terça-feira, dezembro 17, 2013

O Natal mais triste de que há memória

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 17 de Dezembro de 2013
Crónica 47/2013

Este ano, tanto o Pai Natal como o Menino Jesus andaram desaparecidos.


A última década foi palco de uma guerra discreta entre o Menino Jesus e o Pai Natal. O Menino Jesus tinha sido quase completamente eclipsado pelo Pai Natal e há uns anos um grupo dos seus apoiantes decidiu contra-atacar.

Foi nessa altura que apareceram aqueles estandartes vermelhos com o Menino Jesus dourado que as pessoas punham nas varandas para competir com os Pais Natais todos a subirem pelas fachadas dos prédios, mas o Pai Natal continuou à frente na corrida. A razão é fácil de perceber: não há filmes onde apareça o Menino Jesus a descer pela chaminé e a pôr prendas nos sapatinhos. E a figura seria ainda mais inverosímil do que a do Pai Natal, com aqueles trajes menores na noite mais fria do ano.

O Pai Natal tem um ar de avô, de folião, é uma força da Natureza, um bom gigante. Ver um recém-nascido de auréola dourada e de fralda a carregar com brinquedos é impossível de imaginar. Nem se percebe por que razão um recém-nascido daria prendas a alguém, enquanto um avô a dar prendas é natural.

A mãe de uma amiga minha, crente fervorosa nos poderes do Menino Jesus (nunca percebi bem isto no catolicismo, de haver uns crentes no Menino Jesus, outros que põem a sua fé no Cristo crescido e outros só no ressuscitado, outros mais virados para a Nossa Senhora das Dores, outros para a Nossa Senhora de Fátima) sente qualquer referência ao Pai Natal como uma punhalada. “Ai o meu rico Menino Jesus”, suspira. “Já ninguém fala do Menino Jesus”. Disse-lhe uma vez, para a consolar, que o Pai Natal também era santo, que era o grego S. Nicolau numa produção americana, mas a referência não pareceu aliviá-la e olhou-me com ar desconfiado.

Primeiro pensei que a sua preferência era de ordem teológica, mas acabei por compreender que tem mais a ver com uma questão de classe e um tudo-nada com a estética. O Menino Jesus é branco e dourado, um anjinho rosado, sem asas mas com uma auréola que lhe dá ainda mais superpoderes e longos caracóis leves e louros sobre a fronte. Depois, nasceu já com cerca de um ano e meio, o que lhe dá um ar vigoroso e fofinho e um olhar vivo e doce, em vez do ar frágil e desconjuntado dos recém-nascidos normais. O Menino Jesus é mais queque, adivinha-se-lhe um enxoval de gosto irrepreensível, fitinhas azuis de cetim, babetes de cambraia bordados à mão, mantinhas de alpaca azul-bebé e ainda tem aquelas prendas de um inexcedível bom gosto dos padrinhos Reis Magos, naqueles cofres pequeninos de prata cinzelada, que são um património.

O Pai Natal pode ser simpático mas há algo de vulgar na sua pose. É gordo, está sempre a correr de um lado para o outro, sempre a chicotear as renas e a saltar pelos telhados e a carregar sacos. Com aquela roupa de lã e aquelas botas deve suar como um cavalo e cheirar como um cossaco. A sua higiene não inspira confiança e o seu gosto é duvidoso. Porquê a cabeleira à Demis Roussos? Com que frequência é que ele lavará aquele cabelo? E aquele ar rubicundo de onde virá? Não haverá ali algum excesso de cerveja? Isso explicaria o riso a propósito e despropósito. Há algo de pouco cristão naquelas gargalhadas, como diria Jorge de Burgos. E o excesso de peso? Por que é que tem sempre de falar tão alto? Há muito de novo-rico naquele espalhafato. A verdade é que o Pai Natal tem um ar um pouco inconveniente, nem conhecemos a família dele, tudo o que veste tem um ar discount e não é uma pessoa como nós.

O Menino Jesus é tudo o que o Pai Natal não é. É discretíssimo, lindo, educado, sabe estar e não se pode ser de melhores famílias.

É verdade que o Jesus real tinha a pele muito escura, que os seus pais foram escorraçados de todos os albergues e que a mãe foi obrigada a dar à luz num estábulo no meio dos animais, mas isso são águas passadas que não vale a pena estar a lembrar porque todas as famílias têm as suas coisas. O Menino Jesus hoje é louro, e pronto. E o pai adoptivo, soube-se há pouco tempo, afinal nem era carpinteiro mas sim empresário do sector imobiliário. E a mãe era uma verdadeira senhora, elegantíssima e recatadíssima, que obedece e quase não diz nada durante toda a Bíblia.

Para as massas que andam nos centros comerciais, o Menino Jesus pode ter sido eclipsado pelo Pai Natal, mas as pessoas de qualidade ainda sabem distinguir. O Pai Natal está para o Menino Jesus como um supermercado para uma loja gourmet. Pode vender mais e ser mais conhecido, mas quem quiser qualidade, ser servido com atenção e num ambiente exclusivo, prefere ir à loja gourmet. É um bocadinho mais caro, mas é outra coisa.

Mas este ano aconteceu uma coisa surpreendente: tanto o Pai Natal como o Menino Jesus andaram desaparecidos. Quase ninguém os viu. Andam os dois envergonhados por nos terem incitado a comprar presentes para eles fazerem figura junto dos nossos filhos? Ou com vergonha dos muitos sapatos onde nem um nem o outro irão pôr prendas na consoada. Tanto um como o outro sabem que o Natal deste ano será o mais triste de que há memória.

(jvmalheiros@gmail.com)

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