadas e desanimadas, outras têm medo de perder o pouco que têm, outras acham que a rua não consegue mudar nada, outros já saíram do país e outros estão na lista de espera. Seja qual for a razão, esta jornada de protesto ficou tão aquém do que seria justo que constituiu uma vitória do Governo. Por enquanto, o Governo está a ganhar ao povo.

É verdade que a força está do seu lado, que a maioria de carneiros que faz de deputados da nação no Parlamento cumpre com um surpreendente zelo canino as ordens da voz do dono, que não há escrúpulos nos ministérios, que a campanha de desinformação da direita continua a ser repetida pelas televisões como se tratasse do Evangelho, mas poder-se-ia esperar que ainda houvesse algum fogo, que houvesse um peito ilustre lusitano, que a dignidade alimentasse a justa indignação e que pudéssemos ter na rua a maré e o grito que a situação exige. Não tivemos. Estamos mais pobres do que pensávamos.

O governo, enquanto roubava subsídios e salários e pensões e serviços sociais ao povo, foi-lhe roubando também a alma. As pessoas sentem-se tristes e cansadas. Outras têm demasiada vergonha ou demasiado nojo para sair à rua. Há substâncias nas quais nem com um pau gostamos de tocar e o governo é uma delas.

Mas atenção: ninguém está resignado. Ninguém se resigna à fome dos filhos. As pessoas esperam. Milhares e milhares que não estiveram na manif, talvez milhões, sentem a mesma raiva no peito. O governo está a conseguir encurralar as pessoas, a condená-las ao desemprego e à pobreza, mas ninguém desistiu. A fome e a humilhação não convidam à resignação e, um dia, há camisas rasgadas que se transformam em bandeiras. É um slogan? Um verso de um poema? É. Mas é também verdade. A história está cheia de exemplos. Não há nada tão mobilizador como um verso. (jvmalheiros@gmail.com)

terça-feira, outubro 22, 2013

Patriotas pequeninos com uma pàtriazinha pequenina na lapela

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 22 de Outubro de 2013
Crónica 39/2013


“Viver em protectorado” e impor os mandados dos “protectores” é algo natural para Paulo Portas


1. O debate sobre a constitucionalidade das medidas contidas no Orçamento de Estado de 2014 tem algo de fútil. É importante em termos práticos, é uma questão de princípio central num estado de direito (trata-se do respeito pela lei fundamental, que o mesmo é dizer pela lei democrática) e é o combate político do momento mas, paradoxalmente, tem algo de fútil. E tem algo de fútil porque, desde a assinatura do memorando de entendimento com a troika, que Portugal não vive num regime constitucional. Este facto tem aliás sido salientado pelo vice-primeiro-ministro Paulo Portas quando usa a expressão “protectorado”, dando mostras de uma leviandade cuja aceitação o deve divertir imenso mas que, em momentos menos tolerantes da história, lhe poderia custar a cabeça. Que “viver em protectorado” e impor a nível nacional os mandados dos “protectores” seja algo aceite com tal naturalidade por alguém que se diz conservador e patriota é apenas uma das muitas incoerências com que o relativismo moral de Portas nos tem brindado. Mas pavoneia-se com uma pàtriazinha pequenina na lapela.

A violação dos princípios constitucionais com que temos convivido começa logo no artigo primeiro, que declara que “Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária”.

Para que a actuação do governo estivesse de acordo com o primeiro artigo da Constituição, teria sido necessário revê-la e reescrevê-lo, transformando-o em algo como “Portugal é um estado sob ocupação, tutelado por potências estrangeiras, baseado na preeminência do poder financeiro e na vontade das instituições financeiras internacionais e empenhada na construção de uma sociedade com desigualdades sociais crescentes.”

O artigo terceiro, “A soberania, una e indivisível, reside no povo”, deveria passar simplesmente a “A soberania, una e indivisível, reside na troika”.

O artigo 12º, que abre o capítulo dos direitos e deveres fundamentais, que reza actualmente “Todos os cidadãos gozam dos direitos e estão sujeitos aos deveres consignados na Constituição” deveria passar a proclamar “Os direitos de que eventualmente gozem os cidadãos serão conferidos de acordo com o seu poder financeiro, a sua origem de classe e a sua filiação partidária”.

Quanto à acção do Governo, ela enxovalha todos os dias o artigo 199 (“Defender a legalidade democrática”, “Praticar todos os actos e tomar todas as providências necessárias à promoção do desenvolvimento económico-social e à satisfação das necessidades colectivas”). Uma das vantagens de que o Governo, apesar de tudo, goza é do facto de a Constituição, apesar de definir as competências do poder executivo em termos formais, não lhe atribuir uma obrigação de honestidade, de respeito pela verdade, de integridade moral, de respeito pelas promessas eleitorais, de defesa do património nacional, de defesa do interesse nacional a ser respeitadas por esse executivo, assim como não prever sanções em caso de traição reiterada desse interesse nacional - ainda que outras leis o façam. Mas quanto a inconstitucionalidades estamos devidamente servidos, a todas as horas do dia. O Orçamento de 2014 é apenas mais um episódio.

2. Não há dia em que os jornais não tragam meia dúzia de histórias que retratam o nível de abjecção das medidas de “austeridade” do governo. Basta escolher. Anteontem foi oDia da Paralisia Cerebral, um momento escolhido para informar a população sobre a doença e para reunir doentes e familias em confraternização. Os doentes com paralisia cerebral são apenas um dos grupos sob ataque do Governo. O que lhes acontece? Para Nuno Crato fazer o seu brilharete de cortes na Educação, há cada vez mais crianças com paralisia cerebral que estão sem escola. As escolas não têm pessoas qualificadas nem condições materiais para acolher e ensinar estas crianças, que têm de ficar em casa. Como é de esperar, são as crianças com deficiências mais profundas as mais afectadas. E isto além de o Estado não considerar dignas de ajuda as famílias com um filho com paralisia cerebral onde um casal ganhe 1256 euros. Fraldas, medicamentos, ventiladores, equipamentos especiais? O Governo acha que 1256 euros chega para tudo. Não ouviram? Só há dinheiro para os bancos! Que parte desta frase tão simples é que estas famílias não perceberam?

A Constituição diz que “Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei”? O Governo acha que não.

Quem tem um filho com uma deficiência ou uma doença grave percebe bem o que significa o Estado Social: uma solidariedade que mutualiza os riscos, que garante o indispensável a todos, que é boa para todos. Infelizmente, os membros do Governo vivem numa fantasia de omnipotência adolescente, escondidos dentro dos seus carros, embriagados de felicidade por haver gente rica que os trata pelo primeiro nome. E sabem que há bons empregos à sua espera nos escritórios daqueles a quem servem. Que importância têm uns miúdos torcidos numas cadeiras de rodas? (jvmalheiros@gmail.com

terça-feira, outubro 15, 2013

Serviços mínimos para os direitos dos trabalhadores

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 15 de Outubro de 2013
Crónica 38/2013


Qual é a “necessidade social impreterível” que pode justificar a circulação de 25 por cento dos comboios do Metro?

Os trabalhadores do Metropolitano de Lisboa estão hoje em greve, em protesto contra a privatização das empresas de transportes públicos, contra a extinção dos postos de trabalho e contra a degradação das condições de trabalho na empresa.

Ao contrário do que aconteceu na greve da semana passada, convocada pelas mesmas razões, desta vez o Tribunal Arbitral decidiu exigir aos trabalhadores a realização de serviços mínimos, correspondentes a 25 por cento do serviço de transporte - o que significa uma circulação de comboios com um intervalo médio de 15 a 30 minutos.

A fixação de serviços mínimos é criticada pelos sindicatos, que denunciaram que a empresa, para cumprir esses 25 por cento do serviço de transporte, estava a convocar a totalidade dos trabalhadores, pondo assim em causa o seu direito à greve, mas a questão de fundo é a própria existência de serviços mínimos que, neste contexto, parece manifestamente abusiva.

Na realidade, a filosofia dos “serviços mínimos” plasmada na Constituição tem vindo a ser desvirtuada pela lei, pelos colégios arbitrais e pela prática dos tribunais, que fazem uma leitura claramente ideológica e maximalista desta figura, decidindo de forma sistemática contra os trabalhadores e pondo em causa de facto o direito constitucional à greve (veja-se o caso da recente greve dos professores).
A Constituição determina que, durante as greves, devem ser garantidos os “serviços necessários à segurança e manutenção de equipamentos e instalações” e os “serviços mínimos indispensáveis para ocorrer à satisfação de necessidades sociais impreteríveis”. Percebe-se bem que, no caso de uma greve numa fábrica, seja necessário garantir o funcionamento em segurança de um alto-forno, para evitar um grave prejuízo ou uma catástrofe. Como se percebe que, no caso de uma greve na saúde, se garantam os serviços de urgência dos hospitais e os tratamentos indispensáveis de doentes crónicos ou internados. Como se percebe ainda que, no caso de uma greve geral de transportes num dia de eleições, seja indispensável garantir essa “necessidade social impreterível” que é o acesso às secções de voto, decretando serviços mínimos ou mesmo uma requisição civil que o possam garantir.

