terça-feira, dezembro 02, 2014

Do nome como arte de armar ao pingarelho

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 2 de Dezembro de 2014
Crónica 53/2014


No domínio dos nomes, a moda mais chocante é, sem dúvida, a da actual denominação das escolas.

Por razões que nunca foram explicadas, a secretária de Estado da Ciência, Leonor Parreira (que o ministro da Educação e Ciência gosta de apresentar como a "ministra da Ciência"), tutela toda a investigação que se faz em Portugal, menos uma área: a da investigação agro-alimentar. Essa área é da responsabilidade de Nuno Vieira e Brito, cujo cargo diz preto no branco que ele é “secretário de Estado da Alimentação e da Investigação Agro-alimentar” no Ministério da Agricultura e do Mar.

Não se percebe muito bem porque é que o Ministério da Agricultura e do Mar é o único ministério a ter a sua investigaçãozinha só para si, mas é assim. E também não se percebe porque é que é só do agro-alimentar e não de todos os recursos alimentares, por exemplo, mas é assim. Se uma planta for comestível, sendo agro-alimentar, é do foro do secretário de Estado Vieira e Brito e não deve ser investigada sem a sua aprovação, mas se não for comestível, não é, e a secretária de Estado Leonor Parreira já a pode tutelar sem receio de conflitos institucionais. Se depois alguém decidir comer a planta transformando-a assim num recurso alimentar, basta mandar osdossiers de um ministério para o outro e pronto.

Imaginem o diálogo quando, no início do Governo, Nuno Crato foi, sorridente, perguntar a Assunção Cristas, séria, se tinha mesmo de ser assim e se a Agricultura tinha mesmo de ficar com a investigação agro-alimentar, porque a Leonor, enfim, fazia gosto... e a ministra Cristas: "Ó Nuno, é que o Nuno Vieira e Brito faz memo questão. Ó Nuno, deixe lá o Nuno ficar com aquilo..." E Nuno Crato, sorridente, deixou.

A bizarrice da "investigação agro-alimentar" não é a única na nomenclatura governamental e há mesmo outras que fizeram escola e já vêm de longe, como a do secretário de Estado "dos Assuntos Fiscais". Porque é que este é o único secretário de Estado de "assuntos" é um dos grandes mistérios da política. Porque é que o SE da Saúde não é dos Assuntos da Saúde e o SE do Mar não é dos Assuntos do Mar, mas o SE dos Impostos é dos Assuntos Fiscais? Claro que há sempre uma série de gente disponível para explicar que o SE dos Assuntos Fiscais trata de muito mais do que os Impostos, mas essas são as explicações tontas que dispensamos. É evidente que um título não contém a descrição em detalhe do conteúdo da função, mas não é para isso que serve.

Quanto aos Assuntos Fiscais, é verdade que há o precedente "dos Negócios Estrangeiros", mas aí percebe-se o flou artístico, porque os limites da actividade são mesmo indefinidos e não se pode ter a diplomacia a dizer logo ao que vem, ainda que Relações Exteriores, como em muitos países hispanófonos, ficasse muitíssimo melhor.

Os "Assuntos Fiscais", no fundo, aparecem porque os SE dos Impostos têm vergonha de dizer que tratam dos impostos e preferem dar a entender que tratam de outra coisa. Dizer que são SE dos "Assuntos Fiscais" é a mesma coisa que dizer que tratam de "assuntos que têm que ver com os impostos, e que são, portanto, assuntos fiscais, mas que não tratam dos impostos propriamente ditos". Os "Assuntos" são uma cortina de fumo atrás da qual todos temos a boa educação de não espreitar.

Há inúmeros exemplos caricatos, como o Observatório Português dos Sistemas de Saúde (a sigla é OPSS, mas ficaria melhor UUPS!) que não é “da Saúde”, o que pareceria muito prosaico, mas “dos Sistemas de Saúde”, o que lhe dá um ar infinitamente mais importante. Ou da Inspecção-Geral das Actividades em Saúde que não é “Inspecção-Geral da Saúde”, o que seria desconsoladoramente trivial, nem “dos Sistemas de Saúde” mas “das Actividades em Saúde”, o que é muitíssimo mais obscuro.

Mas, no domínio dos nomes, a moda mais chocante é, sem dúvida, a da actual denominação das escolas, que deixaram de ter nomes como Escola Fulano de Tal para passarem a ser identificadas pelos ciclos que leccionam, o que dá monstros como “Escola Básica 2,3 Dr. Francisco Sanches”, ou “Escola EB1/JI Dr. João dos Santos”, ou “EB1/JI Luísa Ducla Soares”. Como se pode dar um nome destes a uma escola? Quem quis dar um nome de robô a uma escola? Como se pode dar a uma escola um nome tão impronunciável e tão enigmático como estes? Que mal haverá em chamar a uma escola “Escola João dos Santos”? É todo um programa pedagógico, retorcido e enviesado, pedante e hermético, que se esconde por trás destas aberrações. A escola deve ter um nome claro, que a identifica e com a qual os seus alunos e professores se possam identificar. Que anos, ou ciclos ou cursos lecciona a escola é outra coisa, que pode mudar, sem que a sua identidade mude. A moda destas designações tecnocráticas, desumanizadas, parece querer retirar a alma e a identidade às escolas e transformá-las em fábricas de salsichas, em unidades de produção de técnicos de produção. O que corresponde, de facto, àquilo para que o Governo pensa que a escola deve servir.



Sem comentários: