terça-feira, novembro 05, 2013

O Parlamento não é do Governo

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 5 de Novembro de 2013
Crónica 41/2013


Um ministro deve abandonar todas as lealdades particulares e dedicar-se apenas ao serviço do povo

Penso que os membros do Governo têm exclusivamente um dever para com o povo. É verdade que a Constituição declara que “o Governo é responsável perante o Presidente da República e a Assembleia da República” mas isso é apenas porque o PR e a AR são legítimos representantes do povo, eleitos por voto universal, directo e secreto. A prestação de contas que o Governo faz à AR ou ao PR é ao povo que a deve. E é por isso, aliás, que, além da prestação de contas a estes órgãos, o Governo tem um dever genérico de informação e de transparência perante o povo, assim como o dever de consulta de diferentes instituições da sociedade e de debate com essas instituições. A lealdade que o Governo deve, é ao povo que a deve. A soberania reside no povo e em mais nenhum sítio. Nenhuma lógica e nenhuma lealdade se pode sobrepor ao dever que o Governo tem para com o povo. O seu único objecto tem de ser servir o povo.

E quando se diz “povo” isso quer dizer “o povo todo” e não apenas partes seleccionadas do povo. O dever do Governo é para com todos os cidadãos e para com cada cidadão, pobre ou rico, desempregado ou banqueiro, crente ou ateu, monárquico ou anarquista.

E, quando a Constituição diz que “o Governo é responsável perante a Assembleia da República” não diz que é responsável perante apenas uma parte da Assembleia da República. É perante o órgão Assembleia da República que o Governo é responsável e não apenas perante os deputados que o apoiam.

É por isso que, ao entrar para um Governo, cada um dos seus ministros deve abandonar todas as outras lealdades particulares que possua - com a única excepção das que façam parte da sua vida privada. Um ministro não pode ser do Benfica, nem maçon, nem beirão, nem católico, nem advogado.

Isto não significa que se tenha de despojar da sua história e de todas as crenças que constituem a sua identidade - o que não seria possível - mas quer dizer que, enquanto ministro, tem de pôr de lado as lealdades particulares que estão associadas a estas diferentes pertenças. Um ministro não deve tomar decisões “enquanto benfiquista”, nem seleccionar os membros do seu ministério “enquanto maçon”, nem decidir investimentos “enquanto beirão”, nem aprovar isenções fiscais “enquanto católico”, nem contratar serviços jurídicos “enquanto advogado”.

Esperamos e exigimos de um ministro que pense e aja enquanto ministro de todos os portugueses, sem privilegiar interesses particulares. Esperamos de um ministro que, durante o seu ministério, não faça visitas ao seu gabinete de advogado, por exemplo. E que não agite o cachecol do seu clube durante um jogo. Porque as suas funções exigem dele uma serena equidistância e independência. Esperamos de um ministro que faça o difícil exercício da isenção e que decida sem sectarismos.

E esperamos até de um ministro que abandone (ou suspenda) o seu sectarismo partidário e que pense no bem do país e de todo o povo em vez de pensar na maneira de promover o seu partido e de fazer tropeçar os adversários políticos. Não é lirismo. Apenas um imperativo ético.

Deveria ser claro que um ministro, mesmo que seja militante de um partido, durante a sua passagem pelo Governo trabalha apenas para o Governo, apenas para o país, apenas para o povo, e não deve dedicar uma hora que seja a qualquer outra actividade, a qualquer outra lealdade que não seja essa. Que passe um fim-de-semana com a família é algo que releva da sua vida inalienável vida privada. Mas que dedique uma tarde a uma reunião partidária é um abuso da confiança que lhe foi concedida pelo povo, porque tudo o que ele sabe e viu como ministro é algo que ou merece discrição ou que deve ser partilhado com todos os portugueses, mas nunca apenas com um grupo seleccionado com base no cartão do partido.

Sabemos que isto é comum, mas isso não torna a situação eticamente mais admissível. Seria desejável que um militante de um partido suspendesse a sua actividade partidária durante a sua passagem pelo Governo, mas o que vemos é que não só isso não acontece como vemos ministros abusar da sua condição de governantes para fazer o coaching dos deputados dos seus partidos, fornecendo-lhes informações e disponibilizando-se para discussões que negam aos restantes deputados, num inaceitável enviesamento do que deve ser a equidade de tratamento dos deputados da AR pelo Governo.

A pouca-vergonha que vimos nas Jornadas Parlamentares do PSD e do CDS, com membros do Governo oferecendo um tratamento preferencial aos deputados dos partidos da maioria, é algo comum, a que outros Governos nos habituaram, mas não é por isso menos condenável, tanto mais quando isso acontece nas próprias instalações do Parlamento.

Que a AR ceda instalações para actividades partidárias dos grupos parlamentares é normal, mas não é aceitável ceder instalações da AR para que o Governo leve a cabo um acto de favorecimento partidário, contrariando o seu dever de equidade no tratamento dos deputados. O Parlamento não é do Governo. Será que a presidente da Assembleia da República consegue esquecer o seu cartão partidário e dar-se conta da iniquidade da situação? (jvmalheiros@gmail.com)

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