quarta-feira, abril 29, 2015

Esta União Europeia que nos envergonha

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 29 de Abril de 2015
Crónica 16/2015


Onde estão os políticos europeus que defendem algo de que nos possamos orgulhar?

“Demasiado pouco, demasiado tarde.” É cada vez mais frequente termos de dizer isto da acção de um Estado, da acção dos governantes.

Pelo menos sempre que se trata de promover a paz e o desenvolvimento; de promover a cooperação internacional; de combater a fome, a pobreza e a desigualdade; de investir na educação, na cultura e na ciência; de proteger o ambiente; de garantir a defesa da liberdade, da democracia e dos direitos humanos. E é cada vez mais frequente, tristemente frequente, sermos obrigados a dizer isto da acção da União Europeia, dessa União Europeia que nos seduziu com sonhos de solidariedade e que gosta de se proclamar campeã dos direitos humanos mas que nos envergonha todos os dias com a sua demissão dos mais elementares deveres perante os mais fracos, com a sua cupidez em favor dos mais ricos, com a sua pusilanimidade perante os mais fortes.

A reunião de quinta-feira passada do Conselho Europeu, onde em teoria os 28 Estados-membros da União Europeia tomaram medidas para evitar a catástrofe humanitária dos refugiados que atravessam o Mediterrâneo para tentar chegar à Europa, é apenas mais um de uma longa lista de lamentáveis exemplos de demissão.

“Demasiado pouco, demasiado tarde.” Às vezes quase nada, tarde demais. Quase sempre medidas para dar títulos de jornal apaziguadores, mas que não atacam as raízes dos problemas e apenas permitem descansar as consciências dos menos exigentes.

Onde estão os políticos europeus que defendem algo de que nos possamos orgulhar? Desapareceram. Mesmo quando parecem existir num dado momento, desintegram-se ao chegar ao primeiro Conselho Europeu. A União Europeia dissolve toda a ideia política e apenas deixa negócios com um cheiro de enxofre no ar.

Onde estão os políticos europeus que defendem essa ideia de uma Europa da solidariedade, dos direitos e do progresso e que têm a coragem de a traduzir em medidas políticas? Que agem por imperativo de consciência, que agem mesmo quando não é possível contentar todos, que não esperam pelos mediapara saber o que devem pensar, que têm convicções que não os envergonham, que não têm medo de desagradar a essa extrema-direita para onde estão a ir tantos votos? Estarão todos mortos? Estarão todos nos partidos emergentes que ainda não chegaram ao poder? Ou estará a vontade política a concentrar-se apenas nos partidos xenófobos da extrema-direita? Será o condomínio fechado com os pobres a tentar escalar o muro o único sonho possível nesta Europa de banqueiros-piratas e de políticos-mordomos?

As medidas tomadas no último Conselho Europeu não são apenas poucas e tardias. São uma vergonha e são ineficazes.

União Europeia triplica orçamento da missão de vigilância do Mediterrâneo, titulava este jornal. Parece bom. Só que as notícias explicam que a “triplicação” da UE fica aquém do orçamento que, no ano passado, a Itália sozinha atribuía às operações de salvamento de refugiados no Mediterrâneo, com a operação Mare Nostrum, terminada em Outubro de 2014 porque a UE não a quis apoiar.

A UE quer reduzir a má imprensa mas sem mexer uma palha, gastando pouco e fazendo menos. O objectivo da maior parte dos países europeus, como o Governo de David Cameron dizia sem vergonha até há pouco, é que continuem a morrer imigrantes em massa no Mediterrâneo, para que a Europa não se torne mais atraente para os que ficam. O abjecto fraseado britânico afirma que o alargamento das operações de salvamento no Mediterrâneo constitui um “pull factor” que encoraja a imigração clandestina para a UE. “Pull factor”. Não se devem salvar pessoas porque isso constitui um “pull factor”. Nem vale a pena argumentar que quando se suspendeu oMare Nostrum a imigração aumentou. Não vale a pena tentar explicar que aquelas crianças que morrem afogadas no Mediterrâneo são de carne e osso como os filhos do senhor Cameron, que a morte de cada um deles é tão trágica como foi a morte do primogénito do senhor Cameron, que cada um deles vale o mesmo que cada um dos nossos filhos. Seria melhor matá-los à vista para os desanimar de virem? A Europa deve condenar à morte as famílias cujos pais querem proporcionar uma vida decente aos seus filhos?

