terça-feira, dezembro 30, 2014

Mudar tudo para que tudo mude

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 30 de Dezembro de 2014
Crónica 56/2014

Neste fim de 2014, queremos que muitas coisas mudem. Não para que fique tudo na mesma, mas para que tudo mude.


Feliz Natal. Bom Ano Novo. Repetimos as fórmulas, escrevemo-las em cartões, em mensagens de mail. Por que o fazemos? Para exprimir os nossos desejos. Para que aqueles a quem endereçamos os nossos votos saibam que nos preocupamos com eles e que lhes desejamos alegria, felicidade, saúde, bem-estar, amor. Para que serve isso, além de cumprir um ritual, de manter uma tradição? Apenas para manter a cola social que faz de nós uma sociedade em vez de seres isolados?

Não só. Há nestes votos uma superstição implícita. Dizemos “Feliz Natal” como um conjuro, como se as nossas palavras pudessem invocar os lares e os penates e forçá-los a conceder as suas bênçãos. Como quando desejamos “as melhoras” a um doente. Não é apenas um desejo pessoal, um sentimento interno e secreto, mas um voto público, um desejo anunciado, quase uma imprecação, quase uma oração. É verdade que dizemos e escrevemos tudo isso mecanicamente, sem pensar, mas as raízes do gesto e das palavras estão por aí. No lançamento de cada “Bom Ano Novo” há uma esperança demiúrgica. Há um eu primitivo que convoca os deuses, que acende uma fogueira na noite e que levanta os braços ao céu, que sonha que os poderes da terra e do fogo estão ao seu alcance.

Mas dizer “Bom Ano Novo” neste final de 2014 tem um significado especial. Não é um desejo de quietude e de continuidade mas de mudança e de alteração radical deste 2014 de todas as desgraças e de todas as vergonhas, destes anos de empobrecimento em que o número de casais sem emprego aumentou 700%, em que um terço das crianças passaram a ser pobres, em que apesar disso mais de meio milhão de crianças deixou de receber abono de família.

A festa do Natal é descrita como a festa da família e a festa das crianças e os ministros multiplicaram as declarações sobre o tema, mas nunca se torturou tanto as famílias e nunca se fez sofrer tanto as crianças como nestes anos do Governo Passos Coelho, com consequências que serão duradouras e terríveis. O ministro Mota Soares, o “da Solidariedade”, fez o que pôde para poupar uns milhões com as crianças, uns milhões com os velhos, com todos os que não tinham forças para se queixar, com todos os que teriam vergonha de reclamar porque isso equivaleria a gritar a sua pobreza aos quatro ventos. Pedro Mota Soares, jota arvorado ministro, patriota de lapela, católico devoto, sonha que todas as crianças pobres portuguesas poderão ser como “A rapariguinha dos fósforos”, subindo enregeladas ao céu no último dia do ano na companhia das avós. Que belo! Que exaltação! Uma criança entregue à glória eterna sem mais despesa que uma caixa de fósforos!

Neste fim de 2014, queremos que muitas coisas mudem. Não para que fique tudo na mesma, mas para que tudo mude.

Naquela espécie de maldição radiodifundida no Dia de Natal por Pedro Passos Coelho, o primeiro-ministro tratou de convencer os mais crédulos de que já vivemos no país do leite e do mel. Disse-nos que fizemos tudo bem e que correu tudo bem. Que sofremos mas atravessámos as dificuldades. Que está tudo bem agora e que tudo vai ficar ainda melhor. Que o futuro está aberto diante de nós. Disse-nos que não há nada mais a desejar do que este presente e que este presente é bom. Orwell teria ficado em pânico se o tivesse ouvido, aterrado com a presciência de “1984”. Mau é bom, pobre é próspero, desigualdade é igualdade.

Passos Coelho apostou, como faz sempre, no medo. No medo do desconhecido, no medo do futuro. Ameaçou em voz suave que, se os portugueses não fizerem a escolha certa nas próximas eleições, podem deitar tudo a perder. Tudo? A dívida crescente? A pobreza crescente? A desigualdade crescente? A educação e a ciência no caos? Não importa o conteúdo. A mensagem do medo não exige racionalidade e foge da verdade como o diabo da cruz. Sabemos que não queremos isto.

Neste fim de 2014, dizer “Bom Ano Novo” tem um significado especial porque significa que desejamos algo muito diferente e que temos a coragem de o escolher, em Portugal e noutros países. Sabemos que temos de ter a coragem de escolher algo que não existe pré-fabricado e que vamos ter de o fabricar com as nossas mãos. Sabemos que a política entrou num beco sem saída, com partidos capturados por lógicas clientelares e transformados em centrais de corrupção. Sabemos que a governação entrou num beco sem saída, com o Estado capturado por interesses privados. Sabemos que a democracia entrou num beco sem saída, reduzida a eleições que pouco ou nada mudam. Sabemos que a União Europeia entrou num beco sem saída, couraçada com tratados jurídicos antidemocráticos que instituem a regra dos mais fortes. Sabemos que a economia entrou num beco sem saída, com a acumulação de capital em cada vez menos mãos.

E sabemos que a única maneira de sair deste becos é com imaginação e arrojo, com a coragem de fazer diferente.

Bom Ano Novo.

terça-feira, dezembro 23, 2014

O presente envenenado de Crato, Parreira e Seabra

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 23 de Dezembro de 2014
Crónica 56/2014
A poda defendida por António Coutinho e executada pela troika da ciência foi na realidade uma operação selvagem de abate de árvores.

O ministro Nuno Crato, a secretária de Estado Leonor Parreira e o presidente da Fundacão para a Ciência e a Tecnologia (FCT), Miguel Seabra, concluíram ontem uma das empreitadas principais do seu consulado: o chamado “processo de avaliação” das unidades de investigação científica portuguesas.

O processo termina mal, como começou, e consagra, como se esperava, uma hierarquia de unidades de investigação onde cerca de metade é na prática condenada à morte, pois deixa de receber financiamento, onde um quinto dos centros recebe um financiamento considerável e onde os restantes receberão um financiamento suficiente para manterem as suas actividades.

O princípio utilizado nesta operação de avaliação, executada com inúmeros erros e insuficiências pela European Science Foundation, contratada para o efeito pela FCT, foi o princípio da “poda”, cujo principal ideólogo foi o investigador António Coutinho, coordenador do Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia. O princípio da poda enuncia-se brevemente: de forma a promover a excelência, o sistema deve não só premiar as unidades que sejam consideradas “excelentes”, mas destruir as unidades que sejam julgadas “insuficientes”, apenas “razoáveis” ou que sejam mesmo meramente “boas”. Apenas a excelência merece florescer e tudo o resto deve ser cortado.

O princípio merece críticas, para resistir a dizer que se trata de uma pura idiotice. Alguém conhece alguma organização que pudesse resistir e continuar a funcionar se se destruíssem todas as unidades que a compõem com excepção das consideradas excelentes? O princípio da destruição das unidades não excelentes recusa-se a compreender que um sistema científico é um sistema ecológico, com múltiplas interacções e alimentações entre os seus componentes, e não um conjunto de unidades isoladas. Como se recusa a compreender algo ainda mais simples que é o facto de, numa unidade excelente, existirem elementos que não são excelentes e, inversamente, numa unidade de qualidade média, existirem elementos excelentes. Como se recusa a compreender que uma unidade de investigação é um organismo com uma história, que não pode ser destruído e usado como peças sobressalentes sem uma enorme perda do investimento feito.

A poda defendida por António Coutinho e executada pela troika da ciência foi na realidade uma operação selvagem de abate de árvores que deram no passado frutos de grande qualidade e que poderiam continuar ou voltar a dá-los, em vez da cuidadosa e prudente operação de selecção de ramos que uma verdadeira poda deve ser.

A ideia da poda esquece outra coisa, que Nuno Crato, Leonor Parreira e Miguel Seabra não poderiam esquecer se encarassem com a devida seriedade o papel que a sociedade portuguesa lhes confiou: é da responsabilidade dos dirigentes gerir o sistema e não apenas castigar e premiar as unidades de investigação como um mestre-escola do antigamente. O trabalho de coordenação da investigação a nível nacional, que deve ser levado a cabo pela FCT, exige destes dirigentes que avaliem (não em operações de comandos mas de forma contínua) o trabalho produzido nas várias unidades de investigação e o reorientem de forma dialogada, discutida e transparente sempre que necessário. A operação-catástrofe levada a cabo por uma European Science Foundation claramente incompetente na área da avaliação de unidades de investigação é a prova da renúncia de Crato, Parreira e Seabra a levar a cabo as tarefas que lhes foram confiadas e que juraram “cumprir com lealdade”.

Mas esta avaliação foi um desastre por diversas razões e não apenas pela orientação estratégica que lhe foi dada. Foi evidentemente uma avaliação desonesta e isso é patente não devido aos múltiplos erros que foram cometidos pelos avaliadores (muitos deles erros factuais de leitura, de cópia de dados ou de interpretação) mas devido à recusa dos avaliadores em corrigir muitos desses erros quando eles lhos foram apontados. E foi evidentemente uma avaliação desonesta porque existiram quotas impostas aos avaliadores para cada classificação, quotas cuja existência Miguel Seabra continuou a negar com um descaramento inaudito, mesmo quando a mentira era insustentável perante um documento escrito.

A última habilidade de Miguel Seabra consistiu nesta libertação dos dados finais da avaliação nas vésperas de Natal, apostando na dificuldade de mobilização de quem queira contestar os resultados. Também isto é pouco recomendável e nada tem a ver com a transparência, com a lisura e com a disponibilidade para a discussão que se espera de um cientista ou, simplesmente, de uma qualquer pessoa honesta.

O processo levado a cabo por Crato, Parreira e Seabra vai ter de ser revisto e reavaliado pela nova equipa que irá dirigir a investigação portuguesa depois das próximas eleições. Mas muito do mal feito será dificilmente reparável. Cada ano de gestão desta equipa de demolição da ciência levará muito mais de um ano a reparar.

O presente de Natal que Crato, Parreira e Seabra nos deixam é um presente envenenado e vai ser difícil convencer de novo os jovens cientistas talentosos de que Portugal é um país com futuro.



terça-feira, dezembro 16, 2014

A esquerda não pode perder por falta de comparência

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 16 de Dezembro de 2014
Crónica 55/2014

A presença do PS é uma condição necessária para um governo de esquerda. Não por razões ideológicas, mas por razões aritméticas.

Tenho a certeza de que uma maioria significativa dos portugueses deseja que, das próximas eleições legislativas, saia um novo governo que ponha em prática uma política que recuse o modelo austeritário, que defenda os interesses de Portugal na União Europeia e não os interesses dos nossos credores, que seja capaz de encontrar aliados na UE para combater as políticas europeias que põem em causa a democracia, a independência e o desenvolvimento nacional (a começar pelo Tratado Orçamental e pela TTIP-Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento), que combata de forma vigorosa as desigualdades e a pobreza, que promova uma educação e uma saúde de acesso universal, que defenda a ciência e a cultura, que combata os poderes ilegítimos e a corrupção, que promova o emprego e a dignidade do trabalho, que garanta um desenvolvimento social e ambientalmente sustentável, que permita enfim a todos os cidadãos uma vida decente numa sociedade democrática.

Ou seja, uma política que seja diametralmente oposta à política lesa-pátria do actual Governo, de favorecimento do capital financeiro, de submissão generalizada aos poderes estrangeiros, de submissão à vontade dos credores, de empobrecimento generalizado da população, de apropriação e delapidação do património do Estado, de destruição dos serviços públicos, de desprezo pela independência nacional, pela democracia e pelas suas próprias promessas eleitorais.

A política que penso que a maioria do povo português deseja é uma política de esquerda, feita em nome de todos os portugueses para servir todos os portugueses e não uma política desenhada para servir grupos de oligarcas, na esperança de vir um dia a integrar as suas fileiras, como aquela que hoje, para nossa tristeza e sua vergonha, os nossos governantes levam a cabo.

Quando se faz um retrato deste tipo, daquilo que seria uma política desejável, é frequente que apareça alguém que nos diz: “Mas isso não é característico de uma política de esquerda. Eu sou de direita e também quero tudo isso!” E, de facto, não é importante o que lhe chamemos. No entanto, o facto é que uma política de combate activo às desigualdades, de erradicação da pobreza, de universalidade de acesso à Saúde e à Educação sem entraves de classe social ou económica, de defesa dos serviços públicos, de combate aos privilégios, de defesa do trabalho e de combate ao poder ilegítimo do capital financeiro é uma política que possui as características de uma política de esquerda.

A grande questão é: com quem se pode contar para pôr em prática essa política?

Em Portugal, os movimentos que têm surgido tendo como ideia central a convergência da esquerda para a construção de um governo de esquerda – em contraponto a uma esquerda instalada no protesto – têm sido acusados de pretender “aproximar-se” do PS apenas para conseguir aceder ao poder. A acusação é por vezes apenas difamatória, outras vezes será uma crítica política séria. A questão é que o PS, a posição do PS, as políticas que o PS irá defender e as que quererá pôr em prática se chegar ao governo são uma questão central para todos nós e, em particular, para todos os que têm urgência de ver uma governação à esquerda. É evidente, e sabemo-lo todos, que a presença do PS no governo está longe de ser uma condição suficiente para uma política de esquerda. Ainda que tenha tomado posições importantes na defesa do Estado social, o PS tem governado à direita e, por vezes, escandalosamente à direita. Mas a presença do PS é uma condição necessária para um governo de esquerda. Não por razões ideológicas, mas por razões aritméticas. Não para fazer do governo um governo de esquerda, mas para fazer da esquerda uma esquerda no governo.

Não se trata de aderir ao PS para o “mudar por dentro”, como tantos no passado anunciaram querer fazer sem êxito (curiosamente, em geral para saírem pela direita do PS), mas de criar um lastro à sua esquerda que produza não só políticas de esquerda viáveis, mas passíveis de recolher o apoio parlamentar necessário. Como partido ideologicamente híbrido que é, o PS vive ele próprio sob a assombração das maldições da direita: a inevitabilidade da austeridade, a imutabilidade das políticas europeias, a invencibilidade do capital financeiro, a impossibilidade de reformar de forma radical a sociedade e a política. E uma das razões que apresenta para o seu “there is (almost) no alternative” é o seu receio de que não exista apoio social e político suficiente para ser algo diferente. É essa dúvida que, quer no plano do apoio social, quer no plano da construção programática, é preciso afastar. É possível uma política de esquerda viável, realista, justa e com amplo apoio social. É este o desafio ao qual a esquerda à esquerda do PS tem de responder e o desafio que tem de lançar ao PS. Se o PS quiser escolher a direita para parceiro de governo ou compère parlamentar que o faça, mas que não diga que foi por falta de comparência que não foi possível governar à esquerda.

Crónica no Público: http://www.publico.pt/politica/noticia/a-esquerda-nao-pode-perder-por-falta-de-comparencia-1679506

terça-feira, dezembro 09, 2014

Os ricos são pessoas mas os pobres são estatísticas

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 9 de Dezembro de 2014
Crónica 54/2014


Os pobres como Garner só vêem as histórias contadas do seu ponto de vista quando chegam à morgue.
“Quando um homem morre é uma tragédia. Quando morrem milhares, é uma estatística”. A frase é de Estaline, que a terá dito a Churchill durante uma conversa na cimeira de Teerão, em 1943. Encerra uma enorme verdade.

O movimento de protesto que está a varrer os Estados Unidos devido a uma série de homicídios injustificados de homens negros por polícias brancos é uma das muitas provas do aforismo. Se não conhecêssemos os nomes e as histórias de Eric Garner, sufocado por um polícia que pensava que ele estava a vender cigarros avulso na rua; de Tamir Rice, um miúdo negro de 12 anos que brincava com uma pistola de plástico num jardim; de Michael Brown, um jovem de 18 anos, desarmado como todos os outros, que foi atingido com oito tiros por um polícia que o deteve no meio da rua, em Ferguson, Missouri; de Rumain Brisbon, que ia tirar do bolso um frasco de comprimidos que um polícia receou que fosse uma arma; de Akai Gurley, que ia a sair de sua casa quando um polícia o atingiu mortalmente a tiro sem que houvesse a mínima razão para tal, e de outros como eles, trataríamos o elevadíssimo número de negros mortos às mãos de brancos nos EUA (ou de polícias brancos) como uma estatística. É porque os conhecemos um pouco, porque ouvimos contar as suas histórias, que sentimos as suas mortes como tragédias. É evidente que sentimos estes casos como injustiças intoleráveis e como sintomas de uma sociedade gravemente doente porque todos os polícias brancos envolvidos na morte destes negros foram ilibados ou tratados com grande brandura pelo sistema judicial, mas a nossa revolta também não seria a mesma se, em vez das cinco ou seis pessoas que ficámos a conhecer, se tratasse de 500 que não conhecemos.

