terça-feira, janeiro 13, 2015

Eles não perceberam a piada

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 13 de Janeiro de 2015
Crónica 2/2015



1. Se houver um céu dos cartoonistas e se os do Charlie Hebdo estiverem deitados na nuvem a olhar cá para baixo, não podem ter deixado de se interrogar, ao ver as manifestações de domingo, com tantos dos políticos com quem eles gozaram a reclamar-se Charlie: “O que teremos feito mal?”. E não podem ter deixado de se perguntar isso porque Charlie nunca procurou consensos, sempre desconfiou dos consensos e sempre desafiou os consensos. Sempre foi esse o papel de Charlie e é isso que devemos a Charlie: a sua iconoclastia, a sua capacidade para nos desafiar a nós e aos outros, cruzando inúmeras vezes as fronteiras do bom gosto e do bom senso, garantindo sempre que a liberdade não ficaria refém do preconceito ou das conveniências.

Falou-se muito de humor nos últimos dias e defendeu-se muito (e bem) o direito a fazer rir, como parte da liberdade de expressão, mas “Charlie” não pretendia fazer rir. Charlie queria criticar, satirizar, ridicularizar, mostrar a hipocrisia, a ignorância, a boçalidade, a roupa suja dos poderosos dos grandes e dos pequenos poderes, denunciar o moralismo e os bem-pensantes. Denunciar com humor, porque Charlie amava a vida e queria que nos deliciássemos com ela. Charlie era pelo prazer e isso (tanto como as suas posições políticas) foi algo que nunca lhe perdoaram. Charlie fazia humor porque punha tudo em causa incluindo a si próprio e essa era (e é) a sua razão de ser.

2. A minha primeira reacção ao ataque à revista Charlie Hebdo foi de incredulidade. Cabu? Wolinsky? Mortos por terroristas? Mas não foi por engano? Queriam mesmo matar Cabu e Wolinsky?

Conhecia Cabu desde os meus catorze anos, quando li as primeiras aventuras do Grand Duduche, que fui seguindo ao longo da vida, e Wolinsky foi sempre um preferido, com as suas raparigas saltitantes e desinibidas, desenhadas com poucos traços e menos roupa, e o atentado não fazia sentido. Claro que conhecia a provocação constante de Charlie, o seu desrespeito absoluto por tudo e todos, o seu radicalismo anticlerical, a sua iconoclastia, sabia os ódios que suscitavam, os processos judiciais, os ataques, mas… matar Cabu e Wolinsky? E todos os outros? Matar Charlie Hebdo?

Depois, tudo se tornou claro: os autores do atentado não tinham percebido nada. Não tinham percebido nada de Charlie, do humor, dos cartoons. Para estes jovens de cérebro ensaboado, as coisas eram simples: os desenhos de Charlie eram uma humilhação premeditada, uma campanha racista, uma agressão. Uma caricatura de religião matou os reis da caricatura.

Eles não tinham percebido que as caricaturas do Charlie não eram contra o islão mas contra os idiotas e os carrascos misóginos que se reclamam do islão, como outros não tinham percebido que o Charlie não era contra os judeus ou os católicos mas contra os idiotas judeus e católicos que defendem a ignorância e a violência. Eles não perceberam que não era Maomé que Charlie queria ridicularizar, mas eles mesmos, os fanáticos, os cretinos deKalachnikov sonhando com a erecção eterna e 72 virgens à espera. Nesse sentido, não se enganaram no alvo, mas provaram que o Charlie tinha razão e que eles eram, de facto, apenas cretinos com Kalachnikovs.

3. A grande palavra de ordem em França, após os ataques da semana passada em Paris, para além das profissões de fé na liberdade de expressão e das declarações de solidariedade com as vítimas, é o “não à amálgama”, para usar a expressão canónica do discurso político francês. Que “amálgama”? A identificação entre muçulmanos e islamistas terroristas, a identificação entre islão e violência, entre islão e anti-semitismo.

E toda a cobertura das impressionantes manifestações de domingo passado sublinhava a presença lado a lado de pessoas de diferentes religiões e sem religião, gritando as mesmas palavras de ordem e provando que não só é possível às várias confissões, nacionalidades e culturas viver lado a lado em paz, como esse é um dos desejos mais ardentes dessas pessoas e a herança que querem deixar aos seus filhos.

É evidente que a esmagadora maioria dos muçulmanos do mundo, vivam onde viverem, não apoia o terrorismo. Sabemos como os próprios muçulmanos chiitas são as principais vítimas de movimentos terroristas sunitas como a Al-Qaeda e o auto-denominado “Estado Islâmico”. Posto isto, não se pode ignorar que o terrorismo islamista é um fenómeno emergente numa franja de uma determinada comunidade religiosa que não fez o aggiornamento religioso que outras comunidades islâmicas fizeram (podem encontrar-se receitas de crueldade nos textos religiosos de todos os credos, mas a maior parte dos crentes não as aplicam), da mesma forma que não se pode esquecer que existe um problema particular de integração dos jovens muçulmanos em geral nas sociedades ocidentais. O islão não defende o terrorismo, mas o terrorismo islamista constitui um problema que possui uma evidente base religiosa e tem de ser discutido também nesse contexto. O terrorismo islamista não é a emanação natural de uma dada cultura, mas também não é um mero caso de polícia.


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