A UE, se tivesse um mínimo de decência ou de vergonha, deveria reconhecer a importância de realizar as necessárias operações de salvamento no Mediterrâneo e não apenas ao longo das suas costas. Deveria discutir seriamente (em casa e com os seus vizinhos de África e do Médio Oriente) uma política de imigração que não deveria ser outra coisa senão generosa e pôr em prática as ferramentas necessárias para fornecer os devidos vistos a refugiados políticos e económicos. E deveria construir uma verdadeira política externa que apoiasse os esforços em prol da pacificação dos países em guerra e do desenvolvimento dos países mais pobres. Devia. Seria uma política externa de que nos poderíamos orgulhar, justa, exaltante e mobilizadora. Mas esta é uma UE da qual não se pode sequer esperar decência.

jvmalheiros@gmail.com

terça-feira, abril 21, 2015

José Mariano Gago, o sonho de um país moderno

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 21 de Abril de 2015
Crónica 15/2015


Em José Mariano Gago nada era fogo-de-vista, tudo era consistente e reflectido e tudo nos solicitava a pensar e a agir.


José Mariano Gago pertencia a um grupo muito restrito de pessoas, que pode ser contado pelos dedos de uma só mão, a quem nunca ouvi fazer uma intervenção pública sem que dissessem algo substantivo e interessante, que nos obrigava a reflectir. Nunca o ouvi fazer um daqueles vácuos discursos de circunstância, cheios de pompa e de banalidades, a que os governantes habitualmente se dedicam, deliciados por serem o centro das atenções. José Mariano Gago estava na política por razões substantivas, porque tinha uma ideia para Portugal e uma estratégia para a pôr em prática, porque tinha a ambição de ajudar a construir uma sociedade europeia cosmopolita de bem-estar para todos, por paixão e por dever de cidadania, e nunca para agradar a algum poder ou servir um partido, para favorecer algum interesse particular ou para seguir um breviário. Era aí que colocava o seu orgulho, nesse trabalho que continuou a preencher até ao último dia da sua vida as páginas da sua agenda, e não nas fúteis disputas territoriais, nas prestações de vassalagem e afirmações de vaidade que são a parte central do quotidiano de tantos políticos. Essa é uma das principais diferenças entre Gago e outros governantes, conhecida ou intuída por todos, e é uma das razões do respeito que granjeou em todos os sectores da vida nacional. Em José Mariano Gago nada era fogo-de-vista, tudo era consistente e reflectido e tudo nos solicitava a pensar e a agir.

Acima de tudo, José Mariano Gago foi um político capaz de sonhar e com uma enorme ambição para o seu país. Não apenas para a ciência, de que falamos sempre quando falamos dele, mas para todos os homens e mulheres do seu país. Nunca foi um mero gestor preocupado apenas em alterar uns indicadores na folha de Excel, mas sempre um verdadeiro político e um verdadeiro democrata, preocupado com as questões essenciais, com as pessoas, com o reforço da democracia, com a promoção da cultura e da participação dos cidadãos, com um desenvolvimento justo e harmonioso de que todos pudessem beneficiar. Para ele, governar sempre foi melhorar as condições de vida das pessoas, sem fronteiras e sem barreiras de classe.

A história irá reconhecer, como os especialistas de política científica nacionais e estrangeiros reconhecem há muito, como todos nós reconhecemos, o trabalho que, sob a sua orientação (na presidência da JNICT e como ministro de quatro governos), foi realizado no crescimento e na modernização do sistema científico e tecnológico português.