No caso de Eric Garner, o negro obeso que talvez estivesse a vender cigarros de contrabando avulso na rua, há uma poderosa razão extra para a nossa indignação: o vídeo do seu assassinato divulgado no YouTube. Vimos o vídeo e sabemos o que aconteceu. Vimos o uso desproporcionado e injustificado de força pelos polícias e ouvimo-lo repetir “I can’t breathe!” enquanto teve forças para isso, perante a contínua brutalidade dos agentes.

O vídeo reforça a nossa indignação porque nos fornece mais informação, mas não se trata apenas disso: o vídeo permite-nos sentir empatia, sentir o que Garner estava a sentir no momento em que foi interpelado pelos polícias, sentir a que ponto estava farto de uma vida de perseguição e de acusações com ou sem motivo. Como aconteceu com um outro caso célebre, o espancamento de Rodney King em 1991, filmado por uma câmara-vídeo e divulgado nas televisões, que daria origem a graves tumultos em Los Angeles quando todos os polícias envolvidos no espancamento foram absolvidos.

A grande acusação que se pode fazer ao sistema americano – não a este ou àquele polícia concreto e não apenas às forças policiais – é que todos sabemos que, se a cor da pele dos participantes estivessem trocadas, a atitude do sistema judicial seria diferente. Alguém imagina que, se cinco ou seis polícias negros tivessem atacado e matado um cidadão branco desarmado, nenhum seria acusado e que o incidente seria classificado como um acidente?

É evidente que a cor da pele não é o único factor da discriminação da polícia. Há um evidente factor de discriminação social – Garner, um negro pobre e obeso, não teve o mesmo tratamento que seria reservado para um negro da alta classe média de Manhattan – mas isso não torna o problema menos grave.

A verdadeira tragédia é que os negros pobres dos EUA, como Garner, só vêem as histórias contadas do seu ponto de vista quando chegam à morgue e quando alguém filma o processo que os leva lá com o seu telemóvel e o publica no YouTube. Antes disso, são não-entidades. Sem voz, sem representação política e sem visibilidade mediática. Na melhor das hipóteses, são figurantes estereotipados de histórias de polícias e de procuradores.

E isso não acontece só nos Estados Unidos.

O discurso mediático é, de forma crescente, o discurso dos poderosos e cresce o número dos sem-voz, dos marginais transformados em estatísticas.

De forma crescente, nos media, os ricos são pessoas e os pobres são estatísticas. Os poderosos são entrevistados e os pobres são tratados por grosso. Para não mencionar os casos, frequentes nas televisões, onde os “populares”, emotivos e iletrados, apenas servem de ruído de fundo às “reportagens” em “directo”, folclóricos quando não ridículos.

Este estatuto de impessoalidade que os media conferem aos pobres e necessitados justifica, insensivelmente, o tratamento como sub-humanos a que o Governo e o ministro Mota Soares os submete, perante um silêncio quase geral.

É tempo que os jornalistas recuperem o lema de “dar voz aos que não têm voz” e multipliquem aquilo que, por agora, continuam a ser histórias esporádicas de incidentes ocasionais para nos fornecer um retrato realista de toda a sociedade.


terça-feira, dezembro 02, 2014

Do nome como arte de armar ao pingarelho

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 2 de Dezembro de 2014
Crónica 53/2014


No domínio dos nomes, a moda mais chocante é, sem dúvida, a da actual denominação das escolas.

Por razões que nunca foram explicadas, a secretária de Estado da Ciência, Leonor Parreira (que o ministro da Educação e Ciência gosta de apresentar como a "ministra da Ciência"), tutela toda a investigação que se faz em Portugal, menos uma área: a da investigação agro-alimentar. Essa área é da responsabilidade de Nuno Vieira e Brito, cujo cargo diz preto no branco que ele é “secretário de Estado da Alimentação e da Investigação Agro-alimentar” no Ministério da Agricultura e do Mar.

Não se percebe muito bem porque é que o Ministério da Agricultura e do Mar é o único ministério a ter a sua investigaçãozinha só para si, mas é assim. E também não se percebe porque é que é só do agro-alimentar e não de todos os recursos alimentares, por exemplo, mas é assim. Se uma planta for comestível, sendo agro-alimentar, é do foro do secretário de Estado Vieira e Brito e não deve ser investigada sem a sua aprovação, mas se não for comestível, não é, e a secretária de Estado Leonor Parreira já a pode tutelar sem receio de conflitos institucionais. Se depois alguém decidir comer a planta transformando-a assim num recurso alimentar, basta mandar osdossiers de um ministério para o outro e pronto.

