terça-feira, dezembro 30, 2014

Mudar tudo para que tudo mude

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 30 de Dezembro de 2014
Crónica 56/2014

Neste fim de 2014, queremos que muitas coisas mudem. Não para que fique tudo na mesma, mas para que tudo mude.


Feliz Natal. Bom Ano Novo. Repetimos as fórmulas, escrevemo-las em cartões, em mensagens de mail. Por que o fazemos? Para exprimir os nossos desejos. Para que aqueles a quem endereçamos os nossos votos saibam que nos preocupamos com eles e que lhes desejamos alegria, felicidade, saúde, bem-estar, amor. Para que serve isso, além de cumprir um ritual, de manter uma tradição? Apenas para manter a cola social que faz de nós uma sociedade em vez de seres isolados?

Não só. Há nestes votos uma superstição implícita. Dizemos “Feliz Natal” como um conjuro, como se as nossas palavras pudessem invocar os lares e os penates e forçá-los a conceder as suas bênçãos. Como quando desejamos “as melhoras” a um doente. Não é apenas um desejo pessoal, um sentimento interno e secreto, mas um voto público, um desejo anunciado, quase uma imprecação, quase uma oração. É verdade que dizemos e escrevemos tudo isso mecanicamente, sem pensar, mas as raízes do gesto e das palavras estão por aí. No lançamento de cada “Bom Ano Novo” há uma esperança demiúrgica. Há um eu primitivo que convoca os deuses, que acende uma fogueira na noite e que levanta os braços ao céu, que sonha que os poderes da terra e do fogo estão ao seu alcance.

Mas dizer “Bom Ano Novo” neste final de 2014 tem um significado especial. Não é um desejo de quietude e de continuidade mas de mudança e de alteração radical deste 2014 de todas as desgraças e de todas as vergonhas, destes anos de empobrecimento em que o número de casais sem emprego aumentou 700%, em que um terço das crianças passaram a ser pobres, em que apesar disso mais de meio milhão de crianças deixou de receber abono de família.

A festa do Natal é descrita como a festa da família e a festa das crianças e os ministros multiplicaram as declarações sobre o tema, mas nunca se torturou tanto as famílias e nunca se fez sofrer tanto as crianças como nestes anos do Governo Passos Coelho, com consequências que serão duradouras e terríveis. O ministro Mota Soares, o “da Solidariedade”, fez o que pôde para poupar uns milhões com as crianças, uns milhões com os velhos, com todos os que não tinham forças para se queixar, com todos os que teriam vergonha de reclamar porque isso equivaleria a gritar a sua pobreza aos quatro ventos. Pedro Mota Soares, jota arvorado ministro, patriota de lapela, católico devoto, sonha que todas as crianças pobres portuguesas poderão ser como “A rapariguinha dos fósforos”, subindo enregeladas ao céu no último dia do ano na companhia das avós. Que belo! Que exaltação! Uma criança entregue à glória eterna sem mais despesa que uma caixa de fósforos!

Neste fim de 2014, queremos que muitas coisas mudem. Não para que fique tudo na mesma, mas para que tudo mude.

Naquela espécie de maldição radiodifundida no Dia de Natal por Pedro Passos Coelho, o primeiro-ministro tratou de convencer os mais crédulos de que já vivemos no país do leite e do mel. Disse-nos que fizemos tudo bem e que correu tudo bem. Que sofremos mas atravessámos as dificuldades. Que está tudo bem agora e que tudo vai ficar ainda melhor. Que o futuro está aberto diante de nós. Disse-nos que não há nada mais a desejar do que este presente e que este presente é bom. Orwell teria ficado em pânico se o tivesse ouvido, aterrado com a presciência de “1984”. Mau é bom, pobre é próspero, desigualdade é igualdade.

Passos Coelho apostou, como faz sempre, no medo. No medo do desconhecido, no medo do futuro. Ameaçou em voz suave que, se os portugueses não fizerem a escolha certa nas próximas eleições, podem deitar tudo a perder. Tudo? A dívida crescente? A pobreza crescente? A desigualdade crescente? A educação e a ciência no caos? Não importa o conteúdo. A mensagem do medo não exige racionalidade e foge da verdade como o diabo da cruz. Sabemos que não queremos isto.

Neste fim de 2014, dizer “Bom Ano Novo” tem um significado especial porque significa que desejamos algo muito diferente e que temos a coragem de o escolher, em Portugal e noutros países. Sabemos que temos de ter a coragem de escolher algo que não existe pré-fabricado e que vamos ter de o fabricar com as nossas mãos. Sabemos que a política entrou num beco sem saída, com partidos capturados por lógicas clientelares e transformados em centrais de corrupção. Sabemos que a governação entrou num beco sem saída, com o Estado capturado por interesses privados. Sabemos que a democracia entrou num beco sem saída, reduzida a eleições que pouco ou nada mudam. Sabemos que a União Europeia entrou num beco sem saída, couraçada com tratados jurídicos antidemocráticos que instituem a regra dos mais fortes. Sabemos que a economia entrou num beco sem saída, com a acumulação de capital em cada vez menos mãos.

E sabemos que a única maneira de sair deste becos é com imaginação e arrojo, com a coragem de fazer diferente.

Bom Ano Novo.

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