Mantive com José Mariano Gago durante mais de trinta anos uma relação de amizade e, na sexta-feira, quando soube da sua morte, inesperada apesar da sua grave situação clínica, ao recordar muitas das discussões que tivemos sobre política científica, constatei com alguma surpresa que não me lembrava de uma única ocasião na qual tivéssemos estado de acordo.

Discordámos sobre a questão da reforma dos Laboratórios de Estado, sobre a criação dos Laboratórios Associados, sobre a banalização do modelo de instituições de investigação públicas de direito privado, sobre a política de emprego científico, sobre os programas mobilizadores, sobre as propinas universitárias, sobre os programas de apoio à investigação nas empresas e até, entre muitas outras, sobre a criação do próprio LIP, o laboratório que dirigia. A explicação para tanta discordância é fácil: sobre as matérias sobre as quais estávamos de acordo não discutíamos e elas constituíam uma base considerável de consenso.

Algumas das discordâncias tinham a ver com considerações tácticas. José Mariano Gago era um pragmático que gostava de escolher as suas batalhas muito selectivamente e não se lançava em guerras que considerava perdidas à partida para concentrar esforços naquilo que sabia que podia mudar (chamava-me “lírico” quando eu defendia posições mais arrojadas). Outras discordâncias eram mais profundas. Mas, apesar delas, sempre considerei evidente que as suas políticas criaram um verdadeiro sistema científico e tecnológico a partir de algo praticamente inexistente, criaram uma verdadeira comunidade científica multifacetada e vibrante, criaram uma cultura exigente de avaliação da investigação, colocaram a investigação científica na agenda política e afirmaram-na como factor de desenvolvimento económico e cultural. Isto para além de terem começado a destruir as bafientas barreiras entre “investigação fundamental” e “investigação aplicada” (que agora voltam a aparecer no discurso do governo), entre “ciências duras“ e “ciências sociais”, entre “ciência” e “cultura” e, o que não é menor, de terem promovido o ensino experimental das ciências, a cultura científica e o envolvimento da população na ciência. Não é pouco para um país que se encontrava na indigência científica há trinta anos.

Outra das fronteiras que Gago sempre se esforçou por destruir foi a barreira entre o “saber” e o “fazer”, e entre trabalho intelectual e trabalho manual, que considerava uma razão cultural central no atraso português.

Uma das vertentes mais importantes da acção de JMG em Portugal foi a internacionalização da ciência portuguesa, que seria não um simples objectivo mas um eixo central da sua estratégia. Mas não a internacionalização bacoca de que tanto ouvimos falar noutros sectores, que consiste em imitar modelos “lá de fora” para fazer as coisas cá dentro e em tentar ser “o bom aluno” que segue as orientações que vêm do estrangeiro, mas uma internacionalização adulta e responsável, que consistiu em inserir a investigação portuguesa nas redes de investigação europeia e mundial, conquistando uma participação de parte inteira nos debates e nos processos de decisão internacionais. Esta atitude de verdadeira parceria e sem complexos de inferioridade foi sempre uma marca da sua política e Portugal conquistou, em todos os fóruns onde Gago participou ao longo dos anos, uma reputação ímpar, de visão e arrojo, de competência e perseverança. Para Gago, a ciência não era apenas a investigação feita nos laboratórios, mas uma ferramenta capaz de estruturar as relações internacionais em prol do desenvolvimento e da paz, do entendimento e da inclusão, uma ferramenta de democracia - como era evidente no CERN que, com as suas equipas multinacionais, foi para ele não apenas uma escola científica mas uma escola política. As relações internacionais eram, aliás, um dos seus terrenos de predilecção e sempre o considerei um diplomata na alma, que exultava à aproximação de uma mesa de negociação. Europeísta convicto, via a União Europeia, apesar das suas insuficiências, como a mais estimulante das experiências políticas e acreditava que a ciência era uma área central na promoção da identidade e da cooperação europeia.
Diz-se sempre, quando alguém morre, que vai fazer falta e que muito havia a esperar dele. No caso de Gago é verdade. Eu esperava muito dele, até na sua velhice, quando poderia estar menos enredado pelas solicitações do quotidiano. Penso que Portugal precisava dele a trabalhar até aos 80 anos. E eu teria gostado de poder continuar a discordar dele e de o ouvir chamar-me lírico outra vez.