Imaginem o diálogo quando, no início do Governo, Nuno Crato foi, sorridente, perguntar a Assunção Cristas, séria, se tinha mesmo de ser assim e se a Agricultura tinha mesmo de ficar com a investigação agro-alimentar, porque a Leonor, enfim, fazia gosto... e a ministra Cristas: "Ó Nuno, é que o Nuno Vieira e Brito faz memo questão. Ó Nuno, deixe lá o Nuno ficar com aquilo..." E Nuno Crato, sorridente, deixou.

A bizarrice da "investigação agro-alimentar" não é a única na nomenclatura governamental e há mesmo outras que fizeram escola e já vêm de longe, como a do secretário de Estado "dos Assuntos Fiscais". Porque é que este é o único secretário de Estado de "assuntos" é um dos grandes mistérios da política. Porque é que o SE da Saúde não é dos Assuntos da Saúde e o SE do Mar não é dos Assuntos do Mar, mas o SE dos Impostos é dos Assuntos Fiscais? Claro que há sempre uma série de gente disponível para explicar que o SE dos Assuntos Fiscais trata de muito mais do que os Impostos, mas essas são as explicações tontas que dispensamos. É evidente que um título não contém a descrição em detalhe do conteúdo da função, mas não é para isso que serve.

Quanto aos Assuntos Fiscais, é verdade que há o precedente "dos Negócios Estrangeiros", mas aí percebe-se o flou artístico, porque os limites da actividade são mesmo indefinidos e não se pode ter a diplomacia a dizer logo ao que vem, ainda que Relações Exteriores, como em muitos países hispanófonos, ficasse muitíssimo melhor.

Os "Assuntos Fiscais", no fundo, aparecem porque os SE dos Impostos têm vergonha de dizer que tratam dos impostos e preferem dar a entender que tratam de outra coisa. Dizer que são SE dos "Assuntos Fiscais" é a mesma coisa que dizer que tratam de "assuntos que têm que ver com os impostos, e que são, portanto, assuntos fiscais, mas que não tratam dos impostos propriamente ditos". Os "Assuntos" são uma cortina de fumo atrás da qual todos temos a boa educação de não espreitar.

Há inúmeros exemplos caricatos, como o Observatório Português dos Sistemas de Saúde (a sigla é OPSS, mas ficaria melhor UUPS!) que não é “da Saúde”, o que pareceria muito prosaico, mas “dos Sistemas de Saúde”, o que lhe dá um ar infinitamente mais importante. Ou da Inspecção-Geral das Actividades em Saúde que não é “Inspecção-Geral da Saúde”, o que seria desconsoladoramente trivial, nem “dos Sistemas de Saúde” mas “das Actividades em Saúde”, o que é muitíssimo mais obscuro.

Mas, no domínio dos nomes, a moda mais chocante é, sem dúvida, a da actual denominação das escolas, que deixaram de ter nomes como Escola Fulano de Tal para passarem a ser identificadas pelos ciclos que leccionam, o que dá monstros como “Escola Básica 2,3 Dr. Francisco Sanches”, ou “Escola EB1/JI Dr. João dos Santos”, ou “EB1/JI Luísa Ducla Soares”. Como se pode dar um nome destes a uma escola? Quem quis dar um nome de robô a uma escola? Como se pode dar a uma escola um nome tão impronunciável e tão enigmático como estes? Que mal haverá em chamar a uma escola “Escola João dos Santos”? É todo um programa pedagógico, retorcido e enviesado, pedante e hermético, que se esconde por trás destas aberrações. A escola deve ter um nome claro, que a identifica e com a qual os seus alunos e professores se possam identificar. Que anos, ou ciclos ou cursos lecciona a escola é outra coisa, que pode mudar, sem que a sua identidade mude. A moda destas designações tecnocráticas, desumanizadas, parece querer retirar a alma e a identidade às escolas e transformá-las em fábricas de salsichas, em unidades de produção de técnicos de produção. O que corresponde, de facto, àquilo para que o Governo pensa que a escola deve servir.