Mas não se percebe de todo qual é a “necessidade social impreterível” que pode justificar a manutenção de 25 por cento dos comboios do Metro. Na realidade, por importante que sejam os transportes, é abusivo considerar que o transporte por uma dada empresa em certos trajectos constitui uma “necessidade social impreterível” que justifique a definição de serviços mínimos. Seria assim, por hipótese, se estivessem em causa todos os transportes (incluindo os particulares), o que poria em causa o direito de circulação das pessoas ou o seu direito ao trabalho, mas é evidente que a greve de uma empresa não preenche as condições. Mesmo que o uso do Metro, num caso particular, corresponda a uma “necessidade social impreterível”, é impossível garantir que essa necessidade vai ser satisfeita pelos 25 por cento, a menos que se realizem inquéritos à entrada a cada um dos passageiros. O entendimento do Tribunal Arbitral é assim, mais uma vez, um entendimento enviesado, ideológico, de classe, anti-laboral e pró-Governo.

A questão é que a definição de serviços mínimos não pode justificar-se pelo incómodo que uma greve pode causar, por grande que ele seja. Essa justificação não possui a mínima cobertura constitucional e, caso a tivesse, isso seria uma proibição da greve. As greves são feitas para causar incómodo, pois essa é a forma de chamar a atenção para uma dada causa política e de pressionar em favor ou contra certas medidas.

A definição dos serviços mínimos decretados pelo Metro de Lisboa só se entende no seio de uma guerra de classe, onde se pretende reconquistar palmo a palmo os direitos conquistados pelos trabalhadores nas últimas décadas, dificultar o exercício da greve, reduzir o seu impacto para apresentar a greve como um fracasso da luta laboral e, acima de tudo, virar os trabalhadores uns contra os outros.

De facto, se o Metro estivesse hoje fechado - como na semana passada -, os viajantes tê-lo-iam sabido antecipadamente e teriam de encontrar alternativas. Estando abertas as estações, é natural que muitos milhares tentem usar o Metro para sua imensa frustração (longas esperas, atrasos, apertos, irritação, desconforto, conflitos) e que isso se volte contra os trabalhadores grevistas e contra o direito à greve.

É significativo que eu, ontem, tenha ouvido na estação Baixa-Chiado uma funcionária do Metro, numa bilheteira, responder à pergunta “Há greve amanhã?” com a resposta “Amanhã há comboios!”, não sei se seguindo directivas das chefias, mas fornecendo uma informação enganosa que não pode ter outro efeito que não exasperar quem hoje tentou usar o Metro.

Assim, o que a definição destes serviços mínimos faz, na prática, é pôr em causa algumas (essas sim) “necessidades sociais impreteríveis”: o direito dos trabalhadores a defender as suas condições de trabalho, os seus empregos e as suas empresas e a recorrer à greve; o direito dos cidadãos a defender as empresas públicas, os transportes públicos e as funções sociais do Estado. (jvmalheiros@gmail.com)

terça-feira, outubro 08, 2013

A dívida é sustentável quando não há escrúpulos

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 8 de Outubro de 2013
Crónica 37/2013


Decidir se a dívida é sustentável ou insustentável é uma questão não só económica, mas política e moral

Se o Governo português declarasse que a actual dívida pública é insustentável esse gesto teria de ter como consequência a abertura imediata de um processo de renegociação dessa dívida com os credores que a detêm. Essa renegociação, feita em nome dos interesses do país, teria de se saldar por um perdão de uma parte substancial dessa dívida, por uma descida dos juros a aplicar sobre a dívida restante e por um reescalonamento dos pagamentos, de preferência de forma indexada ao desempenho da economia (balança comercial) e a indicadores sociais (desemprego).

É evidente que se pode perguntar “Por que razão é que os credores aceitariam receber menos dinheiro e mais tarde se podem receber mais dinheiro e mais cedo?”
A resposta é que há uma situação em que os credores aceitam sempre renegociar dívidas: quando essa opção é melhor que a alternativa. A renegociação é aceite pelos credores sempre que existe um risco de incumprimento do devedor. Perante a possibilidade de deixar de receber pagamentos, é racional que um credor baixe juros e alargue prazos de pagamento. Esta renegociação não é um favor do credor nem é um pecado do devedor. É algo comum no negócio. Segundo a lógica da economia capitalista, é saudável ganhar ou perder com os negócios e, às vezes, perde-se. 

Quando se empresta dinheiro a quem não pode pagar, fez-se um mau investimento e, por isso, perde-se. E é uma condição essencial à existência de um são mercado concorrencial que se possa ganhar quando se faz um bom negócio e se perca quando se faz um mau negócio. Se houvesse sempre a garantia de ganhar, fazendo bons ou maus negócios, não haveria mercado e não haveria a sobrevivência dos mais capazes, como reza a teoria. Mas - pode argumentar-se - isso não incentiva todos os devedores a exigir renegociações? Isto não desequilibra o mercado em benefício dos incumpridores? Não, por duas razões: por um lado, o credor pode não aceitar a renegociação se considerar que tem boas possibilidades de receber todo o seu dinheiro; por outro lado, o devedor paga um preço em termos de reputação e, da próxima vez que precisar de financiamento, pode não o encontrar no mercado, o que constitui uma forte penalização.

Quando o devedor é uma empresa, é fácil avaliar os seus activos e ver se ela tem ou não condições para pagar. O seu património constitui um conjunto finito, conhecido. No caso de um país as coisas são mais complicadas. Mesmo que um estado não tenha reservas no tesouro nacional e não possa imprimir dinheiro, pode sempre aumentar impostos, confiscar bens privados, vender património, vender licenças para a exploração de bens públicos. De facto, um estado só declara incumprimento quando se atinge uma linha vermelha que ele próprio decide. Mas pode acontecer que um governo ache que o pagamento da dívida nos termos contratados se sobrepõe a todos os deveres e deve ser feita “custe o que custar”. Pode acontecer que um governo pense que o pagamento da dívida se sobrepõe à lei do país, aos direitos humanos, à moral.

Neste caso, aumentará impostos, cortará na educação e saúde, cortará nas pensões, nos apoios sociais e venderá todos os bens públicos que possa. Quando se decide pagar custe o que custar e não renegociar nunca, o incumprimento pode nunca acontecer, mesmo que as condições dos empréstimos sejam moralmente abjectas e economicamente destructivas. Pode-se vender a Batalha e a Torre de Belém. Pode-se vender o Algarve e a Madeira. Pode-se vender o voto nas instâncias internacionais a quem pagar mais. Pode-se vender concessões mineiras sem exigir garantias para o ambiente. Pode-se garantir uma exportação de milhares de engenheiros por ano para a Alemanha (a Alemanha gosta de receber Fremdarbeiter). Pode-se oferecer o país para fazer experiências científicas difíceis de aceitar noutros países. Pode-se criar uma rede de bordéis para utilização de altos funcionários de organizações credoras. Pode-se fazer imensas coisas para gerar dinheiro, pagar a dívida e satisfazer os credores. Custe o que custar.

Inversamente, quando existe um mínimo de moralidade e de sentido patriótico, há abjecções a que não se admite descer e que fazem com que a dívida seja insustentável.

A maior parte dos economistas não comprometidos com os partidos do poder acha que a dívida actual é insustentável.

Passos Coelho e Cavaco Silva, pelo contrário, acham que é sustentável. (É verdade que Cavaco diz que é masoquismo dizer o contrário, sendo que antes disse o contrário do que disse agora, mas isso é aquele problema de fios trocados que nós fingimos não ver).

Há ainda imensas coisas que eles acham que se pode fazer para ir buscar dinheiro. Não existe linha vermelha definida pela lei, pela moral ou pelo interesse nacional que eles não admitam ultrapassar.

Isto significa que, enquanto Passos Coelho estiver no poder, a renegociação não será vista como a melhor opção para os credores. Eles sabem que têm um amigo na presidência e outro em S. Bento. Enquanto eles lá estiverem, os credores estão garantidos. A dívida vai ser sustentada. Os portugueses, esses, é que vão ficar sem sustento. (jvmalheiros@gmail.com)

terça-feira, outubro 01, 2013

Política ma non troppo

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 1 de Outubro de 2013
Crónica 36/2013

Como é que há tanta gente que não percebe que as eleições são para fazer política?

Primeira nota: uma taxa de abstenção recorde em eleições autárquicas. Mais de 47 por cento dos eleitores decidiram ficar em casa.

Nestas eleições. Que eram autárquicas, que são aquelas eleições de proximidade, onde toda a gente percebe em que é que está a votar, onde toda a gente sabe o que quer mudar no seu concelho e na sua freguesia, onde toda a gente tem uma opinião sobre o que fizeram os que estiveram lá até hoje, onde muita gente até conhece os candidatos pessoalmente, onde há interesses pessoais concretos que estão em jogo, onde até havia independentes para satisfazer o gosto dos que “estão fartos dos partidos” e/ou dos que querem “dar uma lição aos partidos”.

Mais de 47 por cento de abstenção nestas eleições. Que eram as primeiras eleições depois da austeridade “custe o que custar”, desde que a troika começou a governar Portugal, desde que o governo colaboracionista de Passos Coelho e Paulo Portas tomou posse, desde que o governo começou a pôr em prática o seu programa contra o povo. As primeiras eleições onde era possível exprimir o seu sentimento de desagrado, de repúdio, de indignação, com menos incómodo e com mais eficácia do que marchando numa manifestação.

Mas 47 pessoas em cada cem (o número pode ser de facto 38, devido aos eleitores-fantasma que por razões misteriosas continuam a persistir nos cadernos eleitorais, mas é o único que permite comparações com as eleições precedentes) preferiram não ir votar. Porquê? Comodismo? Desilusão com a política? Forma infantil de “castigar” os partidos? Não vale a pena dizer que este é um fenómeno universal, que noutras eleições e noutros países a abstenção ainda é mais elevada. A abstenção é o contrário da democracia porque significa abdicar de um direito inalienável e delegar em outros (quaisquer outros) o nosso poder soberano. A abstenção é um ácido que corrói a democracia e é preciso começar a combatê-la de forma eficaz.

Segunda nota: nunca houve tantos votos brancos e nulos numas eleições autárquicas. Um total de 6,82%. Mais votos destes que em todos os independentes. Duas vezes mais do que no CDS-PP. Votos de pessoas que se deram ao incómodo de ir votar, mas para dizer “não” a todos os candidatos. Um real voto de protesto, ao contrário da abstenção, impossível de caracterizar. Cidadãos que querem uma coisa outra da política e que estão por ali, à espera.

Terceira nota: o PS ganhou as eleições autárquicas a nível nacional. Em votos, em câmaras, em cidades importantes, em Lisboa, em Associação Nacional de Municípios. Mas teve 1.800.000 votos. E nas eleições de 2009, que perdeu, teve mais de dois milhões. A maré cor-de-rosa deve ser lida com prudência. Nas eleições só conta a força relativa dos partidos? Ou conta também a força absoluta? De facto, o PS perdeu em relação a 2009. Perdeu menos votantes do que o PSD, que teve uma sangria, mas perdeu capacidade de mobilização dos seus eleitores. O PSD teve uma derrota mas o PS não se pode vangloriar da vitória. Passos Coelho perdeu mas Seguro não convenceu. António Costa sim. Reforçou a sua maioria, apesar de uma pequena redução no número de votantes. Se há uma leitura nacional possível e uma esperança no combate ao Governo, chama-se António Costa.

Quarta nota: o reforço do PCP/CDU, que passa de 28 para 34 câmaras, que vê a sua votação absoluta subir de forma significativa (apesar da abstenção, apesar dos nulos e brancos) e cuja morte parece ter sido muito exagerada.

Quinta nota: o quase desaparecimento autárquico do Bloco, cuja frágil implantação nacional não permite que ele se torne imune ao voto útil no PS e no PCP.

Sexta nota: a vitória por procuração de um criminoso condenado por fraude fiscal e branqueamento de capitais. Isaltino atrás das grades consegue melhor que todos os outros partidos. E, curiosamente, no concelho do país cuja população tem os mais elevados níveis de instrução. Como ler este resultado? Os engenheiros informáticos não se importam que o seu autarca os roube desde que mantenha aparada a relva do jardim municipal?

Sétima nota: a CNE considera que a sua interpretação restritiva da lei (chamada “restritiva” por ter dedicado apenas uma pequena percentagem dos neurónios dos seus membros a esta discussão) obteve um resultado equilibrado em termos de cobertura noticiosa da campanha?

Oitava nota: as televisões esqueceram que devem ter, acima de tudo, o interesse dos seus telespectadores como critério de acção? Terá sido esse o critério usado para decidir não cobrir a campanha?

Nona nota: ainda a CNE, cujo site não consegui aceder durante todo o dia de ontem. Será que a CNE não esperava que no dia a seguir às eleições houvesse muitas pessoas a querer consultar os resultados?

Décima nota: o PSD obteve 1,4 milhões de votos. Perdeu a nível nacional, mas houve 1,4 milhões de pessoas que não quiseram ser desagradáveis para Passos Coelho. Como é que há tanta gente que não percebe que não se deve deixar o lixo acumular-se desta forma nas ruas, sob pena de dar origem a um sério problema de saúde pública? (jvmalheiros@gmail.com)