sábado, abril 18, 2015

Uma revolução e uma festa - Comentário na morte de José Mariano Gago

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 18 de Abril de 2015

Quando se escrever a história do Portugal Democrático, haverá uma página sobre a qual não haverá dúvidas: aquela onde se irá contar a revolução e a festa que tiveram lugar no nosso país no domínio da investigação e da cultura científica.

Esta história tem muitos actores mas um só protagonista: José Mariano Gago, que concebeu, negociou e pôs em prática essa estratégia, trabalhando com todos os parceiros de boa vontade, em Portugal e no estrangeiro, ao longo de diferentes governos e de muitos anos, e que transformou um sistema científico quase inexistente numa rede moderna capaz de se renovar e crescer, ao serviço do desenvolvimento, da cultura e da democracia. Que desapareça num momento onde a sua herança está a ser meticulosamente desmantelada é uma ironia da história e uma chamada de atenção para todos nós.

Texto no Público: http://www.publico.pt/ciencia/noticia/reaccoes-a-morte-de-mariano-gago-1692794

terça-feira, abril 14, 2015

Os cidadãos à procura da política

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 14 de Abril de 2015
Crónica 14/2015

Estamos a discutir as presidenciais porque isso, pelo menos, parece ser um acto político e parece ter um cheirinho de oposição.

Porque é que estamos a discutir as eleições presidenciais de 2016 em vez de discutir as eleições legislativas de 2015? Mais precisamente: porque é que estamos a discutir as presidenciais do ano que vem em vez de discutir a política que o Governo está a levar a cabo hoje e as alternativas que deviam ser postas em prática?

Porque é que contamos votos para 2016 e não juntamos as vozes em 2015? Porque é que discutimos uma coisa que ainda não aconteceu e que não temos razão para recear que seja uma catástrofe, em vez de discutirmos as catástrofes reais que estão a acontecer diariamente debaixo do nosso nariz, das privatizações de empresas públicas à destruição da escola e da investigação, da privatização da saúde à destruição da segurança social? Porque é que deixamos passar alegremente as declarações assassinas de Passos Coelho e de Paulo Portas sobre a necessidade de “reduzir o custo do trabalho” para as empresas portuguesas – maneira encapotada de dizer que os salários devem ser ainda mais baixos – para nos prendermos com as tontices menores de Sérgio Sousa Pinto sobre um candidato presidencial? As razões estão longe de ser boas, mas a verdade é que existem.

A primeira razão para o interesse prematuro que as eleições presidenciais despertam consiste no facto de essa ser, neste momento, a única coisa política que existe para discutir. Não que não haja temas nem razões diárias para discutir política. O que escasseia são os litigantes nessa discussão, as propostas em cima da mesa e, mais ainda, a defesa firme de uma posição. Faltam ideias e faltam campeões dessas ideias. As arenas onde tudo isto devia acontecer estão quase vazias. O que falta é o PS a fazer oposição e a dizer claramente o que quer e a mostrar que quer algo muito diferente do que o Governo faz. O que falta é o resto da esquerda a mostrar que quer pôr em prática outra política e não apenas enunciá-la. A política tem horror ao vazio e os cidadãos também e, na falta das grandes batalhas exaltantes que devíamos estar a travar, escolhem as batalhas menores, qualquer coisa que lhes dê a sensação de estarem vivos. António Costa não percebe isto e decidiu fazer seu lema a triste boutade de Seguro: “Qual é a pressa?”. Costa não percebeu que o tempo de fazer oposição é já, como não tinha percebido que tinha de sair da Câmara de Lisboa para ser líder do PS, como não tinha percebido que devia desafiar Seguro antes que ele transformasse o PS numa reunião Tupperware. Estamos a discutir as presidenciais porque isso, pelo menos, parece ser um acto político e porque parece ter um cheirinho de oposição e até pode estimular a oposição. Costa tem toda a razão do mundo quando diz que as presidenciais podem esperar, mas só tem sentido dizer isso se fizer oposição entretanto, se em cada momento denunciar os malefícios da governação e apresentar as alternativas necessárias que defende. Se as presidenciais entram na agenda do PS só depois das legislativas, se o programa de Governo do PS vai ser apresentado em Junho e se entretanto o PS vai para banhos deixando o campo aberto à propaganda do Governo, temos boas razões para nos interrogar se existe realmente um pensamento político alternativo no PS ou apenas um leve enfado por estar na oposição.

Outra boa razão para darmos esta atenção às presidenciais são os pobres media. Os pobres media que vivem aterrorizados perante a ideia de referir nem que seja de fugida uma ideia que não saia dos partidos do “arco da governação”, com medo de serem acusados de fazer política (o que significa que só raramente referem uma ideia de esquerda). As televisões percebem que é escandaloso ter três peças onde aparece Pedro Passos Coelho, mais um especial com Pedro Passos Coelho em directo durante vinte minutos, mais dois comentadores do PSD a falar de Pedro Passos Coelho, mas não têm coragem ou capacidade para fazer outra coisa. As presidenciais são um maná. Pode falar-se de pessoas evitando cuidadosamente qualquer substância política e explorando apenas sound bites e insinuações de ciúmes. Faz-se presidenciais para não fazer outra coisa, porque não há outra coisa para fazer e porque não se quer fazer outra coisa.

Outra razão ainda é o facto de terem surgido vários independentes na pré-corrida e, no actual estado de degradação dos maiores partidos, este será, com razão ou sem ela, um factor de esperança para uma parte considerável do eleitorado. O interesse pela presidenciais é também um sinal da desgraçada reputação dos políticos do costume. O facto não é preocupante em si, mas é preocupante que os partidos (com o PS à cabeça) tenham dado mais uma vez um sinal da sua graça, tentando projectar lama em todas as direcções.

Finalmente, há outra boa razão para falar de presidenciais. É que as presidenciais vão ser o momento onde nos veremos livres daquele espectro que assola a política e que nos envergonha tanto ou mais do que PPC. E isso, só por si, é uma boa notícia. E estamos precisados de boas notícias. Nem que seja só daqui a um ano.

jvmalheiros@gmail.com

Crónica no Púbico: http://www.publico.pt/politica/noticia/os-cidadaos-a-procura-da-politica-1692263

terça-feira, abril 07, 2015

“Um gestor de conta pode prejudicar seriamente as suas finanças”

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 7 de Abril de 2015
Crónica 13/2015


O que é inaceitável não é que o gestor de conta defenda apenas os interesses do banco. O que é inaceitável é que o faça dizendo que defende os interesses do cliente.

Tive durante muitos anos no meu banco, como muitos milhares de portugueses, um “gestor de conta” que acompanhava a minha “actividade financeira”, me “informava” sobre os diferentes serviços que o banco me podia disponibilizar e me “aconselhava” sobre os “melhores investimentos” que eu poderia fazer. Isto vai tudo entre aspas porque nem a pessoa em causa geria fosse o que fosse, nem nunca me deu qualquer informação minimamente fiável, nem me disse alguma vez qualquer coisa que pudesse ser considerado um conselho e, pelo meu lado, também nunca tive qualquer actividade financeira digna desse nome.

A razão para não identificar aqui o banco em questão é que tudo o que digo sobre o meu banco e o meu “gestor de conta” pode ser dito a propósito de qualquer outro banco e qualquer outro “gestor de conta”. Não se trata de um problema do meu banco, mas de um problema da banca.

Tenho, da experiência com os vários “gestores de conta” que já passaram pela minha conta, um extenso anedotário. Mas, para o que interessa aqui, quero apenas contar um episódio, relativo a um momento em que decidi usar uma quantia que tinha recebido para amortizar uma hipoteca que tinha contraído para compra de casa e em que pedi ao meu gestor de conta (dispenso as aspas, mas elas estão lá) que desse andamento ao meu pedido. Para minha surpresa, ele tentou dissuadir-me a fazer a amortização e pediu uma oportunidade para me apresentar as alternativas. As alternativas eram, simplesmente, investir na bolsa e comprar acções do próprio banco, que ele me garantia que eram um melhor investimento. Foi preciso alguma insistência da minha parte para ele conceder que, de facto, não estava em condições de me dar qualquer garantia de que a compra de títulos seria mais rentável para mim do que a amortização da minha dívida. Mas foi mais do que isso: a existência de um risco, associado à flutuação do valor dos títulos, em momento nenhum apareceu no seu discurso. O subtexto da sua argumentação era claro: só pessoas muito estúpidas é que amortizam as suas dívidas, porque essa opção não lhes permite habilitarem-se aos ganhos extraordinários que a bolsa permite e não lhes permite disporem de liquidez para fazer um investimento se, por acaso, ele lhes aparecer ao dobrar uma esquina. “Nesse caso”, dizia ele, “vai ter de nos pedir novo empréstimo e as condições podem ser muito piores”. “Sim, mas pode acontecer que as condições até sejam melhores, não é?”, dizia eu. “E, de qualquer forma, se investir em acções e quiser vender de um momento para o outro, também posso ter perdas consideráveis.”

Este jogo durou alguns dias, com várias conversas telefónicas e presenciais com o gestor de conta. A dada altura, tentou convencer-me a comprar títulos de um dado fundo de investimento que me apresentou como sendo extremamente seguro. Quando lhe perguntei que investimentos faria esse fundo com o meu dinheiro, respondeu-me que investiria na bolsa. “Em que títulos? De que empresas? Em que países?” Quando percebeu que eu queria saber exactamente que investimentos seriam feitos com o meu dinheiro, sorriu como se fosse a coisa mais idiota que já tinha ouvido. “Não se pode saber onde é que eles investem. O dinheiro circula”, disse, divertido.

Acabei por fazer, de facto, a amortização da minha hipoteca, mas percebi que, para alguém com menos determinação e menos capacidade de argumentação, pode ser difícil resistir à pressão de um gestor de conta.

Tudo isto vem a propósito do caso dos clientes defraudados pelo BES e que foram convidados, pressionados ou obrigados a comprar papel comercial de empresas do GES, com o Banco de Portugal, então como agora, a assobiar para o lado. Muitos não sabiam sequer que o tinham comprado e pensavam ter feito um mero depósito a prazo no BES (o que configura uma situação de abuso de confiança), outros tê-lo-ão comprado fiados em garantias dadas pelos seus gestores de conta (as aspas ainda lá estão).

A questão é que todos os bancos mentem quando afirmam que os gestores de conta existem para defender os interesses dos clientes. Só que há muita gente que acredita nessa mentira. Os gestores de conta têm como únicos objectivos defender os interesses do banco e os seus próprios (muitas destas operações geram comissões e bónus). São vendedores de produtos bancários para quem, de uma forma geral, a situação financeira dos clientes é indiferente e não influi de forma alguma na sua avaliação profissional.

O que é inaceitável não é que o gestor de conta defenda apenas os interesses do banco. O que é inaceitável é que o faça dizendo que defende os interesses do cliente.

O que deve mudar? Alertar os clientes para o verdadeiro papel dos gestores de conta. O Banco de Portugal deveria obrigar os bancos a incluir, em todas as mensagens de email e cartas, na parede dos cubículos onde os clientes são recebidos e sobre as secretárias dos gestores de conta, um aviso como os que alertam contra os perigos do tabaco ou do álcool: “ATENÇÃO: O gestor de conta defende os interesses do banco. Seguir os seus conselhos pode prejudicar seriamente as suas finanças”.

jvmalheiros@gmail.com